#4: "Recomeçar", Tim Bernardes + Hot Toddy
"Tem noites que eu penso que não vai dar mais, mas ser é melhor que lembrar"
Tem semanas em que tudo dá certo: o sol sai lá fora, os compromissos acontecem, os textos fluem naturalmente, a vida parece achar seu caminho. E tem semanas que tudo parece meio esquisito, meio cinza: o corpo parece falhar, a cabeça não dorme direito, o tempo seco não cessa, reuniões são desmarcadas e tudo parece dar trabalho demais. Às vezes é só azar; às vezes é cansaço, às vezes é só fazer parte de uma geração de transição vivendo na era do capitalismo tardio – onde tudo que é construção já parece ruína. Pessimismo à parte, a verdade é que nem sempre a gente tem vontade de beber. Mas talvez seja só porque falte a bebida certa. Nos últimos dias, meu nariz entupido me tirou a gana de pensar em qualquer coquetel elaborado, com gelo e bem batido na coqueteleira. Eu só queria um canto quentinho pra ficar. Até que lembrei da existência do hot toddy, tão confortável quanto chá de vó e bolinho de chuva.
Mais do que um coquetel por si só, um hot toddy é um tipo de coquetel. Basicamente, envolve um destilado (normalmente, uísque), água quente, mel (ou xarope!), uma fruta cítrica e algum tipo de ervas – embora essa última parte seja opcional. É possível fazer o hot toddy de inúmeras formas, usando chá ou folhas de ervas (hortelã é uma que resolve muito bem), limão taiti, siciliano ou até laranja, mel de abelha, xarope açúcar ou até maple syrup. É uma receita tradicionalíssima no Reino Unido, boa pra curar resfriados e gripes – só não vale tomar um porre de hot toddy, já que o álcool atrapalha um bocadinho nosso sistema imunológico. (Infelizmente ainda não existe um Hot Toddy Coronavac, mas não duvido que a gente chegue lá um dia).
Reza a lenda que sua origem, como quase toda coisa que é tradicional no Reino Unido, não está nas ilhas do Atlântico Norte, mas sim na Índia. A primeira menção a um toddy (originalmente, uma espécie de vinho feito a partir das palmeiras) vem do século XVIII, olha só. (E eu não pesquisei, mas não duvidaria nada que vem daí também o nome do seu achocolatado favorito – ou não).
Como dá pra imaginar, um toddy tem inúmeras variações pelos quatro cantos do mundo – pense que cada lugar tem seu destilado de preferência e, bem, tá fácil de entender o conceito. Conhaque, brandy, rum, gim ou até mesmo a nossa boa e velha cachacinha, todos podem ser usados para um toddy. (Olhando bem a fundo, o nosso querido quentão é nada mais que uma versão raiz da brincadeira, né). Aqui em casa, fui de scotch (mais sobre a receita lá embaixo), pois era o uísque que estava mais à mão no primeiro momento. E me pus a buscar um disco que descrevesse o estado emocional desse coquetel – como um cobertor quentinho que pudesse me esconder do barulho lá fora.
Não foi preciso andar muito até chegar a um dos meus discos favoritos dos últimos anos: Recomeçar, o primeiro álbum solo de Tim Bernardes – que já foi “o filho do Maurício Pereira”, é o líder d’O Terno e um dos compositores mais sofisticados que surgiram por aqui recentemente. (É engraçado pensar que hoje, na verdade, muita gente conhece o Maurício Pereira como “pai do Tim Bernardes”, hehe). Lançado em 2017, Recomeçar é um disco triste, triste, triste até a medula, juntando um punhado de canções de desamor que Tim compôs ao longo de vários anos e não cabiam dentro do repertório do Terno, uma banda que tem lá sua carga de melancolia, mas olha para a vida com certa cor, certa luz, certa graça pop. Não é o caso aqui: sem meias palavras, Recomeçar é um disco de pé na bunda.
Pra mim, ele é um representante muito significativo de uma linhagem especial de álbuns – que inclui coisas como Loki?, Blue, Angela Ro Ro, Grace, O, Third, Five Leaves Left e até mesmo aquele primeiro do Bon Iver. Discos de homens e mulheres machucados, sozinhos dentro de um quarto ou no balcão de um bar, tentando superar um pé na bunda e produzindo uma enorme beleza – ainda que eu sei que tem muita gente que vai falar que essa turma não passam de um bando de chorões.
Bobagem: sempre acreditei que faz bem chorar. E Recomeçar já me fez chorar pra caramba nessa vida. Mas, apesar disso, eu sempre volto a escutá-lo, porque em meio a músicas tristes como “Ela”, “Não” e “Quis Mudar”, este é um disco que enxerga uma luz no fim do túnel. Talvez ela não chegue agora, talvez seja preciso uma boa pausa para chegar lá, um tempo para se recuperar, mas ela existe – nem que seja o refletor de uma sala de cinema na rua Augusta bruxuleando numa terça-feira à noite, pouco antes da hora do metrô fechar.
Quando Recomeçar foi lançado, eu vivia uma época muito esquisita da minha vida. Tinha acabado de terminar um namoro e, mais do que apenas curar as feridas de um rompimento, eu estava tentando lidar com uma série de pequenas e grandes coisas – aquele negócio que, quando a gente passa dos 25, começa a descobrir que se chama vida adulta. Trabalho, amizades, família, relacionamentos, sexo, tudo isso era muita coisa na minha cabeça… não é surpresa que foi nesse período que eu decidi fazer terapia. Era um período também que o Brasil não andava lá muito bem: o presidente era Michel Temer, a reforma trabalhista tinha entrado em vigor e já se armava um clima terrível de que talvez a eleição de 2018 não fosse ser uma coisa legal.
As coisas pareciam fora de compasso – não à toa, o outro grande disco daquele ano na minha cabeça era Todas as Bandeiras, da Maglore, também um grande disco de pé-na-bunda e beleza pura. (Ah, dor de amor e contas pra vencer). Fosse só um disco de pé-na-bunda, Recomeçar já mereceria seu lugar. Porém, para mim, ele tem uma canção especial, que ressalta aos olhos pela sua capacidade de espalhar múltiplos significados e que é capaz de transformar o disco: “Tanto Faz”.
Tem uma história legal sobre ela: na época, eu trabalhava no Estadão, cobrindo tecnologia. No Caderno 2, o Pedro Antunes publicou o clipe em primeira mão com exclusividade, pouco antes do disco sair. No texto breve que ele fez na época, ele elogiou a música por falar de política, Copa e Justiça (o verso “nada é justo ou injusto se não há Justiça de fato” ressoa forte aqui). Sem ler o texto do Pedro, fui direto para a música e me segurei para não chorar no meio do expediente. Ouvi a canção como uma música de dor-de-cotovelo, de fim de relacionamento, naquela coisa de “quem é que venceu? quem vai contar essa história”. Levantei da mesa, atravessei a redação e cheguei no Pedro: “mano, é uma música de amor”. E ele tinha escutado a música de novo, achado isso também e escreveu um segundo texto sobre “Tanto Faz”, quase como uma errata. Hoje, ouvindo de novo, eu também poderia dizer que é uma música sobre relações de trabalho e o capitalismo.
A despeito da sua polissemia, “Tanto Faz” tem uma força incrível dentro de Recomeçar por passar uma mensagem importante. Ela faz a gente lembrar que, enquanto a gente vive as nossas dores, os nossos dias sem sair do sofá, as nossas incertezas, o mundo lá fora continua girando – e cheio de problemas também. Buscar um novo caminho, se reconstruir, testar coisas novas já é algo difícil por si só, mas talvez seja mais difícil ainda quando tudo parece colapsar. É uma sensação que eu tenho tido nos últimos dias ao ligar a TV, ver um jornal, abrir o Twitter. Ou, como diria certa poeta contemporânea, “tá todo mundo mal”. E a despeito do título da canção, os gritos de Tim ao final de “Tanto Faz” mostram que não é bem assim – e que em algum lugar, ali, há uma chama acesa, à espera de tempos melhores.
E assim como quem prefere um coquetel quentinho em vez de forçar a garganta e o nariz a encarar uma bebedeira no bar, este Recomeçar também reconhece que às vezes o melhor a fazer é parar e pensar, é buscar entender o que aconteceu (e o que está acontecendo) e não forçar a barra. Nem sempre concordar com esse cenário adverso é fácil – e talvez justamente por isso Tim tenha embalado suas letras bastante confessionais e sinceras em arranjos que tem cordas à la Disney (ou Debussy, nunca saberei), uma certa vibe de Clube da Esquina e do Paul McCartney nos primeiros discos solo. Da mesma forma que a gente usa o álcool para mascarar algo que parece um chá de vó (ou um chá de vó para mascarar o fato de que estamos bebendo mesmo em um dia que deveria ser de cama).
Um brinde, amigos, nem que seja um brinde num dia em que o melhor a que podemos brindar é que existe um amanhã – e como disse um dos maiores intelectuais da atualidade, num disco que completa duas décadas este ano, “nada como um dia após o outro dia”. Por hoje, ficamos com a receita do hot toddy:
45 ml de uísque
água quente (suficiente pra encher um copo ou caneca)
1 colher de sopa de mel ou xarope de bordo
10 ml de limão
hortelã, cravo ou canela em pau a gosto
Como eu já disse, o hot toddy é um coquetel que você pode montar a seu próprio gosto. O importante é que ele seja quente, tenha álcool, açúcar e alguma coisa cítrica. Aqui em casa, testei duas receitas. Na primeira, fui de Ballantine’s, mel silvestre e limão. Na segunda, troquei o scotch por um Jack Daniel’s, o mel por maple syrup e acrescentei umas folhinhas de hortelã da minha horta. (Não, eu não sou muito amigo de canela).
De qualquer forma, vamos aos passos. O primeiro é ferver a água. Feito isso, você vai encher o copo/xícara/caneca com a água quente e deixar lá por um minuto, esquentando seu recipiente. Depois, tire a água. Aí, você pode colocar a colher de sopa com o mel ou xarope e deixá-la dentro do copo. Coloque o uísque, o limão, as especiarias… e complete com a água quente, mexendo a colher até que o mel derreta por completo e se dilua na bebida. Se quiser fazer uma graça, dá ainda para decorar usando uma casca ou rodela de limão.
Aí na sua casa, você pode testar inúmeras variações. Há quem prefira usar chá pronto (mate, English Breakfast ou até um Earl Grey) no lugar da água quente – mas aí é bom ter cuidado para não adicionar especiarias demais. Você pode tentar também com uísque de centeio (rye), ou conhaque, caso queira variar. E há até quem prefira usar açúcar mascavo ou xarope de açúcar (que eu já falei sobre no texto do Macunaíma) em vez de mel. Não, não sei como seria um hot toddy com stevia ou adoçante. E, dado seu caráter caseiro, talvez seja difícil achar um bar que sirva um hot toddy hoje – embora eu sinta saudades do Buraco, aqui na Vila Buarque, que servia ótimos coquetéis com spirits infusionados em chá.
Mas adiciono aqui uma pílula de cultura inútil, tirada do grande História do Mundo em Seis Copos, de Tom Standage: se seu hot toddy for feito com rum, ele poderia se chamar grog – um nome antigo para designar a mistura de rum com água, às vezes com a adição de limão, muito popular na era das Navegações. Só cuidado para não ficar grogue demais e transformar o que seria uma boa noite de sono buscando a cura da gripe em uma manhã de ressaca. Afinal, amanhã sempre é dia de recomeçar.
Hora dos reclames da vez, por favor!
No Programa de Indie, se eu posso dar um spoiler, vem aí amanhã um papo muito bacana com o Moons, banda mineira que acabou de lançar o grande disco Best Kept Secret (e cujo clima também cairia bem com um hot toddy).
No Scream & Yell, tem duas novidades boas: a minha entrevista com o pessoal do gorduratrans, banda fluminense cheia de barulho & energia, falando sobre cenário independente, Flamengo e o disco novo deles, “zera”… e uma cobertura do show do FBC, uma das sensações da música brasileira em 2021, no SESC Pompeia.
Agora, eu vou deixar vocês irem embora, chegou a hora. Mas em breve tem mais aqui nesse balcão. Nos vemos no Belas Artes, subindo para a Paulista?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ouvindo Recomeçar, claro, mas também contou com a influência do segundo (e recém-lançado) disco de Tim Bernardes, Mil Coisas Invisíveis. É um dos discos do ano, sem dúvida. Também pairou sobre este texto o Micro, recém-lançado pelo pai de Tim, Maurício Pereira, revisitando grandes momentos de seu repertório, como “Um Dia Útil”, “Outono no Sudeste” e “Pan y Leche”. Tem que ouvir.
PS2: Parte das ideias desse texto, porém, vem de tempos atrás: a análise sobre “Tanto Faz”, por exemplo, fez parte de um podcast que eu gravei no Estadão anos atrás, o Refrão. Infelizmente, a gravação original se perdeu – ah, a capacidade de perda de memória da era digital – e o programa não está mais disponível nas plataformas de streaming. Felizmente, eu tinha transcrito parte do meu discurso improvisado ao lado do Pedro Antunes e do Guilherme Sobota porque achei que ia escrever uma resenha sobre o Recomeçar na época. Não saiu, mas acho que a dívida está paga.
PS3: Juro que não foi intencional, mas ao revisar este texto, percebi que cometi uma citação grande do clássico texto de Lester Bangs sobre Astral Weeks – um texto tão bom quanto o disco que o inspira. Em vez de me denunciar, vou deixar aqui a dica para quem quiser ler o texto de Bangs, que me chapou a cabeça aos 14 anos e me fez perceber que eu devia mesmo tentar escrever sobre música. (Pra quem quiser ler mais coisas de Bangs, recomendo demais a coletânea Psychotic Reactions and Carburator Dung)