Toda vez que peço uma bebida num balcão, me permito aspirar a uma vida diferente da que tenho – basta um gole bem feito para me transportar a outra realidade. Se o poeta é um fingidor, como diria Fernando Pessoa, o bartender é um mestre dos disfarces, abrindo uma adega como quem sugere diferentes fantasias para variadas ocasiões. Poucos coquetéis têm esse poder como têm a Mimosa, um drink com nome de flor, normalmente servido numa flute, formato de taça que é sinônimo de extravagância na minha cabeça.
Beber uma Mimosa, para mim, é imaginar que tenho uma vida sem preocupações. Ter o discreto charme de ser um herdeiro, de uma riqueza geracional que me permitiria viver à beira de uma piscina, colecionando discos de vinil e almoçando camarão sempre que possível. Almoçando não: comendo um brunch, depois de fazer samba e amor até mais tarde! Seria como viver na trilha de uma novela de Manoel Carlos – ao menos, se eu tivesse uma herança.
É raro o momento em que posso dizer que vivo despreocupado – algo que parece fazer parte da ética do trabalho forjada em uma família portuguesa e pragmática. Sei que isso se reflete muito nos meus hábitos de mixologia: normalmente, costumo beber em casa com ingredientes que tenho à mão. Rum, gim, Coca-Cola, água com gás, limão, água tônica, açúcar… dificilmente eu costumava passar disso. Qualquer coquetel que pedisse algo diferente parecia exigir uma ocasião especial. E o que dizer da Mimosa, uma junção de suco de laranja com champagne? Ok, o suco eu até costumo ter em casa para reforçar as doses de vitamina C, mas champagne?! Quem é que tem uma garrafa de champagne dando sopa por aí, sem ficar guardada no fundo da geladeira esperando uma promoção, um aniversário, um pedido de namoro? Bem, com o tempo eu descobri que muita gente tem – e se você achar que é o caso de gastá-la por aí, uma Mimosa talvez seja uma das melhores combinações possíveis.
Não é à toa que a Mimosa é a bebida oficial do brunch – é uma refeição que tem a medida exata da extravagância, da despreocupação, de quem acordou tarde demais e pode se dar ao luxo de juntar duas refeições numa só por opção, não por exclusão. Se você está bebendo logo de manhã, é talvez porque a vida esteja mais simples (ou você tem problemas graves, mas não estamos aqui para fazer qualquer tipo de apologia ao alcoolismo). Perceba que existe uma diferença sincera aqui entre beber de manhã ou “tomar uma cerveja antes do almoço”, como diria Chico Science. O primeiro cenário serve a qualquer lugar diáfano na ronda das horas; o segundo é a certeza do cidadão comum de que haverá um almoço para regular os pensamentos (e o nível de álcool no sangue).
Eu tenho vivido novos tempos: pela primeira vez desde que comecei a trabalhar, não tenho um único emprego fixo, mas vivo de projetos. E isso significa que às vezes estou atolado de reuniões e há dias em que eu posso me dar ao luxo do dolce far niente – felizmente para o meu bolso, tenho tido mais dias do primeiro do que do segundo. Ao mesmo tempo, uma das coisas mais legais de se fazer essa newsletter tem sido expandir meus horizontes. Gustativos, é claro – e o texto do Negroni na semana passada foi um ótimo exemplo. Mas também os horizontes reflexivos.
Não acho que seja fácil, mas uma reflexão recente foi a de que seria bonito se a gente conseguisse ter uma sociedade em que todo mundo tem direito a tomar uma Mimosa num dia despreocupado, sem contenção. Em que todos os direitos estão garantidos e arraiazinha mais miúda pode sonhar com um colar de pérolas. Em que a gente pode se preocupar em só curtir a brisa doce que vem do mar ouvindo bonitas melodias, como num daqueles discos de bossa nova easy listening meio lounge. Infelizmente, essas coisas só tocam mesmo quando eu vou ao dentista.
Estou brincando quanto à parte do meio lounge: acho esse tipo de som uma praga infeliz, uma imagem plastificada do Brasil sem qualquer personalidade. É a reprodução malfeita de uma matriz que é lá bem interessante: Bebel Gilberto. Dona de uma voz elegante (também pudera: a genética do pai João Gilberto e da mãe Miúcha favorece), Bebel construiu uma carreira em torno da atualização de sons brasileiros para uma ideia de modernidade.
Ao trazer samples e elementos eletrônicos para a mesa, ela foi capaz de gerar uma nova forma de bossa nova, muito sofisticada, levando as melodias de nomes como Baden Powell, Marcos Valle e João Donato para as pistas de todo o mundo. É o som de um futuro que não é mais o que era antigamente – aquela época, nos anos 1990, em que a gente acreditava que a globalização traria uma vida melhor e a potência criativa do Brasil nos levaria a algum lugar. (Desculpem o pessimismo). Olha só se esse vídeo aqui, um favorito da filmoteca de Seu Capelas, não diz tudo isso – e com um belo vestido Diane von Fürstenberg.
Lançado em 2000, Tanto Tempo, primeiro disco de Bebel, é outro claro exemplo do que eu estou falando. Seja relendo clássicos (“Samba da Benção”, “Summer Samba”, “Samba e Amor” e, ufa, uma música sem samba no nome, “Bananeira”), seja em composições próprias (“August Day Song”, “Mais Feliz”), a cantora traz à mente de seu ouvinte paisagens belas, idílicas, em que a maior preocupação são os dramas e as delícias de relacionamentos.
Concebido pela filha de João Gilberto ao lado do produtor sérvio Suba (que morreu tragicamente salvando as matrizes do trabalho de um incêndio), esse é um disco que fez muito gringo prestar atenção pela primeira vez que um país chamado Brasil tinha música legal – de novo, a mágica dos ritos de iniciação. Para quem estava no Brasil, por outro lado, foi uma indicação de caminho em como a música daqui podia se aliar ao drum’n’bass, ao trip hop, ao downtempo, a qualquer novo ritmo contemporâneo.
Hoje, escutar Tanto Tempo pode ser um exercício curioso, ainda mais com o ouvido contaminado com tanta bossa nova lounge tocada por aí. É um disco cujos méritos e defeitos coexistem: ao mesmo tempo em que passa uma imagem do Brasil, ele também reflete o que o Brasil não é. É quase como uma canção do autoexílio – vale lembrar que Bebel saiu do Brasil em 1991, e nos nove anos entre a ida e este álbum, ela circulou mais por Londres e Nova York que qualquer outro canto. Talvez por isso justamente ele pareie tão bem com a Mimosa: o suco de laranja me dá a impressão de que estamos falando dos trópicos, mas o champagne me lembra que não é bem assim. A sofisticação dos arranjos harmoniza muito bem com a flute em que tomo minha Mimosa, mas lembro que o equilíbrio das coisas é delicado nesse lugar em que tudo que é construção já parece ruína.
Ainda assim, volto a dizer: há uma beleza na Mimosa e em Tanto Tempo, como há nas imagens clássicas do Rio de Janeiro e nos clipes que passavam um núcleo a outro nas novelas de Manoel Carlos – minha referência para folhetins românticos desde que eu era pequenino de pé no chão. Nem todos são os dias em que é possível apreciar tudo isso com calma, mas a beleza da música e da mixologia é justamente essa: basta um gole, um acorde, pra gente se transportar para um lugar diferente e just la la la ia. Parafraseando Trotsky, sonho com um dia que a revolução trará o direito não só ao pão, mas também à mimosa. Desculpem o socialismo de boteco, na próxima edição eu juro que volto mais calmo. De qualquer forma, segue aqui a receita da Mimosa.
A receita
uma parte de suco de laranja bem gelado
uma parte de champagne brut bem gelado (ou espumante)
Parece fácil, né? E é: basta despejar os dois líquidos numa taça flute e mexer suavemente com uma bailarina. Se eu fosse rigoroso, teria que mudar um bocado as coisas aqui: de acordo com o Difford’s Guide, a receita que tem partes iguais de suco e champagne é uma Mimosa, mas ela teria de ser servida não numa flute, mas sim numa taça de vinho – e com gelo. Quem é servido numa taça flute, por sua vez, é o Buck’s Fizz, mas este leva uma parte de suco de laranja para duas de champagne ou espumante – afinal, champagne é denominação de origem, mas a gente esquece disso às vezes.
O que importa é que tanto Mimosa quanto Buck’s Fizz foram inventados nos anos 1920 e remontam a certa época que bartenders chamam de decadente, talvez pela força tropical do suco de laranja falando alto aqui. Outras variações, como a Grand Mimosa, contém um jatinho de licor (no caso, Grand Marnier) além do champanhe e do suco. No entanto, isso é um purismo: a receita que acabou se espalhando pelo mundo é mesmo a de proporção 1:1, numa flute. Seja como for, vale também o conselho: você pode ajustar a sua proporção a olho, dependendo do nível de suco ou álcool que quiser inserir no seu organismo . Afinal de contas, se você já está bebendo uma Mimosa, é porque pode se dar ao luxo de fazer o que quiser.
E pela primeira vez na história dessa newsletter, não vou indicar marca nenhuma de nada. Acho que eu nem sei o que fazer para indicar uma marca de champagne para alguém – pega aquela que veio na cesta de Natal da firma do ano passado e toca o barco, sabe? Bananeira, não sei, isso é lá com você.
Agora, vamos aos reclames da semana:
Escrevi uma reportagem-análise para a GQ Brasil desse mês de agosto sobre o momento atual do mercado de startups. Acho que é uma boa dica para quem quer entender o que está por trás de tantas demissões – está na edição que tem o Brad Pitt na capa, num perfil da Ottessa Moshfegh (de Meu ano de descanso e relaxamento). Chique, né?
Também dei uma entrevista bacana sobre os 80 anos de Caetano e os 50 anos de Transa (já já ele aparece aqui) para o jornal O Tempo, em uma matéria legal demais do Alex Ferreira.
E como prometi já há algum tempo, finalmente tá no ar minha entrevista com o Maurício Pereira no Scream & Yell. É sobre o disco novo dele, Micro, mas também é sobre a vida de artista independente, São Paulo, Brasil, ter filhos e resistir, dia a dia, contra a dureza da vida olhando pelo mundo com lupa de poesia. Acho que é das entrevistas mais bonitas que eu já fiz – e o mérito é todo do Maurício.
Fechou? Então é isso: nos vemos no calçadão do Leblon, jogando altinha… e bebendo Mimosa. Até a semana que vem! Saúde!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: A ideia para este texto nasceu, devo dizer, muito antes de Bebel Gilberto viajar na maionese e pisar na bandeira brasileira. Eu até entendo o que ela quis dizer, mas a bandeira nos pertence – e cabe a nós retomá-la, de alguma forma. É como Bono diz, no início de Rattle and Hum, ao começar o resgate de uma grande canção, “Helter Skelter”: “this is the song Charles Manson stole from the Beatles. we’re stealing it back”.
PS2: O que não quer dizer, no entanto, que este texto devesse deixar de existir. Se você discorda, topo super conversar.
Eu agora, quando ouço um disco, já fico imaginando a bebida pra acompanhar.
Por incrível que pareça, a viagem da Bebel Gilberto me ajudou a criar algumas pontes com algumas pessoas, no melhor estilo "steal it back".