#2: "Construção", Chico Buarque + Macunaíma
"Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir..."
Posso estar enganado, mas acredito que o sonho de todo bartender que se preze é criar um coquetel clássico. É claro que há muita graça na ideia de acertar exatamente o que alguém gostaria de beber numa hora certa, mas apostaria algumas fichas que entre ser psicólogo ou alquimista, o que os ases das coqueteleiras desejam é mesmo a segunda opção. É algo para poucos, porém. Arnaldo Hirai, do bar Boca de Ouro, em São Paulo, é um desses felizardos que conseguiram realizar o sonho. Afinal de contas, seu Macunaíma (que quase se chamou Caxirola, aquele instrumento maluco do Carlinhos Brown pra Copa de 2014, vê se pode) é o que se pode chamar de um coquetel clássico-contemporâneo, capaz de conquistar qualquer paladar, sem perder um pouquinho de Brasil-iô-iô. Prová-lo no Boca de Ouro – que também tem um charmoso Bolovo entre seus símbolos – é uma grande experiência, mas felizmente o Macunaíma faz jus ao personagem que lhe dá nome e também é fácil de ser degustado na preguiça de casa.
Quando comecei a pensar nesta Meus Discos, Meus Drinks, passei um bom tempo pensando qual seria o disco que teria a honra de ser harmonizado com ele. Durante muito tempo, segui o caminho óbvio de aliar o Macunaíma com Caetano, Gil, Tom Zé ou algum outro tropicalista, mas alguma coisa parecia não fazer sentido. É fácil entender o porquê: como diria o professor Roberto Schwarz, o tropicalismo, ao usar uma combinação de elementos arcaicos e novíssimos, “é literalmente um disparate” – e o Macunaíma é tão harmônico em seu sabor que soa como tudo, menos como um disparate, ainda que combine elementos bem díspares. Era preciso ir um pouco além para chegar a essa combinação. Um pouco de construção, com o perdão da palestrinha. Tudo se encaixou quando eu buscava um par para Construção, de Chico Buarque.
Nas mesas de bar na Santa Cecília, em qualquer centro acadêmico de humanas, numa roda de samba no Rio de Janeiro ou nas novelas do Manoel Carlos, todo mundo tem um Chico para chamar de seu. Além dos olhos cor de ardósia e da pose de galã que já dura seis décadas, Chico é um compositor bastante versátil – a ponto de uma de suas famosas coletâneas ser dividida por discos que lhe apresentam justamente por adjetivos (o amante, o político, o cronista, o malandro, o trovador).
E dentre os muitos Chicos que há, confesso que lá não ligo muito para o romântico e o que é capaz de escrever canções a partir do eu-lírico feminino. Meu Chico favorito, o que eu sempre lembro quando penso em Chico, é o compositor de Construção. O Chico que brada contra a ditadura militar, ao mesmo tempo em que dá um sorriso de esperança com um sambinha singelo. O Chico que acha na valsa um respiro para o cotidiano. Ou que é capaz de por suíngue em uma “Canção do Exílio” setentista. Mais que tudo, um Chico como talvez não houve antes ou depois.
Lançado em 1971, Construção é um disco muito específico na carreira de Francisco Buarque de Hollanda, o carioca herdeiro de intelectuais que largou a faculdade de Arquitetura para erguer no patamar da canção uma série de paredes sólidas. (Vale lembrar: o pai, Sérgio, é o autor de Raízes do Brasil, enquanto o tio Aurélio é até hoje sinônimo de dicionário, pra ficar apenas em dois exemplos). Nos anos 1960, Chico se tornou uma estrela ao prezar justamente a tradição da canção brasileira, compondo temas românticos, de protesto ou de pura singeleza – e é só ouvir o “disco do meme”, Chico Buarque de Hollanda, de 1966, para verificar isso em obras como “A Rita”, “Pedro Pedreiro” e “A Banda”.
No entanto, enquanto ele evoluía como artista, a barra apertava cada vez mais no Brasil, com o recrudescimento da ditadura militar. Depois de ter atores de sua peça Roda Viva sendo agredidos em São Paulo e ver colegas como Gilberto Gil e Caetano Veloso sendo mandados para o exterior, Chico percebeu que era hora de se mandar – e pegou um avião direto para a Itália, onde viveu entre 1969 e 1970. E se o calendário diz que Chico Buarque de Hollanda, vol. 4 é seu primeiro disco lançado após o auto-exílio, é em Construção que essa experiência se reflete de forma mais contundente.
É como se ter ido fosse necessário para voltar: ao regressar ao Brasil, Chico consegue narrar como poucos o drama diário nacional, de uma forma que expressa, ao mesmo tempo, o espírito de uma época e uma realidade que perdura por décadas – e se por um lado canções como “Deus Lhe Pague” e “Construção” parecem desgastadas como a cachaça de graça que a gente tem que engolir, por outro elas seguem sendo atualíssimas.
Parte desse charme, claro, se deve a um inesperado aliado… tropicalista: o maestro Rogério Duprat, que depois de unir berimbau e guitarras em “Domingo no Parque” e botar pra quebrar com os Mutantes, foi capaz de criar os arranjos grandiosos e caóticos da dupla acima. (Além disso, vale prestar atenção na forma como “Deus lhe Pague” abre e fecha o lado A deste disco, em uma reprise muito bem tramada ao final de “Construção”, fortalecendo o elo entre as duas músicas).
É parte por conta de Duprat (salve, maestro!), parte também por conta do charmoso bigode e uma camisa mais colorida na capa, que Construção pode até ser o disco mais tropicalista de Chico. Ou, pelo menos, aquele que entende que o ataque estético que Caetano e Gil trouxeram à tona pode ser, sim, incorporado por este Buarque de Hollanda. Não à toa, o próximo passo fonográfico da carreira de Chico, sem querer querendo, acaba sendo um belíssimo encontro com Caetano Veloso, Caetano e Chico – Juntos e Ao Vivo, onde as características líricas e as trajetórias artísticas dos dois se confundem.
Mas se fosse só feito de cachaça, Construção seria um álbum mais abrasivo do que de fato é. É na combinação de elementos entre o azedo, o doce e o amargo, tal qual o Macunaíma do Boca de Ouro, que ele se torna um dos maiores pilares de uma longeva carreira. O azedo talvez seja até o sabor mais presente, seja num samba triste como “Desalento” ou no convite a se retirar de “Samba de Orly”, que cita Dom João VI e o aeroporto parisiense mais usado por nove-entre-dez exilados brasileiros.
O açúcar, por sua vez, é fácil de perceber: está no otimismo de “Cordão” e no romantismo de “Valsinha” – mesmo que nesta última, talvez seja difícil percebê-lo. A arma secreta do Macunaíma, porém, tem a mesma origem da pérola subestimada de Construção: a Itália. No drink, é o Fernet Branca, um bitter de ervas criado em Milão; no disco, “Minha História (Gesubambino)”, versão de “4 Marzo 1943”, primeiro sucesso do italiano Lucio Dalla – e, em português, uma história de tantas crianças e tantas famílias.
(E aqui, um pequeno aparte: o Macunaíma só não é uma combinação mais perfeita para Construção por lhe faltar um ingrediente marcante no disco de Chico: a hortelã do beijo de “Cotidiano”, outra das inesquecíveis músicas desse disco. Por causa dessa erva, quase que o coquetel escolhido para esse disco foi o Burrito, uma adaptação do Mojito cubano com cachaça. Mas se vale de conselho, fica aqui a dica: não fica mal parear o Macunaíma com um caldinho de feijão, e assim eu calo essa boca).
Se você vier a São Paulo, ou mora por aqui, eu recomendo muito a visita ao Boca de Ouro – que tem uma ótima carta de criações autorais e de coquetéis clássicos. (Fomos comemorar o aniversário da namorada lá este ano e eu saí bastante animado com a leitura deles do Corpse Reviver #2). Para fazer o coquetel em casa, curtindo aquela preguiça (rá!), segue aqui a receita:
45 ml de cachaça branca
25 ml de xarope de açúcar
20 ml de suco de limão
7 ml de Fernet Branca
Na receita que o grande Gilberto Amendola, companheiro de copo e fã de Wilco, pegou do próprio Boca de Ouro, a regra é clara: basta colocar todos os ingredientes em uma coqueteleira com bastante gelo e bater. Depois, vale coar tudo para um copo – se possível, um do tipo rocks, aquele de tomar uísque, mas na falta vale até um copo americano.
Sobre os ingredientes, vale dizer: o limão é aquele clássico do mercado, o taiti mesmo, enquanto a cachaça pode ser a sua favorita – aqui em casa, fui de 51. Xarope de açúcar é um negócio que parece difícil mas é simples: pegue um caneco e coloque partes iguais de açúcar e água (uma xícara?). Mexa no calor até o açúcar derreter, desligue o fogo antes de ferver e tome cuidado pra não queimar. Depois de esfriar, dá pra guardar numa garrafa e deixar até um mês na geladeira. E o Fernet, infelizmente, custa uma nota no mercado, mas vale o investimento. Caso você tenha algum amigo que está indo para a Argentina, vale pedir pra trazer na mala uma garrafa pra você – para os hermanos, Fernet se toma com Coca-Cola e desce que nem água, além de ser bem mais barato por lá do que aqui.
Antes da gente fechar a fatura, os reclames da vez (juro que serei breve!):
Lembra que eu falei do piano Steinway que participou da gravação de “Ovelha Negra” e que hoje está na rádio Eldorado? Pois bem: promessa é dívida e a gente finalmente colocou no ar a sessão que tivemos com a banda Pluma, uma das boas novidades da canção brasileira. Chega mais, piano e voz!
Além disso, queria comemorar que essa newsletter já chega hoje a mais de 100 caixas de entrada. Fico muito feliz com a quantidade de gente chegando no balcão! E é aquilo: bar bom cresce no boca-a-boca. Se você gostou desse texto, compartilhe!
Drink pronto, já bateu aquela preguiça do nosso herói modernista? Então “dorme, minha pequena”. Saúde, e até a próxima!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Essa edição foi escrita ao som de Construção, de 1971, claro – mas também de outro disco que ecoa a Tropicália: João Gilberto, de 1973. Por conta do frio e de uma dor de garganta que parece não ter fim (mas juro que não é covid, dessa vez), também tivemos chá de hortelã, limão e mel na caneca secreta para finalizar o texto – afinal, a gente tá tentando não morrer na contramão atrapalhando o sábado.
Que baita texto aconchegante e construtivo. Vida longa ao MDMD!
cara, como eu só cruzei com a sua news agora? que coisa mais linda!