#40: “Educação Sentimental”, Kid Abelha + Dirty Shirley
A busca da fórmula dos problemas da vida adulta, enquanto a gente escuta "A Fórmula do Amor" e recorre a coquetéis menos elaborados, mas deliciosos
“Vida adulta, né, meu velho?”, disparou um amigo no bar essa semana, depois que eu passei meia hora fazendo uma lista de problemas e complexidades ao tentar responder à pergunta “tá tudo bem contigo?”. Eu sei, eu sei, “não tá fácil para ninguém”, mas foi só depois de enfileirar uma série de argumentos que me dei conta do cotidiano meio cacete que eu ando vivendo. É obra em casa, dois tratamentos médicos diferentes, trabalho demais, frio também, uma rotina totalmente desregulada e alguns cascalhos faltando na conta do banco. Talvez muitos de vocês, amigos de balcão, estejam vivendo algum cenário parecido. E dado que escapar para uma praia paradisíaca não seja uma opção disponível no momento, recorro aos meus velhos discos para achar conforto. Nas últimas semanas, percebi que voltei a me reencontrar com um amigo antigo: Educação Sentimental, provavelmente o melhor trabalho do Kid Abelha… e os Abóboras Selvagens (e essa será a única vez que vou usar o sobrenome da banda de Paula Toller nesse texto).
É fácil falar mal do Kid Abelha, eu entendo. Eu mesmo faço isso muitas vezes – uma banda de discografia irregular, com uma série de canções pop meio blasé e pouco divertidas, liderada por uma vocalista com fama de chata. Mas quando o Kid Abelha acerta, ele acerta de maneira irresistível. E só para não dizer que vou falar apenas de canções juvenis, preciso deixar claro que “Grand’Hotel”, construída sobre os escombros do relacionamento entre Paula Toller e Herbert Vianna, é uma das minhas letras favoritas sobre a visão madura de um término de namoro. Só preciso de um verso pra me justificar: “o nosso amor se transformou em bom dia”. Mas o assunto do dia é mesmo Educação Sentimental, lançado em 1985, quando Paula mal havia acabado de trocar os cabelos castanhos por um platinado incrível, Leoni ainda fazia parte do Kid Abelha e José Sarney havia acabado de assumir a presidência do Brasil.
Formado por um grupo de estudantes da PUC-RJ, o Kid Abelha chegou ao famoso “teste do segundo disco” em uma encruzilhada. O primeiro álbum, Seu Espião, tem tantos hits que até parece uma coletânea – são dele “Alice (Não me escreva aquela carta de amor)”, “Fixação”, “Como Eu Quero”, a indefectível “Pintura íntima” e, vá lá, “Por que não eu”, aquela dos infames versos “quando ela cai no sofá/so far away”. Se as rádios tocavam e o grupo até teve espaço para ser massacrado pelos metaleiros ao conseguir estar na primeira edição do Rock in Rio, a crítica (especialmente a paulistana) ainda pentelhava o grupo achando sua visão de mundo bastante pueril. Ao chegar ao estúdio Nas Nuvens, acompanhado do produtor Liminha, o então quarteto buscava mostrar que havia evoluído – a começar pelo título do disco, decalque de um romance do francês Gustave Flaubert. Além disso, a estilosa capa em preto, branco e tons lilases tentava mostrar alguma sofisticação, para além do choque colorido new-wave de Seu Espião.
A primeira faixa, “Lágrimas e Chuva”, por sua vez, tinha seu nome inspirado no maravilhoso monólogo de Rutger Hauer ao final de Blade Runner, propondo um passeio entre o pós-punk e a new wave guiado pela excelente voz de Paula Toller. Enquanto isso, a deliciosa balada “Uniformes” misturava as camisetas de escola e as vestimentas de soldados para questionar justamente a chatice da vida adulta, em uma performance desapegada, quase blasé, de Paula. Mas, a bem da verdade, o que há de melhor em Educação Sentimental são mesmo canções de amor rápidas e rasteiras, naquela energia de quem começa a viver os primeiros lances de uma pretensa maturidade, ali pelos 20 e poucos.
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Duvida? Então coloque bem alto para tocar uma das faixas mais divertidas do disco, como “Conspiração Internacional” – se você já se perguntou porque a chuva só cai em cima de você, fatalmente vai se identificar, embora a letra de Leoni seja um bocado mais divertida que o chororô do Travis. (Em tempo: adoro Fran Healy, viu?). Ou tente não se emocionar com “Os Outros”, um achado de Leoni escrevendo com eu-lírico feminino, em altíssima dor de cotovelo, declarando seu amor em uma daquelas frases lapidares: “depois de você, os outros são os outros/e só”.
Se fossa foooossa não é a sua e você está no meio de um relacionamento complicado, talvez você se arrepie com “Amor Por Retribuição”. Entre lágrimas no pijama, pinguins de geladeira e contas de amor, essa é uma letra que explica perfeitamente o que Arthur Dapieve escreveu sobre as composições de Leoni no clássico BRock - O Rock Brasileiro dos Anos 80: “[ele é] um artesão pop como poucos, capaz de embaralhar tolice e eternidade.” (Ah, esse também é o disco que tem a primeira “Garotos” e “A Fórmula do Amor”, uma canção que parece feita sob medida para John Hughes filmar – mas essa metáfora eu já usei com os Paralamas do Sucesso, então deixa pra lá).
Eu sei explicar exatamente porque fui ouvir Educação Sentimental esses dias: é um disco cujo universo contempla exatamente aquela época em que tudo que importa é ter seu coração preenchido por alguém. “Dinheiro? Trabalho? Inflação? Reforma Tributária? A situação da Rússia?” “Cara, nada disso importa se você tiver alguém do seu lado para chamar de amor”, provavelmente me diriam Leoni e Paula Toller se eu começasse a reclamar sobre as coisas lá do primeiro parágrafo.
É um disco em que até mesmo as músicas mais bestas são honestíssimas nessa proposta – o que dizer de “Nem Um Dia Em Cem”, tão tola quanto… eterna nos seus três minutos e meio, tal como uma bola de chiclete Adams? Ou então do fato de que “Educação Sentimental II” afanou na mão grande a introdução de “London Calling”, sinônimo de música engajada naqueles anos 1980, justamente pra falar de amor? Pô, o The Clash escondeu “Train in Vain” justamente pra não dar vazão aos sentimentos…
Ouvir Educação Sentimental, de certa forma, é entrar numa cápsula de 41 minutos e 22 segundos, onde nenhum problema que não for do coração não vale a pena. É um bálsamo que lhe permite sorrir, ficar triste, ansioso, chorar e sofrer, de forma que quando a agulha levanta e o alto-falante se cala, as emoções já passaram. Ouvir Educação Sentimental é também um espaço de nostalgia: em meio a tanto problema, confesso que sinto saudade de ficar ansioso por uma coisa mais besta. Também sinto saudade daquela sensação adolescente de estar fazendo uma coisa pela primeira vez, dos ritos de passagem – e eles cada vez não só vão ficar mais raros, como também vão ficar mais sérios.
Pensei nisso esses dias quando me dei conta que tenho a exata idade que meus pais tinham quando eu nasci, da mesma forma que também pensei nisso ao não saber dizer se me sinto jovem ou velho. É aquele sentimento que o Neil Young descreve tão bem com “tell me why/is it hard to make arrangements with yourself/when you’re old enough to repay/but young enough to sell?”. Ainda mais do jeito que vivo: sendo nerd desde muito cedo, eu acho que pautei boa parte das coisas que fiz na minha vida tentando não perder tempo, amadurecer mais rápido. Mas, se eu não perdi nenhum detalhe, onde foi que eu errei?
Eu sei, você sabe, não existe fórmula do amor – muito menos fórmula pra uma vida tranquila ou perfeita. Acho que eu coloquei John Lennon em três das quatro paredes da minha sala só para me lembrar constantemente de que a vida é mesmo aquilo que acontece enquanto a gente faz outros planos. Às vezes, eu sinto que perdi sim uma porção de detalhes – e entro numa espiral ao tentar descobrir o que é que eu tô perdendo agora. “Será que eu deveria ser menos caxias e viajar mais?” “Ou será que eu deveria é trabalhar de verdade pra ganhar mais dinheiro e parar de fazer tanta conta?” É difícil decidir o caminho certo, ainda mais quando sempre se parece estar deixando algo de lado. É por isso que às vezes, tudo que eu preciso é um abraço musical de Paula Toller, Leoni, Bruno Fortunato e George Israel, essa formação esquisita de voz-baixo-guitarra-sax.
Da mesma forma que às vezes, tudo que a gente precisa é de um drink inocente. Já falei que parte da minha razão de fazer essa newsletter é justamente descobrir novos paladares, novos sabores, novas bebidas. Beber é um jeito de descobrir a cultura do mundo, mas às vezes a gente não consegue nem sair do quarto. Nessas horas, o melhor a fazer pode ser recorrer a um coquetel simples, tão simples que parece juvenil. É o caso do Dirty Shirley, uma mistura bestalhona de vodka, groselha e soda limonada. Algo que você talvez já tenha até feito sem querer numa daquelas festinhas de condomínio – caso você pertença a uma juventude classe média criada em cidade com prédio, é bom fazer a ressalva.
O Dirty Shirley não nasceu desse jeito: ele é uma adaptação alcóolica de um drink que originalmente não tem álcool. Criado nos anos 1930, o Shirley Temple leva ginger ale e groselha, e supostamente nasceu num bar de Hollywood para ser justamente servido à atriz mirim homônima. Segredo: a própria Shirley Temple não só odiava o drink (“é doce demais!”) como também chegou a entrar na Justiça para proibir que o coquetel fosse vendido em latinhas, industrializado. Já a versão alcóolica do Shirley Temple tem várias variáveis: há quem o faça com vodka, limão, groselha e ginger ale, e há quem simplifique a fórmula para o que vamos beber aqui: vodka, soda e groselha. É uma combinação que parece mais doce do que é, especialmente antes do gelo começar a derreter – o mesmo gelo que pode ser aquele nariz torcido que você tem com o Kid Abelha.
Quando o gelo derrete e você se abre para ouvir o que Leoni e Paula têm a dizer, porém, é difícil resistir: às vezes, a vida só precisa ser doce mesmo, nem que seja por cinco minutos como em um sorvete de casquinha. Às vezes, a vida precisa ser menos elaborada e complexa, da mesma forma que beber um coquetel não deveria requerer uma pós-graduação em paladar.
Por uma noite ao menos, talvez tudo que a gente precise é de um coquetel doce e canções de amor, fazendo a gente sonhar com uma vida menos ordinária. Pouco importa que a casa está uma bagunça e amanhã é preciso acordar cedo, ou mesmo que uma crise de ansiedade tenha vindo morar no apartamento do lado e está pronta pra bater na porta. Sei que eu tô aqui dando plantão dos meus problemas, mas às vezes tudo que justifica a vida nesse instante é uma boa canção pop e um coquetel docinho. Só por hoje, vai lá dar play em Educação Sentimental – mas não esqueça do despertador amanhã, nem da porrada que a vodka pode te dar.
A Receita
60 ml de vodka
30 ml de groselha
120 ml de soda limonada
gelo
Fazer um Dirty Shirley é fácil, fácil, que não é à toa que eu chamei esse drink de drink de festa de salão de festas. Dá até pra improvisar num copinho de plástico. Tudo que você precisa fazer é começar com um copo e gelo, bastante gelo. Daí, coloque a vodka, a groselha e a soda limonada, nessa ordem. Se tiver uma colherzinha ou uma bailarinha, pode mexer um pouco. (Vale até usar o garfinho de bolo de aniversário, é só pra misturar um pouco – mas não muito porque a graça aqui é que a bebida vá se misturando aos poucos). Et voilá, está pronto seu Dirty Shirley, sabia? Agora é só aproveitar – e repetir.
Reclames da Semana
No Programa de Indie, eu e Igor Muller voltamos ao ano de 1973 para fazer uma viagem no tempo em mais uma edição do nosso Jubileu de Ouro, trafegando entre protopunks, afrobeats, ambiências e sambas tortos. Vai lá ouvir.
Dado que hoje é Dia Mundial do Rock, eu e o Igor também decidimos republicar um programa especial, em que a gente comemorou o 13 de julho de 2021 à base de… samba, claro! É o Hoje é Dia de Samba, Bebê, que chegou hoje cedinho ao Spotify.
Além do papo com o grande Guilherme Caetano para O Globo, também dei uma entrevista na semana passada pro UOL falando da ligação entre Zé Celso, Doutor Abobrinha, Silvio Santos e Castelo Rá-Tim-Bum. Chega mais!
Duas newsletters muito bacanas comentaram sobre o texto do Gilberto Gil na semana passada: uma foi a
, do , que republicou ainda um texto que me faz chorar sempre, sobre como a gente se conheceu e viu um show do Wilco juntos em Buenos Aires. A outra foi a , do , que fez um texto bem bonito sobre afrofuturismo e Gil e linkou a gente. Diego e Takeda, obrigado demais <3
Fala sério: você achou que eu ia falar de Kid Abelha e não dizer em cima da pia, embaixo da escada, né? Agora, está dito. Saúde!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Educação Sentimental, bem como da estreia do Kid Abelha, Sou Espião, e de repetidas audições de “Grand’Hotel”. Já o final do texto só saiu com “Avenida Dropsie”, da banda carioca Harmada, no repeat – a culpa é do Manoel Magalhães, que além de ter escrito essa baita balada, também foi quem me chamou a atenção para a beleza de “Grand’Hotel” pela primeira vez.
PS2: Tô com saudade de escrever uma edição Pergunte ao Bartender. Quero responder todas as suas dúvidas, até mesmo aquelas para as quais eu não tenho resposta. Parafraseando o grande Plínio de Arruda Sampaio, “vim para dialogar e estou aqui para responder perguntas sobre música e mixologia”.
PS3: Não tinha espaço para colocar no texto, mas tem uma história ótima sobre o Kid Abelha que explica a saída do Leoni na banda. Em um certo festival que tinha o Kid Abelha e Leo Jaime, Leo cantava “A Fórmula do Amor” e não disse, no palco, que a música também era de Leoni, que ficou bravo direto da coxia. Enquanto isso, a mulher de Leoni começou a discutir com Paula Toller, que a agrediu. Leoni tentou defender a mulher e acabou levando uma pandeirada de Paula na cabeça. Herbert Vianna, que namorava Paula na época, também se meteu na briga. Resultado? Leoni fora da banda e pronto pra montar Os Heróis da Resistência, que deu… em nada. A história, ótima, existe em vários livros, mas minha referência para várias coisas que escrevi aqui é o excelente BRock, do Arthur Dapieve. Tá fora de catálogo e longe da Amazon, mas vai fuçar no seu sebo favorito que você pode achar <3.
Obrigado meu caro Bruno Capelas, vc me fez lembrar como a vida era mais leve e doce nos tempos do Kid Abelha. Eu confesso que nunca parei pra ouvir um album inteiro do K.A. (hoje tá facil, temos Spotify, já está na minha biblioteca) mas vou assumir que, depois de algumas dúzias de Negroni, fica difícil experimentar um Dirty Shirley. Mas adorei a combinação! Parabéns!