#8: “Ao Vivo”, Almir Sater + Manoel de Barros
"Tudo é sertão, tudo é paixão, se um violeiro toca; a viola, o violeiro e o amor se tocam"
Passa o boi, passa uma boiada: depois de estrear com um drink autoral na penúltima edição dessa newsletter, resolvi repetir a dose para homenagear não só um dos meus discos ao vivo favoritos da música brasileira, mas também uma grande sensação de 2022: Pantanal. E para fazer isso, peguei emprestada uma tradição de dar nomes de escritores a coquetéis que levam limão, xarope de açúcar e angostura. O de gim é o Fitzgerald; com bourbon, é o Mark Twain. E para fazer essa junção, criei o Manoel de Barros – o poeta do pantanal, com seus versos sobre amor, passarinhos, redes, índios, árvores e horizontes, coisas pequenas e grandes, frases tão bonitas que a gente até duvida. Mas se nas últimas edições eu só troquei o destilado-base por cachaça, dessa vez inventei moda e fiz uma cachaça infusionada em erva mate, como se cana tereré fosse. Mais sobre isso, prometo, no final do texto.
Moda de viola é um negócio que, tal como o conhaque para Carlos Drummond de Andrade, me bota comovido como o diabo. E acho que um dos primeiros discos que fez eu me ligar nisso foi o Ao Vivo de Almir Sater, um CD que rodava muito no carro de Seu Capelas nos anos 1990, um daqueles discos que me remete a um passado longínquo, quase como se Almir sempre tivesse existido. Não é uma sensação totalmente à toa, acredito: depois de gravar uma meia dúzia de discos nos anos 1980, Almir Sater foi convidado para gravar a primeira versão da novela Pantanal, na TV Manchete, em 1990, interpretando o mesmo Trindade que hoje é o papel de seu filho Gabriel. A história tinha lá um eco curioso com Robert Johnson e fez Sater Pai despontar para o grande público, não só pelo talento musical, mas também pela pinta de galã – algo que a capa deste disco deixa entrever.
O sucesso fez até uma intervenção inesperada na trama de Benedito Ruy Barbosa: o personagem que faz um pacto com o diabo some da história porque acabou sendo convidado para estrelar a trama seguinte da Manchete, A História de Ana Raio e Zé Trovão, escrita pelo ator Marcos Caruso e por Rita Buzzar, a partir de uma ideia de Jayme Monjardim (filho da cantora Maysa, mas essa história fica para outro dia). Além de ser o mocinho, Sater também cantava uma dos principais temas de seu personagem, “Hora do Clarão”. A dobradinha noveleira foi mais que suficiente para gerar demanda para um disco ao vivo revisitando mais de uma década de carreira.
E que belo disco: Ao Vivo não é só uma revisitação da carreira de Almir, mas também uma ótima introdução para quem quiser explorar algumas raízes da música caipira – tem o parceiro de todas as horas Renato Teixeira, claro, mas também a “Chalana” de Mário Zan e Arlindo Pinto, composta em 1943, e belezinhas de Tonico e Tinoco (“Moreninha Linda”) e Tião Carreiro (“Cabelo Loiro”).
Natural de Campo Grande, mas com estrada rodada entre Rio de Janeiro (onde viveu pra estudar Direito e desistiu), São Paulo e Nashville, Sater acumulou uma experiência capaz de fazer a viola soar acessível a todo o Brasil, sem o ranço de um preconceito contra o caipira – algo que hoje parece esquisito em tempos de agro é pop, mas existiu bastante nos anos 1970 e 1980, especialmente em uma indústria fonográfica centralizada na capital fluminense.
Parte desse apelo talvez venha justamente por uma visão própria de Almir, um apaixonado por Tião Carreiro, mas que por inúmeras vezes já se definiu mais como roqueiro do que sertanejo. Rótulos à parte, a verdade é que este Ao Vivo tem um inconfundível apelo pop, num som bem gravado, misturando baladas, galopes e pelo menos dois standards para a canção brasileira: “Tocando em Frente” e “Um Violeiro Toca”. (Não sei se já disse, mas um dos meus sonhos seria ver Roberto Carlos adotar “Tocando em Frente” como a sua “My Way”. Diz aí, ia ser bonito).
Odeio dizer que eu sou fã de Almir Sater before it was cool, mas a verdade é que eu acho muito divertido os amigos hipsters descobrindo que viola pode ser legal. Da mesma forma que traz um sorriso amargo ao rosto ver como “Índios Adeus”, penúltima faixa do disco, cabe tão bem em 2022. E se eu há muitos anos não via novela, é interessante me pegar assistindo Pantanal de maneira espontânea.
Foi algo que, confesso, começou por influência da namorada – não sei mais se foi passando uns dias em Uberlândia ou recebendo-a em São Paulo, mas sei que comecei a prestar atenção na história. Aos poucos, fui deixando a TV ligada na hora da novela, enquanto cozinhava ou jantava. E hoje ainda não acompanho tudo o que acontece dia a dia, mas encontro em Pantanal certo conforto depois de um longo dia de trabalho. Não vou aqui ficar teorizando sobre o porquê da novela ser um hit, dado que não sou crítico de TV. Mas apostaria algumas fichas na fotografia incrível, em bons bordões, em personagens cativantes e numa trama que envolve os principais dramas humanos – família, amor, fé, natureza – de uma forma que já parece clássica, de novo.
E talvez por esse monte de coisas é que encasquetei com a ideia de fazer um texto sobre este Ao Vivo de Almir – uma pepita caipira que só rivaliza com outro disco ao vivo também lançado em 1992: Ao Vivo em Tatuí, de Renato Teixeira e a dupla Pena Branca e Xavantinho. Mas não podia ser qualquer drink – e não dava simplesmente para trazer cachaça. Passei semanas assistindo Pantanal tentando pensar no que poderia ser, buscando uma luz.
A inspiração veio na mala: em maio, fui a Porto Velho cobrir o festival Casarão e me surpreendi com um lugar no shopping local oferecendo torres não de chope, mas de tereré. Ali tinha. Passei um tempo matutando, pensando em como poderia incorporar a erva-mate numa receita – e a infusão em cachaça barata me pareceu um ótimo caminho. O resultado final, depois de algumas semanas de pesquisa, é uma bebida marrom, forte, com gosto de álcool e terra.
Daí, parti para uma harmonização possível, tentando não ser gourmet demais, ara. Acabei caindo no Fitzgerald – afinal, o limão já é um parceiro clássico do tereré. O xarope de açúcar pareceu um parceiro necessário para suavizar o terrão da erva. E a angostura veio dar aquele charme final, o tchan necessário. O resultado, este Manoel de Barros, é um coquetel que parece doce no começo (tal qual a trama de Jove & Juma), traz um azedo na sequência e ao final, o que fica é um forte gosto de erva mate.
Um drink fresco e cheio de raízes ao mesmo tempo, como a música de Almir Sater neste Ao Vivo – e, ouso dizer, em quase toda sua carreira. Um coquetel que não faria feio em qualquer bar por aí, eu imagino – assim como Almir, apesar de parecer um caipirão conduzindo sua chalana, tem a música do mundo em seu coração. (AR, seu disco de parcerias com Renato Teixeira lançado em 2015, é um belo tratado de folk rock à brasileira, para ficar em só um exemplo). E se “com pedaços de mim eu monto um ser atônito”, com estes pedaços abaixo eu monto um trago que tenta fazer jus a Manoel de Barros.
A Receita
1 dose (50 ml) de cachaça infusionada em erva mate
½ dose (25 ml) de xarope de açúcar
Suco de meio limão (12,5 ml)
3 dashes de angostura
Pode botar o cavalo preto para tocar, que a explicação é longa: fazer cachaça infusionada em erva mate é mais simples do que parece, mas envolve certos passos. Usei o manual do Mixology News para fazer em casa a minha própria infusão. Para isso, coloquei primeiro 100 gramas de erva mate (comprada em qualquer loja de produtos naturais) num pote hermético de vidro. A que eu usei das primeiras vezes estava moída bem fina, o que fez a receita render pouco – se puder usar erva moída grossa, ajuda.
Juntei a essa erva 300 ml de cachaça 51 no pote, tampei e misturei. Depois disso, guardei o frasco num lugar escuro (aqui em casa foi o armário de roupas). Após 24 horas, mexi o frasco. Depois de mais 24 horas, com a mistura decantada, derramei tudo em um filtro de café e deixei o processo correr – ao contrário do que acontece com o cafezinho nosso de cada dia, a coisa demora mesmo. Ao final do processo, eu tinha uns 150-200 ml de cachaça infusionada, forte e bem escura, pronta para ser guardada em um frasco hermético de novo.
Importante: se o frasco não for bem fechado, o álcool pode acabar evaporando com o tempo. Se isso acontecer, uma boa saída é utilizar 25 ml desse líquido que sobrou com 25 ml de cachaça branca, numa versão alternativa do processo. O resto segue a receita clássica do Fitzgerald: insira todos os ingredientes em uma coqueteleira, junto com gelo, bata bem, passe pelo coador e coloque num copo rocks, com uma pedra grande de gelo. Se preferir, pode deixar também para colocar a angostura apenas depois da coqueteleira.
Espero que vocês gostem – afinal, como diz o poeta, “quem não tem ferramentas de pensar, inventa”.
Os reclames dessa semana estão bem recheados, viu:
Tive uma sessão em dose dupla no Scream & Yell nessa semana: primeiro, a prometida entrevista com o pessoal do Glue Trip falando de Nada Tropical, Marcos Valle, Arthur Verocai e drinks azuis. Chega mais.
E depois, um relato emocionado do que foi o show do Cascadura em São Paulo no último dia 18 de agosto, comemorando os 30 anos da banda baiana que, sem exageros, ajudou 2021 a ser um ano muito mais suportável por aqui. Se você nunca ouviu, tem que ir ouvir e se apaixonar. Aproveita que lá no Scream tem seis vídeos daquela noite especial, com participações de Teago Oliveira e Martin Mendonça.
E na semana passada, foi ao ar no Programa de Indie o nosso programa gravado ao vivo no Bailindie, o lar dos indie véio de São Paulo. Só para contrariar, a gente fez um especial de bandas novas que serve quase como um Greatest Hits desses quase três anos de microfones divididos com o Igor Muller. E se você quer ir ao próximo Bailindie, chega mais aqui que tem promoção pra ir na nossa Topic.
Até semana que vem, pessoal, que agora eu quero ir pra casa.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Essa edição foi escrita aos 45 do segundo tempo, na quarta-feira à noite, ao som de Ao Vivo, de Almir Sater, mas também do capítulo 135 de Pantanal, caso vocês queiram saber.
PS2: Muito doido pensar que estamos chegando em breve à décima edição dessa newsletter. (estou desconsiderando o texto #0 da contagem, ok?). E já são quase 300 pessoas no balcão, o que é um luxo só.
PS3: Almir Sater tem uma discografia vasta para se descobrir, mas se depois deste Ao Vivo você quiser um pouquinho mais do mesmo gosto, vale conferir o Ensaio, de 1991, disco resultante da gravação do clássico programa da TV Cultura liderado pelo discreto Fernando Faro. É bonito demais (e um pouquinho mais acústico). Já para quem quiser começar a fuçar o universo de Manoel de Barros, eu gosto muito do Livro Sobre Nada. E quase caí para trás ao descobrir que a Biblioteca Manoel de Barros, uma caixinha de poemas completos dele que comprei por menos de R$ 100 numa Feira do Livro da USP, custa mais de R$ 1500 em sites de usados. Doideira.
PS4: Por fim, mas não menos importante: hoje, 1º de setembro, um dos maiores companheiros de copo deste autor completa 30 anos: Guilherme Bottino, também conhecido pelos amigos como Zóide. Numa conexão Santa Cecília-Wellesley, esta newsletter é dedicada a ele. Feliz aniversário, Zoidinho.
Para ficar no clima, lá em Campo Grande, tomei uma cerveja chamada Moagem que levava erva mate.