#3: "Legião Urbana" (1985), Legião Urbana + Gin and Coke
"Parece energia, mas é só distorção, e parece que sempre termina mas não tem fim"
Todo mundo tem de começar por algum lugar, não é mesmo? Seja bebendo ou ouvindo música, certas coisas passam por uma certa educação sentimental. Posso até dizer que eu sou um cara meio metido a besta e gosto de coisas refinadas, mas reconheço muito o valor das portas de entrada, dos ritos de iniciação. “Everybody here comes from somewhere”, já dizia o mestre Michael Stipe em uma das canções da minha vida. Mais do que isso: às vezes, o que é simples tem muito mais sentido. É o caso do coquetel e do disco de hoje, uma combinação que fez muita gente pegar gosto pelas coisas: Legião Urbana e Gin and Coke.
Primeiro, a banda – e o disco. Tenho a impressão de que, antes mesmo de eu entender bem o que era música, o Legião já estava lá. Quando criança, eu era o rei do videokê nas festinhas de aniversário. Em meio a clássicos da MPB antiga, composições de Assis Valente e Lamartine Babo (um dia eu explico essa história), sempre pintava no meu repertório “Eduardo e Mônica” e sua quilométrica letra cheia de referências. Um pouco mais velho, entendi que gostava mesmo de letras de música quando me dediquei a decorar a os nove minutos da história de João de Santo Cristo em “Faroeste Caboclo”.
No fim das contas, acho que sei de cor uma boa parte das músicas escritas por Renato Russo – uma espécie de irmão mais velho que, além de compor grandes canções e me apresentar a sentimentos que eu nem sabia que tinha, também me fez prestar atenção em gente boa como Neil Young, Bruce Springsteen e Joni Mitchell.
É para o Legião, também, que eu sempre volto, quando me pego em alguma situação complicada na vida. Não à toa, vem de “Há Tempos” uma frase que define um pouco meu estilo de vida (“meu amor, disciplina é liberdade”) e outra que serve de alento toda vez que me percebo à beira de um ataque de ansiedade (“muitos temores nascem do cansaço e da solidão”, algo tão comum nos últimos dois anos). Definir um disco favorito do grupo, pra mim, é tão difícil quanto escolher um disco favorito dos Beatles ou de Neil Young – depende do humor e das condições climáticas, depende da política do Brasil e de quanto dinheiro tem no meu bolso (aviso: quase nunca é muito).
O que quer dizer que a escolha do disco de estreia do Legião, o autointitulado Legião Urbana, de 1985, é menos pela preferência em si, e mais por uma combinação possível. (Ainda vou precisar de tempo e rodagem alcóolica pra conseguir descobrir que drink combinaria com discos mais complexos, como Dois, As Quatro Estações e O Descobrimento do Brasil – mas aceito sugestões na caixa de comentários!). No entanto, foi fácil achar a bebida que combinaria com o álbum que contém hits como “Será”, “Ainda é Cedo” e “Geração Coca-Cola”. Ou talvez tenha sido fácil achar o disco que combina com o Gin and Coke, uma combinação tão simples quanto capaz de abrir caminhos.
O nome do coquetel é autoexplicativo: é gim e Coca-Cola. Ou quase isso: gosto de colocar um bocado de limão nessa combinação, mas até aí, eu sempre gostei de colocar limão na Coca-Cola. É um amigo para todas as horas. Primeiro, por ser um coquetel fácil de se gostar , já que é doce, cítrico e ótimo para acostumar paladares novatos ao álcool. Segundo, por ser fácil de se fazer, especialmente nos momentos de preguiça. Terceiro, porque ele é fácil de repetir – a menos que você tenha sido besta de comprar Coca de latinha. (Aqui em casa a Coca é quase sempre de 2 litros).
Talvez pelas bolhas do refrigerante, o Gin and Coke é ainda uma bebida que convida para a festa. Por falar em festa, outra vantagem deste coquetel é ser portátil: sabe aquelas festas em casa de amigos em que todo mundo leva uma garrafa? Pois bem: esta é possivelmente uma das combinações mais fáceis de se produzir nesse contexto. É muito difícil uma festa não ter Coca-Cola. Logo, basta levar o gim e é capaz que você ainda pareça refinado enquanto a galera que leva Itaipava rouba as Heinekens da geladeira.
Talvez por esse clima de festa, pela frase educação sentimental e pelo fato de levar refrigerante na composição, o Gin and Coke poderia ser o drink de combinação de vários discos do rock brasileiro dos anos 1980. Ele quase foi parar na mão do Kid Abelha, mas… se você estiver me acompanhando na bebida enquanto lê, vai perceber que os dramas adolescentes de Paula Toller são um pouco mais açucarados que este coquetel. Se a gente chegar a um segundo copo, talvez o estrago seja maior ainda: o álcool vai abrindo espaço – e é por isso que a escolha acabou recaindo sobre a estreia do Legião Urbana.
A primeira sinapse foi óbvia: afinal, este é o disco de “Geração Coca-Cola”. Mas também vai da combinação entre um refrigerante americano e um spirit inglês, duas referências importantíssimas para o som do Legião. Para quem nunca bebeu, o açúcar da Coca-Cola é um ponto de apoio, um caminho suave, da mesma forma que a existência de um hit óbvio como “Será” deixa tudo mais fácil na abertura do disco. Embora a cola apareça primeiro, o álcool e o amargo do gim vão ganhando espaço ao longo da fruição, até o ponto em que se tornam impossíveis de não se fazerem notar. Fenômeno parecido acontece quando você percebe o quanto de rock inglês (Joy Division, The Cure, Buzzcocks, Gang of Four) tem dentro de Legião Urbana, o disco – uma estreia que já mostrava todo o potencial lírico de Renato Russo, mas ainda tem momentos vacilantes, em especial no instrumental.
Eu puxo briga no balcão com quem falar que o Legião é uma banda primária musicalmente, mas reconheço que a qualidade da gravação pode deixar a desejar e que alguns arranjos podiam ser melhor trabalhados aqui, ô se podiam. Não é à toa: o Legião deste disco era uma banda ainda se entendendo como tal. Vale a pausa para um momento histórico: cria de Brasilia (ainda que tenha nascido no Rio e morado em Nova York quando criança), Renato Manfredini Júnior já estava na estrada há muito tempo antes de chegar à capital fluminense para gravar este álbum nos estúdios da EMI.
Antes mesmo dos anos 1980 começarem, ele já tinha aberto caminhos com o Aborto Elétrico, grupo punk que tinha os irmãos Lemos (do Capital Inicial) em sua formação e uma série de canções que, com certeza, você conhece (“Geração Coca-Cola”, “Fátima”, “Veraneio Vascaína”, “Que País é Esse?”, até mesmo uma protoversão de “Tempo Perdido” chamada “1977”… a lista é grande!). Quando o grupo acabou, ele se lançou em “carreira solo”, voz e violão, como Trovador Solitário – e foi uma fita desse projeto que chegou às mãos da gravadora, que já tinha acolhido os amigos do Paralamas do Sucesso. (O grupo de Herbert Vianna, vale lembrar, também tinha dado uma força pra Renato gravando a sua “Química” no álbum de estreia Cinema Mudo, de 1983).
Mas quando foi conversar com a EMI, Renato havia acabado de montar uma nova banda – o Legião, cuja formação definitiva só foi formada mesmo no estúdio, com a chegada do baixista Renato Rocha. Não fosse o bastante, ainda vale lembrar que Legião Urbana é daquela época em que produtores e gravadoras enchiam o saco dos artistas para tentar ter faixas radiofônicas e que, ao mesmo tempo, não ferissem o gosto do ouvinte médio. (Para os cracudos em música ou legionários de coração aberto, aconselho ouvir a edição de 30 anos deste disco, que inclui gravações iniciais e versões demo cheias de detalhes curiosos, incluindo “áudios proféticos” de Renato, uma descrição charmosa dos integrantes do Legião e até um excerto de uma gravação de videoclipe, com o vocalista exercendo sua maletice de costume frente às câmeras).
Se às vezes o instrumental pode deixar a desejar, por outro lado Legião Urbana é um disco no qual sobra energia. Se canções como “Será” e “Ainda é Cedo” hoje parecem desgastadas pelo tempo, há outras que parecem fazer sentido todos os dias – quarenta anos depois, letras como “Baader Meinhof Blues” e “A Dança” fazem muito sentido. E se o Gin and Coke é um coquetel versátil, Legião também tem um repertório que mostra a capacidade de Renato Russo se embrenhar por diferentes temas: na violência nas grandes cidades e nas pequenas relações de “Baader”, na revelação da misoginia de “A Dança”, no libelo antiguerra de “Soldados”, mas também na sensibilidade de “Por Enquanto” e na força apaixonada de “Teorema” (que música, que música!). Quarenta anos depois, é possível ainda ver as bolhinhas estourando no copo enquanto essas faixas soam pelos alto-falantes.
Mesmo canções que parecem um pouco fora do tempo, como “Perdidos no Espaço” e “Petróleo do Futuro”, têm lá seu charme. Ok, vá lá, “calculei seu ascendente no recibo do aluguel” é um verso que poderia ter saído da mão de qualquer compositor santacecilier, enquanto “agricultores famintos” retrata tão bem o Brasil de 2022… hora de respirar fundo. Viver no Brasil não tem sido fácil (e talvez nunca tenha sido, pode ser o retrogosto de ouvir o disco, ou só mesmo um gim mais forte).
Mas eu não quero acabar esse texto sendo pessimista – espero que, em breve, mudem as estações e algo mude de verdade. Até lá, a gente segue bebendo pra suportar as notícias ruins e festejar os dias bons. E um Gin and Coke é um bom amigo para todos os dias – pelo menos pra mim, que consigo não deixar o gim faltar na adega e sempre tento ter uma Coca na geladeira. Seguem os ingredientes:
1 dose de gim (aproximadamente 55 ml)
3 doses de Coca-Cola
meio limão espremido
gelo, muito gelo!
Ao contrário do Cosmopolitan e do Macunaíma, não existe muito bem uma receita oficial para um Gin and Coke. O protocolo é simples, porém. Comece pegando um copo alto e enchendo de gelo. A definição de copo alto pode variar: pode ser um long drink de boca mais aberta ou um highball, ou até um copo de requeijão no improviso. Aqui em casa, eu tenho copos de 450 ml da Nadir Figueiredo, o famoso “copo americano que bebeu fermento” – pode me xingar de hipster, eu aceito.
Esprema o suco de meio limão e coloque uma dose de gin – london dry, por favor. (A marca pode variar: normalmente eu fico com Beefeater, Gordon’s ou Bombay Sapphire em casa, mas os drinks da foto foram com Atlantis, que eu comprei para testar e gostei bastante). Depois, basta colocar as doses de Coca-Cola e mexer o fundo do copo com uma colher bailarina para misturar bem, sem perder o gás. Se não tiver bailarina, sussa: pode ser uma colher de suco mesmo, daquelas de cabo comprido.
A grande discussão aqui é a dosagem: fã de Coca-Cola que sou, prefiro a proporção de 1:3 na base de gim para refrigerante. Receitas mais clássicas vão em 1:2, enquanto quem tem tolerância maior pode se divertir com 2:3 – isto é, duas doses de gim e três de Coca-Cola. Vale o exercício, colega de balcão, até aprender todas as manhas do seu jog… sua proporção favorita. Ou só encha o copo até o final e seja feliz.
Dessa vez, a gente tem bem poucos reclames – uma semana de bastidores por aqui. Só queria dizer que em breve, muito em breve, vou fazer uma participação especial na newsletter da Anna Vitória Rocha (a namorada), a No Recreio. Se você não assina, chega mais.
Por hoje é só, pessoal. Pra fechar, umas palavrinhas em latim: urbana legio omnia vincit. Saúde!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Esta edição foi escrita, obviamente, ao som de Legião Urbana, o disco de 1985 – mas na versão de 30 anos, disponível no Spotify e no seu tocador de música favorito. Foi o segundo disco de vinil que eu comprei do Legião. (Hoje, só me falta na coleção o A Tempestade e o Música Para Acampamentos. Alguém aí tá a fim de fazer um rolo?).
PS2: Não cabia no texto, mas cabe aqui: um dos maiores elogios que eu já recebi na vida foi quando, lá pelo segundo ano do colegial, toquei “Anúncio de Refrigerante”, um outtake da fase Trovador Solitário de Renato Russo, na seletiva de um festival de bandas do colégio – e perguntaram se a música era minha.
PS3: Também mal cabia no texto, mas vale a história: acho que a primeira vez que eu tomei um Gin and Coke foi no balcão do finado Frank Bar, no Maksoud Plaza. Era um início de noite e Spencer Amereno estava servindo, testando receitas para uma nova carta do bar – e uma delas era um Gin and Coke com refrigerante de cola feito por ele mesmo. O gosto era incrível, e o plano de Spencer, até onde lembro, era servir o coquetel em garrafas vintage de Coca-Cola compradas na Benedito Calixto. Pena que essa ideia nunca tenha visto a luz do dia: na próxima visita ao Frank, já com a carta nova, nada de Gin and Coke. No lugar, um Jim (Bean) & Coke, mas sem o mesmo charme. Uma pena.
Obrigada pelo texto incrível, Bruno! Eu tenho urbana legio omnia vincit tatuado e me senti muito representada quando vc fala que Legião sempre esteve ali. Lembro que com uns 8 anos encontrei o CD d'A Tempestade do meu tio e me apossei dele. Comecei gostando de Legião no reverso ;)
Que texto maravilhoso, como sempre. Abraço.