#28: “Anjo da Guarda”, António Variações + Lady Macbeth
"Lá vai o maluco/lá vai o demente/lá vai ele a passar/assim te chama toda essa gente"
Dos quase trinta discos sobre os quais já escrevi nesta newsletter, talvez o álbum desta semana seja o menos conhecido pela vasta maioria dos leitores. Não tem problema, eu acho: Anjo da Guarda, álbum de estreia do cantor português António Variações, é uma daquelas coleções de canções que eu guardo no coração como um segredo bem guardado, um som de estimação, um pet sound. E se num primeiro momento pode soar esquisito falar de rock português (substantivo e adjetivo que juntos, compõem uma expressão que minha namorada transformou em sinônimo das minhas idiossincrasias), eu prometo que a viagem vai fazer sentido. Porque este pequeno disquinho, lançados há exatos 40 anos, me ensinou muitas lições – e acredito que algumas delas merecem ser divididas com vocês, queridos convivas.
Nascido em Fiscal, uma aldeia bem ao norte de Portugal, na região de Braga, Antonio Variações é uma figura difícil de se traduzir. Já tentei explicá-lo a amigos como uma junção de Raul Seixas e Cazuza movido a sintetizadores e um cheirinho de alecrim, mas a comparação é bastante precária. Gay, dono de uma personalidade muito forte, discreto, fã incondicional da fadista Amália Rodrigues e barbeiro de profissão antes de se transformar em cantor de sucesso, Variações (nome de batismo: Antonio Joaquim Rodrigues Ribeiro) é um nome incontornável da canção pop portuguesa.
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De uma maneira muito original, ele foi capaz de unir sonoridades tradicionais lusitanas com a modernidade do rock do final dos anos 1970 e o começo dos 1980, indicando variações em um caminho a se seguir para qualquer artista luso que quisesse conversar com o mundo sem largar mão do rio de sua aldeia – uma lição seguida por nomes como Deolinda, Diabo na Cruz, B Fachada e Pontos Negros. A questão é que Variações fez tudo isso em apenas dois discos (este e o também ótimo Dar e Receber, de 1984), frutos de uma trajetória interrompida bruscamente. No dia de Santo António de 1984, o cantor morreu aos 39 anos de idade, por conta de uma broncopneumonia – até hoje, especula-se que ele tenha sido uma das primeiras vítimas do HIV em Portugal. Não fosse o mito suficiente, é difícil ficar incólume a Variações por conta de seu visual, com uma barba comprida, poses, cores fortes e muitos, muitos adereços.
Devo ter escutado Variações pela primeira vez em algum momento de 2012 ou 2013, provavelmente prestes a embarcar para Portugal – graças a um generoso edital da USP que me permitiu fazer um intercâmbio sanduíche na graduação e morar seis meses em Lisboa. A escolha do país tinha motivos práticos (como a não-necessidade de comprovar fluência em outro idioma) e também familiares: não sei se já comentei aqui, mas dos meus quatro avós, três eram portugueses – e a avó que era brasileira era filha de portugueses. Não é à toa que meu bigode faz curva quando fica comprido.
Morar em Portugal era, certa forma, uma maneira de encontrar um pedaço grande de mim que eu não conhecia; para me preparar, fui procurar na música portuguesa um atalho para essa conexão, como quase eu sempre faço. Na época, o fado me parecia muito distante e antiquado (uma concepção que mudou bastante), então busquei o pop. Daí, para cair em Variações foi um pulo, uma vez que ele é quase sempre descrito com adjetivos muito semelhantes aos que usei nos últimos parágrafos.
Mas foi difícil me apaixonar por Variações – e por isso entendo caso você tenha colocado o disco para tocar e esteja torcendo o nariz aí na sua casa. Primeiro, por mais triste que seja escrever isso, é um bocadinho complexo entender o sotaque forte de Variações. Segundo, por conta do vocabulário: além de certas expressões, a colocação dos pronomes e outras formas/fórmulas do português de Portugal sempre me chamavam mais a atenção, atravessando o conteúdo.
Terceiro, por conta dos sintetizadores que abundam neste disco, uma cortesia do grupo GNR, que acompanha Variações nestas gravações, já que o próprio cantor não sabia música de maneira formal. Além disso, o canto “não treinado” de Variações por vezes faz manobras vocais que podem soar esquisitas ou até fora do tom a um ouvinte desavisado. Durante muito tempo, ouvi e ouvi e ouvi Variações sem conseguir entender onde estava a magia, até que um dia a ficha caiu. E caiu em muitos lugares diferentes.
Fruto de uma criação católica, em um país bastante católico e tradicionalmente conservador, em meio a uma época dramática (o fascismo à lusitana do Estado Novo de António Salazar), Variações era uma alma livre, mas atormentada pelas circunstâncias. E isso fica claro em canções em que ele contrapõe a moral corrente com a vontade de romper com tudo aquilo, como é o caso de “O Corpo é que Paga” e “É P’ra Amanhã”. Na primeira, um compêndio do conflito entre corpo e mente, entre o excesso e a correção; na segunda, a luta entre o “fazer hoje” e o “deixar para amanhã”, a força inexorável do tempo que passa. Foram canções que bateram fundo na minha cabeça ao longo dos anos – talvez por enxergar mais nas semelhanças da minha própria criação do que nas diferenças que tenho com Variações.
Em outros momentos, a sensação de isolamento e a vontade de romper com tudo é maior do que a necessidade de ficar na linha – mas como diria Caetano Veloso, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é. E não é à toa que às vezes, é fácil se sentir distante de todo mundo. É um sentimento que Variações canta muito bem nas baladaças “Estou Além” (dos defintivos versos “porque eu só estou bem/aonde eu não estou/porque eu só quero ir/aonde eu não vou”) e “Sempre Ausente”, esta com letra e melodia tão fortes que é possível se sentir voando para longe do resto da humanidade, tal qual o astronauta de Roberto Carlos. Curioso é pensar que por meio de canções tão sofridas, Variações encontrou seu caminho na música pop, fazendo sucesso como um foguete e sendo aplaudido por crianças, jovens, adultos e idosos. É quase como se o caminho para acabar com a solidão fosse justamente abraçá-la por alguns minutos.
Anjo da Guarda, porém, passa longe de ser um disco triste: a maioria de seus arranjos é para cima, como cabe à new wave da época, Variações é um cantor cheio de carisma e energia e há músicas que, com um humor fino, são ótimas sátiras – caso de “Quando Fala Um Português…”, que sempre me faz rir lembrando de reuniões de família em que as pessoas se atropelam contando histórias (e quase sempre subindo o tom de voz para se fazerem escutar). Isso para não falar em um par de músicas que faria muito sucesso no esoterismo típico dos nossos dias (“Linha-Vida”, em que ele busca descobrir seu futuro por meio de uma sessão de quiromancia, ou “Visões-Ficções (Nostradamus)”).
Ou ainda na excelente “Voz Amália de Nós”, uma declaração de amor à fadista que, após a queda de Salazar, andava bastante em baixa em Portugal por falsos rumores de seu alinhamento com o Estado Novo. Bobagem: além de ser costumeiramente censurada, Amália dava dinheiro clandestinamente ao Partido Comunista Português, resistência à ditadura de então, e é uma voz que merece ser ouvida, sempre – como Variações deixa claro nos versos “Todos nós temos Amália na voz/e temos na sua voz/a voz de todos nós”. (Por falar em Amália, vale citar ainda a versão muito particular e cheia de sintetizadores que o cantor fez de “Povo que Lavras no Rio”, clássico da fadista presente que abre versão em CD de Anjo da Guarda, mas originalmente só tinha saído num compacto).
Foram necessários alguns anos para que eu me apaixonasse de vez por Variações. Mas esse disco me ensinou a valorizar as minhas raízes, ao mesmo tempo que me fez descobrir uma forma de abraçá-las sem precisar ficar arraigado a pequenas tradições. Afinal de contas, nas fotos, a aldeia de onde Variações saiu não é lá muito diferente da Seixas da Beira de onde saiu o seu Capelas original, o vô Armindo, no começo dos anos 1950. É um disco no qual eu encontro conforto em dias que me sinto um tanto distante do resto do mundo, um tanto quanto perdido, às vezes remando contra a maré. E é um disco que eu ouço sempre que dá saudade dos dias e noites morando em Portugal – e nessa semana que o vô completaria 95 anos e que faz 10 anos que eu peguei aquele avião, a saudade ficou um tantinho maior do que o costume.
Da mesma forma, quando a saudade lusitana aperta, eu sempre busco ter um cálice de Porto à mão. O “Portinho” foi, durante muitos anos, meu ritual de aniversário: na madrugada da virada de novos anos, eu bebia um cálice sozinho e refletia sobre a próxima volta em torno do Sol. Mas só uma dose pura de vinho do Porto não faria jus a Variações – ainda mais porque ele mal bebia, devotando todos os seus vícios ao colecionismo de tralhas da Feira da Ladra… e ao sexo, a aventura dos sentidos, como ele descreveu tão bem na excelente “Canção do Engate”.
Era preciso buscar um coquetel que tivesse Portugal no paladar, mas estivesse além – e a resposta eu achei no Lady Macbeth, um coquetel tão decadente quanto extravagante, uma combinação de Porto com espumante que serve de trilha sonora para Lady Gaga no Booze and Vinyl. Não sei exatamente quem inventou esse drink, o livro não diz e as buscas na internet foram inconclusivas, mas sei que ele me traz bem esse gosto de um Portugal-além, além de trazer a delícia (é uma bebida sexy) e a dor (dá uma boa ressaca).
Sei que hoje pode parecer esquisito pensar em Portugal como um lugar uncool, mas o pais que eu vivi e a Lisboa Instagramável de hoje dia são dois lugares bem diferentes. Pouco importa: seja você português, brasileiro ou de qualquer outro canto, tem um pouquinho do drama e da beleza de Variações na sua vida, eu garanto. Todos nós temos Variações na voz – e temos, na sua voz também, a voz de todos nós. Só falta você descobrir.
A Receita
60 ml de vinho do Porto tinto
120 ml de espumante/frisante
casca de limão, para decorar
Fazer um Lady Macbeth é tarefa das mais fáceis, prometo: para começo de conversa, pegue uma flute – aquela taça de champanhe comprida e esguia. Despeje nela uma dose de vinho do Porto tinto, que pode ser Ruby ou Tawny. Aqui, uma aulinha rápida: o Ruby é um Porto mais fresco e frutado, que descansa em barris por 2 a 3 anos; já o Tawny envelhece de quatro a seis anos na madeira, com mais gosto de especiarias e frutas secas. A receita original do Lady Macbeth pede Ruby, mas confesso que não sinto muita diferença – e se é para ter uma garrafa à mão na sua adega, prefira um bom Tawny.
Depois de despejar o Porto, basta colocar o dobro de espumante na sua taça e decorar com uma casca de limão. (Aqui em casa, por falta de espumante, acabei usando um Lambrusco na hora de escrever a coluna, que formalmente é um frisante, mas o resultado foi bastante parecido). Et voilá, está pronto o seu Lady Macbeth, um coquetel que já fiz várias vezes no fim de noite para surpreender amigos – e um deles gostou tanto que quase acabou com a garrafa de Porto que eu tinha em casa.
Vamos nós com os reclames da semana!
O Programa de Indie recém-completou três anos (parabéns pra gente êêê) e para marcar essa festa, eu e o Igor Muller convidamos um dos nossos artistas brasileiros favoritos, o Lucas Gonçalves, para ocupar o piano da Eldorado. O resultado foi uma sessão incrível, que teve até música inédita e um easter egg especial no final. Chega mais!
No Scream & Yell, tem texto meu sobre o incrível show da Lianne La Havas em São Paulo, além do Especial de Melhores do Ano. Eu brinco que o ano não começa enquanto a lista do S&Y não sai – e eu participo dela com muito orgulho desde 2010 (!). Pra quem ficou curioso, aqui seguem meus votos.
Semana passada eu enviei pra vocês um questionário querendo saber mais sobre quem lê essa newsletter e o que vocês procuram aqui. Já recebi respostas que ajudaram muito (inclusive, conviva que pediu drink com Porto, espero ter ajudado!), obrigado de coração <3. E se você não respondeu, ajudará bastante se responder aqui, ó.
Tem newsletters que a gente segue que são regulares, cheias de notícias. Outras aparecem de vez em quando. Algumas aparecem de vez em nunca, mas nem por isso deixam de ser incríveis. É o caso da
, da , com crônicas excelentes que vocês deveriam ler. Aqui a indicação é mais do que só uma indicação: é um pedido para que essa newsletter bissexta seja só um pouquinho mais frequente.
Jovens, lembrem-se: se um coquetel é bom demais, vale a pena repetir. Porém, “se a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga… mas deixa-o pagar, se tu estás a gostar”. Saúde!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Anjo da Guarda, de António Variações, bem como de Dar e Receber, o disco seguinte do cantor. Além disso, recomendo demais que você procure o disco Humanos, projeto com David Fonseca, o fadista Camané e Manuela Azevedo, do Clã, que gravou canções inéditas e rascunhos de músicas de Variações no começo dos anos 2000. Também recomendo esse concerto em homenagem a Variações no Rock in Rio Lisboa com Gisela João, Linda Martini e Deolinda, que traz arranjos um pouco mais modernos pras músicas dele, incluindo a incrível “Toma o Comprimido”. Pra encerrar, vale ainda ir atrás do filme Variações, uma cinebiografia bem redondinha sobre o cantor. Ufa!
PS2: Eu sei que parece engraçado, mas eu realmente gosto muito de rock português. E já gastei muitas linhas falando disso pela internet, até mesmo em um podcast de doze capítulos chamado Roque da Casa. Prometo que não vou transformar essa newsletter numa filial do Consulado Português, mas provavelmente vou voltar a esse tema mais algumas vezes. Espero que vocês embarquem nessa caravela comigo.
PS3: Eu sei que falei bastante sobre Variações nessa newsletter, mas não falei quase nada da “Canção do Engate”, canção maravilhosa que, por azar, está no outro disco do cantor. Mas é uma música linda, para qualquer coração que já se sentiu desprezado buscando alguém, qualquer pessoa. E particularmente, sou fã da versão do Tiago Bettencourt, que fez parte da banda Toranja – ainda que aqui no Brasil muita gente conheça a versão da Filipe Catto.
PS4: Eu juro que tô acabando, mas acho que vale o link. Uma das missões mais importantes que eu cumpri quando fui a Portugal em 2013 foi conhecer a aldeia de onde seu Armindo saiu para vir para o Brasil. E escrevi um relato muito sincero sobre aquilo já tem uns dez anos, num antigo blog que ainda permanece online. Para quem tiver a curiosidade de saber mais da Seixas da Beira, fica aqui o enlace.