#34: “Abaixo de Zero: Hello Hell”, Black Alien + Mate com Limão
"Nem mais um instante sem o som e a fúria": um papo sério sobre burnout, Rio de Janeiro, ficar maluco, busca de equilíbrio e a vida que é e a que poderia ter sido – com mate e limãozinho, faz favor!
Eu sei, eu prometi que a gente ia voltar a falar de coquetéis e discos essa semana, mas fui pego desprevenido pela medicina. Estou sem poder beber há uma semana, em meio a um tratamento dermatológico (sério!), e devo continuar ainda outra semana sem ingerir uma gota sequer de álcool. O que me deu a desculpa para escrever esse texto sobre uma das coisas que eu mais tomei na vida: chá mate gelado com limão. É também a desculpa para escrever sobre um dos discos que eu mais ouvi nos últimos quatro anos: Abaixo de Zero: Hello Hell, a obra-prima de Black Alien. Já quis escrever sobre esse negócio colossal há bastante tempo, mas não achava a fórmula certa – até me dar conta que escrever sobre bebida em um disco que tem uma canção chamada “Aniversário de Sobriedade” não ia dar exatamente certo.
A certeza que Black Alien tinha que harmonizar com Mate com Limão veio numa manhã de quinta-feira recente, na praia do Leme, quando estive no Rio de Janeiro para o Web Summit (e um pulinho no mar, claro, que o paulista aqui não é de ferro). Sei que os puristas devem estar me olhando torto por escolher o Mister Niterói para uma das bebidas mais cariocas que há. Devo dizer que também é quase impossível não ver um biscoito Globo pousando na foto ali de cima, que abre esse texto. Eu entendo, eu entendo. Mas prometo que tudo vai fazer sentido.
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Ir ao Rio de Janeiro no começo desse mês foi um encontro maluco com “o Bruno Capelas que poderia ter sido”. Explico: em meados de 2020, no auge da primeira onda da pandemia e à beira de um burnout não diagnosticado enquanto eu ainda trabalhava no Estadão, recebi uma proposta para trabalhar no Rio de Janeiro. O salário era bom, benefícios idem, numa empresa de prestígio, num escritório que não ficava na Barra da Tijuca. Eu era solteiro, tinha acabado de começar a morar sozinho e estava precisando de uma mudança de ares. Estava pronto para aceitar, mas meu instinto me angustiou dizendo para não ir – talvez porque eu fosse precisar acabar com o Programa de Indie, que naquela época ainda tinha poucos meses, talvez porque eu não conseguia me ver morando sozinho no Rio de Janeiro durante a pandemia, sem poder aproveitar o melhor que o Rio tem, que é a vida na rua. No fim das contas, não fui e esqueci essa história, do mesmo jeito que a gente esquece uma porção de dates ruins que teve por aí.
Lembrei disso justamente ao voltar à capital fluminense no começo do mês pela primeira vez desde 2017. Mais especificamente, esse flash veio à cabeça enquanto cruzava num Uber do Leme até o Riocentro, para ir moderar uma mesa no Web Summit com o CEO da Loggi. Distraído pela paisagem cenográfica de Pão de Açúcar, Botafogo e Flamengo, tentei imaginar como poderia ter sido a vida se eu tivesse dito sim. Será que eu teria mesmo tido aquele burnout? E o segundo? Estaria eu solteiro? Será que eu ainda teria os mesmos amigos? Teria deixado o cabelo crescer, como deixei? São muitas perguntas, para qual não há exatamente uma resposta – mas como diria Djavan, eu adoro um “se…”.
No dia seguinte, sentado na cadeira de praia e tomando um mate com limão, me dei conta de que aquela decisão foi uma bifurcação na estrada – e que não fazia sentido retornar para questionar. Cada escolha, uma renúncia, já dizia o poeta Chorão, e tal como um bom mate com limão, toda escolha tem um sabor doce e outro azedo. Não dá muito pra saber onde é que a gente vai parar em cada encruzilhada, mas entre uma onda gelada e outra, com medo de tomar um caldo na cabeça naquela praia de tombo que é o Leme, eu entendi que estava exatamente onde eu deveria estar.
Não é uma resposta simples para mim nos últimos tempos. Afinal de contas, depois daquele burnout no Estadão, veio outro, mais severo, no final de 2021, que me fez entender que o que tinha acontecido antes era de fato um esgotamento. (Como se as tardes chorando em posição fetal ouvindo Talk Talk não fossem suficientes, né?) Precisei largar um emprego tido como convencional – horário mais ou menos definido, carteira assinada, plano de evolução – para me cuidar. E no meio do caminho, virei freelancer. Free-lan-cer: essa palavrinha doida surgida ali no século XIX para denominar os antigos soldados mercenários medievais, que dispunham sua lança a quem pudesse pagar melhor, sem ficarem presos a um só senhor. (Valeu a pena ter acordado hoje, né?). Não virei freelancer exatamente por escolha, mas talvez por ser o único caminho que eu consegui enxergar naquele momento para pagar as contas sem precisar acordar todos os dias no contexto de uma empresa, entre reuniões de alinhamento, dailies e mensagens pipocando no Slack.
Digo isso porque… bem, porque eu nunca imaginei viver desse jeito. Com dez anos de carreira no jornalismo, entre estágios e CLT, eu já passei por mais empresas que meu pai e minha mãe juntos nas suas profissões. Ainda assim, desde adolescente, quando eu acordava de manhã e tomava chá gelado todo dia antes de ir pra aula, sempre achei que ia passar anos na mesma redação e ganhar o relógio dourado na aposentadoria. Eu advogo demais pelo conceito da CLT e acho até esquisito me ver como empreendedor do meu próprio tempo.
Mas é nesse mundo que eu vivo hoje, e ele tem me feito bem. Ainda que sempre pareça carecer de algum ajuste, é legal poder trabalhar no domingo e ir na praia numa quinta-feira qualquer, viajar pra outra cidade sem precisar pedir permissão ou preferir virar a madrugada em vez de cumprir horário. Talvez mais do que qualquer outra coisa, eu gosto da flexibilidade que essa vida me deu, mesmo sem ter certeza de que é uma escolha pra sempre.
O que raios isso tem a ver com Black Alien? É porque, de alguma forma ou de outra, eu sinto uma baita identificação com a jornada que ele percorre nesse disco, ainda que sejam histórias bastante diferentes, eu sei. Vou tentar resumir – mas a história é longa e boa, e merece uma imersão à parte. Nascido em São Gonçalo, e criado em Niterói, nome de batismo Gustavo de Almeida Ribeiro é o que se pode chamar de um veterano do rap nacional. “1993/primeiro da cidade/2019/poucos rappers dessa idade”, diria ele em “Take Ten”.
São três décadas de bons serviços prestados ao ritmo e à poesia, duas artes que ele domina como poucos no País, com demonstrações vivas no Planet Hemp, em duetos com nomes como Sabotage, ou ainda em sua carreira solo, iniciada em 2004 com o maravilhoso Babylon by Gus Vol.1 – O Ano do Macaco – e se você nunca ouviu essa belezinha, faz uma pausa e vai lá ouvir “Mister Niterói”, “Como Eu Te Quero” (que cita Charles Mingus numa rima safadíssima), “Babylon by Gus” ou “Umaextrapunkprumextrafunk”.
Se Black Alien já chamava a atenção no Planet Hemp, esse disco o alçou ao topo. Mas tudo que vai, volta: o sucesso também o fez entrar numa estrada cheia de pó, entre muitas outras substâncias, como ele deixa claro nas letras de Abaixo de Zero: Hello Hell. (Entre a estreia e o disco dessa semana, de 2019, há ainda Babylon by Gus Vol.2 – No Princípio Era o Verbo, que, após inúmeras tentativas, só saiu em 2015, quando o cantor já estava sóbrio há um ano).
Abaixo de Zero não é um disco fácil para digerir – e não foi fácil para mim nas primeiras audições lá no final de 2019, quando os primeiro sinais de desgaste do que viria a ser o burnout bateram na cabeça. Ao mesmo tempo, havia algo nele que me prendia, me fazia ouvi-lo de maneira quase hipnótica. Assim, já naquela época, Abaixo de Zero já foi um companheiro importante de fechamentos, pescoções e também de dias em que eu só queria abrir uma cerveja em casa e mandar todo mundo pra Portugal de navio.
Ainda que Alien diga que Abaixo de Zero não seja só sobre sua reabilitação – e não é, porque tem também um tanto de política, saúde mental, conselhos sobre a vida e ótimas descrições sexuais –, é um disco marcante por encarar o tema de frente. Repito: não é algo fácil de digerir de pronto, especialmente ao se ouvir temas como “Carta Pra Amy” (sim, a Winehouse) ou “Aniversário de Sobriedade”, que mostram bem o nível da parada em que Gustavo se meteu.
Por outro lado, enquanto busco controlar meus pequenos vícios todos os dias – que felizmente estão mais ligados a encher minha casa de discos e livros do que ao uso de diferentes substâncias, eu espero –, enxergo em Abaixo de Zero a jornada de alguém que viu a loucura da vida de perto e conseguiu voltar. A história de alguém que compreende que se manter na linha não é uma linha reta, e que sabe o equilíbrio é um exercício constante, mas nem sempre o mesmo, entre o doce e o azedo da vida. E que, como ele mesmo diz, que não é nenhum santo só porque tá em recuperação.
Não passei nem 1% do que Black Alien passou, pelo contrário. Não quero aqui posar de branquelo que gosta de rap com a mão pra cima levianamente nem fazer pouco de um vício, nem comparar A com B. Mas toda vez que ouço Abaixo de Zero, essas letras me abraçam – como podem bater fundo em qualquer um que se dispuser a decifrar as referências maravilhosas da Lírica Bereta. É com letras como “Take Ten” (em piscadela/homenagem ao mestre Dave Brubeck), “Jamais Serão”, “Carta pra Amy” ou “Aniversário de Sobriedade” que eu vejo a universalidade de Black Alien – algo disponível para qualquer um que já se pensou em jogar, seja da Pedra do Leme ou da janela mais próxima, por simplesmente não ver uma saída no dia a dia. Mas na verdade, há.
Não é fácil, claro que não, e todo dia é uma pequena luta pra não cair na loucura – trabalhar demais, beber demais, amar demais ou qualquer outra coisa em demasia dá pau, até mesmo descansar e viajar demais pode dar errado. E uso as palavras do Mister Niterói, de novo, pra talvez explicar um pouco o que eu sinto de vez em quando. “Eu quero ter o direito de tomar meu guaraná em paz”, como ele disse numa entrevista ótima para o jornal O Globo na época do lançamento de Abaixo de Zero. Guaraná ou chá gelado – que é uma parada que eu bebo desde moleque e nunca falta na minha geladeira. Mais que isso: é uma coisa que eu praticamente só bebo em casa (ou numa praia carioca), de preferência feito por mim mesmo.
Nas últimas semanas, eu lidei com excessos – uma noitada com cervejas pesadas, uma viagem longa o bastante para me tirar do prumo, uma quantidade cavalar de trabalho para compensar. São coisas que afetaram meu humor, para cima e para baixo, que me deixaram “sem paciência pra debate”. Aos poucos, eu chego no meu equilíbrio, e quase sempre ele passa por estar em casa por tempo o suficiente para conseguir fazer minha jarra de chá mate com limão. Viver na estrada é bom, mas é como se ir sempre fosse necessário para voltar – e não dá para deixar a garrafa esperando na geladeira senão ela fermenta e o chá estraga. Nada como um dia após o outro dia, e aqui eu vou na fé, no café, meu bem, e também no chá. (Desculpa estragar essa rima, Black Alien, ainda mais dessa música tão foda chamada “Vai Baby”, mas era o que tem pra hoje).
A Receita
chá mate a granel
1,5l de água
dois limões
açúcar a gosto
Sim, eu estou passando minha receita de mate com limão à vera. É o jeito que eu faço chá gelado em casa, que é diferente do que é vendido pelos ambulantes na praia. Primeiro porque eu mesmo defino minha quantidade de limão, enquanto o mate com limão é ao gosto do freguês. Segundo: na praia, não é limão, mas sim limonada, o que faz uma diferença dos diabos na proporção – tentei identificar minha dose favorita com 70% de mate com açúcar e 30% de “limãozinho”, mas aguardo ansioso para saber as proporções favoritas de vocês. E terceiro porque é difícil comparar o que se bebe na rua com o que se bebe em casa, né não?
Enfim, vamos lá: pegue um caneco de porte grande e leve ao fogo. Deixe a água ferver e adicione o chá mate a granel e a gosto – aqui, coloco o suficiente para deixar uma camada que não me deixe ver água, o equivalente a umas três ou quatro colheres de sopa. Na mesma hora, também já coloco o açúcar e o suco de dois limões médios dentro da infusão, e deixo esfriar. Quando acabar, basta coar a mistura, e transferir o líquido para uma garrafa pet, que vai pra geladeira. Pronto, tá aí o meu mate com limão. Meu chá eu não dou pra todo mundo não que ele já tem dona, mas a receita pode ser open-source, né?
Respira fundo que essa semana tem bastante reclame, viu?
Semana passada foi semana de festival aqui no Brasil, com a curadoria interessantíssima do C6 Fest rolando no Rio e em São Paulo. Na capital paulista, tive a honra de dividir a cobertura de três dias de shows com o Marcelo Costa, o Renan Guerra e o Fernando Yokota, que você pode conferir lá no Scream & Yell com direito a grandes shows de Black Country New Road, The Comet is Coming e Kraftwerk. Além disso, tem uma playlist de 22 vídeos (!) lá no canal do YouTube com destaques do festival, que teve Caetano, Tim Bernardes, Underworld, Arlo Parks, War on Drugs… vai lá!
Outro destaque da programação do C6 Fest foi a banda inglesa Dry Cleaning, uma das favoritas da casa no Programa de Indie. E a gente bateu um papo bem bacana com eles no programa da semana passada.
Eu também voltei a fazer dobradinha na seção de tecnologia do Estadão na última semana, escrevendo duas matérias. No domingo, saiu uma reportagem que tem tudo a ver com essa newsletter: é um perfil do Substack, plataforma que hospeda esta Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais, e que tenta virar sinônimo de newsletter na internet, prometendo vida além das redes sociais. Para me ajudar a destravar esse papo, conversei com gente bacana como a
, a e o .Além disso, também escrevi ontem sobre o que chamo carinhosamente de “Série B do transporte por aplicativo”, falando sobre apps de mobilidade de pequenas e médias cidades no Brasil que ocupam o espaço deixado em branco por Uber e 99 nos municípios de até 500 mil habitantes. Nomes como Urbano Norte, Ubizcar e Chofer46, que eu conheci depois de ir pra Porto Velho cobrir o Festival Casarão (lembra?).
Pra fechar, porque haja coisa (falei que tava trabalhando demais!) tem também uma entrevista com o Daniel Knopfholz, vice-presidente de tecnologia e de pessoas no Grupo Boticário – e o papo é justamente sobre como é colocar essas duas áreas juntas funcionando, ainda mais para um cara que é (surpresa!) jornalista de formação. Vai lá ler na Cajuína.
Eu sei, “minha cabeça falante fala pra caralho/e aí my talking head stop making sense”. Mas aos poucos tudo se encaixa. Até semana que vem!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Abaixo de Zero: Hello Hell, de Black Alien, bem como de Babylon by Gus, vol.1 - O Ano do Macaco. São dois discaços que qualquer fã de música brasileira precisa ouvir. Eu deveria ter falado mais do aspecto lírico-musical do disco, eu sei, mas a verdade é que Alien é um escritor tão foda na forma como une suas referências que eu nem consigo expressar isso direito. O mesmo vale pras bases deliciosamente construídas por Papatinho para o disco, à base de samplers de jazz clássico. É um disco que merece ser escutado no talo num carro, ou na sua sala de estar, com calma pra ir e voltar decifrando as letras. Até hoje, quatro anos depois, eu ainda descubro coisas novas – a mais recente foi a piscadela a Belchior em “Vai Baby”, essa música deliciosa pra caralho.
PS2: (Preciso dizer também que Abaixo de Zero é um dos meus discos favoritos pra beber sozinho em casa e chutar o balde, ainda que essa não seja uma prática recomendável).
PS3: Confesso que essa parada de não poder beber me deixou pensativo sobre como lidar com a ideia de escrever sobre álcool. Felizmente, tratamentos são temporários, música boa é pra sempre (e os otários que a gente sabe quem são jamais serão), mas eventualmente pode ser bom ter uma ou outra receita 0,0% na manga. Se alguém tiver sugestões, tô aceitando ali na caixa de comentários ;)
PS4: Se você não entendeu a piadinha do chá e da dona, ali no final da receita, eu explico. “Dar um chá” é uma gíria jovem pra sexo – mas não qualquer sexo, e sim aquele sexo envolvente, apaixonante, seduzente. Talvez aí você entenda não só o verso do Black Alien, a piadinha, mas também essa canção da Luiza Sonza. Depois não diga que eu não avisei.
Agora tô na dúvida se sabia ou não do seu burnout, Bruninho. Mas tudo bem. Fiquei feliz de ver que tá realizado na dura missão do frila - a sobriedade no enxergar a vida é uma arte mesmo, que pode ser levar talvez com um pouquinho de álcool, se for a tua. A newsletter e seus textos sobreviverão bebericando um drink ou uma água gelada.
Esse disco também é dos meus favoritos pra tomar uma sozinha.
Sou nova aqui na página e adorei que a primeira que chegou no e-mail foi essa.
Sobre drinks sem álcool, dá pra fazer uns xaropes interessantes com algumas ervas, frutas e afins e tomar com tônica por ex. Tipo uma soda italiana do sabor que você quiser! Umas infusões + xarope + tônica ou água com gás, há um infinito de combinações possíveis com essa base :)