#19: “Outubro ou Nada”, Bidê ou Balde + Garibaldi
"Por uma noite apenas serei seu, é foda! / Guaraná é bem melhor que soda"
Tem certas bebidas que pedem certa dose prévia de ironia no sangue. Não basta apenas olhar no cardápio e pedir para o garçom: é preciso honrar o álcool que lhe é servido no copo, por menor que ele seja. Às vezes a bebida pede charme (como é o caso do Old Fashioned, talvez uma dívida com Don Draper) ou leveza (qualquer bebida apresentada numa flute). Já a ironia é uma categoria especial – e acredito piamente que ela pertence a duas categorias de bebidas em especial. A primeira é qualquer coisa que leve Campari e não se pareça com um Negroni (incluindo Boulevardiers, Americanos e outros drinks parecidos). A segunda são coquetéis de brunch, feitos para serem bebidos no café da manhã. Felizmente, o Garibaldi é um drink que mistura essas duas características, uma vez que é composto de basicamente dois ingredientes: Campari e suco de laranja.
Criado na Itália, como uma homenagem ao revolucionário que ajudou a unificar o país da Bota, o Garibaldi é um drink simples, mas que guarda camadas de complexidade. Afinal de contas, se misturar o Campari com uma rodela de laranja é algo mais ou menos corriqueiro, fazer o licor amargo imergir em puro suco de laranja sem perder sua integridade é um negócio bem mais complicado. No entanto, graças a alguns truques (que eu vou revelar lá no final), essa é uma bebida que bate gostoso para quem já aprendeu a apreciar o amargo da vida – como só os irônicos e os cínicos são capazes de fazer. Subestimado durante muito tempo, o Garibaldi ganhou nova vida há menos de uma década, quando passou a fazer parte do cardápio do Dante, um bar novaiorquino de inspiração italiana.
Aqui no Brasil, no entanto, o Garibaldi bate diferente – e não é à toa. Entre muitas e muitas tentativas de unificar a Itália, que no século XIX consistia em um amontoado de principados e pequenos territórios, o italiano Giuseppe Garibaldi passou uma temporada de quase dez anos na América do Sul. Aqui, não só encontrou o amor da catarinense Anita Garibaldi, como também ajudou Bento Gonçalves na Revolução Farroupilha.
Se você tem mais ou menos a minha idade, deve ter lido os nomes dos personagens e visualizado Thiago Lacerda, Giovanna Antonelli e Werner Schunemann, seus intérpretes na histórica A Casa das Sete Mulheres, série da Globo que contou de forma romanceada as desventuras da Guerra dos Farrapos. Por isso, e não só, era necessário harmonizar esse drink com uma banda gaúcha. Mas não podia ser qualquer banda: precisava ser uma banda que carregasse não só a ironia no sangue, mas também tivesse a panca de beber logo no café da manhã sem que isso pareça um problema.
É talvez o motivo pelo qual o Engenheiros do Hawaii tenha sido eliminado logo de cara – eu só consigo imaginar Humberto Gessinger se desdobrando num bar à meia luz, não exatamente tomando um drink de canudinho na piscina e óculos escuro. Também não dá pra imaginar essa cena com os garbosos rapazes da Graforreia Xilarmônica: o Garibaldi é um drink deveras flamboyant para combinar com a chinelagem dos autores de “Amigo Punk”. A escolha quase recaiu sobre a Video Hits, dona de petardos irônicos maravilhosos, mas Registro Sonoro Oficial é um disco que parece ligado no 220V, sem a calma de quem bebe esperando a ressaca passar. No fim das contas, não há banda mais perfeita que a Bidê ou Balde e o seu segundo álbum, Outubro ou Nada, para dar esse clima: um disco com canções balançadas e baladas, repleto não só de letras engraçadinhas ironias, mas também de piadas internas gaudérias – e viva o Claudiomiro com a camisa vermelha, bah.
Sei que já deve ter gente aí torcendo o nariz enquanto me lê. Calma, Betty: a relação de amor com a Bidê aqui é antiga. Eu mal tinha aprendido a usar o Napster quando aqueles gaúchos malucos apareceram no palco do VMB vencendo o prêmio de Revelação em 2001, com “Melissa”. Foi uma vitória improvável demais: eles concorriam com o Falamansa, o KLB e o O Surto (aqueles do “me pirou o cabeção” e do “roubaram meu Playstation/triste mas eu não me queixo”). Mais do que uma grande canção pop, “Melissa” me fez prestar atenção em um tipo diferente de rock, meio maluquinho – não à toa, a outra banda que eu amei ver vencer naquele VMB foi o Pato Fu gravando “Eu”, da… Graforreia Xilarmônica. O mundo é uma vila, e no meio dessa vila tem uma avenida chamada Oswaldo Aranha, por onde passeiam cadelinhas undergrounds e popstars de bairro.
“Melissa” e seu refrão incrível – que até hoje eu uso como justificativa pro fato de ter uma CNH nunca usada – eram a ponta de lança de Se Sexo é o Que Importa, Só o Rock é Sobre Amor, disco de estreia da trupe liderada por Carlinhos Carneiro, que existe desde 1998 em Porto Alegre. Aquela, porém, estava longe de ser a única grande canção do trabalho: Se Sexo… tinha ainda uma versão esperta de “Buddy Holly” (que me abriu a cabeça para o Weezer), a divertidíssima “Sr. Promotor” e a fofa “Gerson”, conhecida no meu HD mental como “a melô do divorciado”. Mas era um disco ainda inocente, que o diga a última faixa, “Back to Quinze”, dos gloriosos versos “eu não como mais biscoito/agora eu só como você”. (Não que isso seja um problema, claro)
Lançado dois anos depois, Outubro ou Nada já trazia alguns calos de rodagem de estrada, deixando os tempos de “jovem adulto” um pouquinho para trás – e um ótimo retrato disso é “Hollywood #52”, que abre o disco com críticas ao showbiz e guitarras elaboradas. Não é só isso: se no primeiro disco os arranjos apontavam muito para o Weezer e outros ícones dos anos 1990, aqui os teclados de Katia Aguiar e guitarras da dupla Leandro Sá e Rodrigo Pilla já trazem um sabor oitentista, dando um abraço enorme não só no Devo mas também no B-52’s, em perfeito equilíbrio agridoce new wave. (Vá lá, os teclados também tem muito de The Rentals, a banda que o ex-baixista do Weezer Matty Sharp montou tempos depois).
Não que o frescor pop (digno de suco de laranja espremido na hora) não estivesse lá: “Cores Bonitas”, “Microondas”, “Bromélias” e “Soninho”, para ficar em apenas quatro, são canções pop assobiáveis deliciosas, pra arrasar na pista ou ouvir com o vidro do carro abaixado e vento na cara. Mas todas elas, cada uma à sua maneira, tem lá seu travo – seja o desencontro de “Bromélias”, o acalanto entrecortado pelo capitalismo de “Soninho” ou o reencontro de “Microondas”, definida certa vez por Carlinhos como “uma música que é sobre comer alguém que tu já comeu”. (Se não me engano, isso foi no palco do Jukebox Festival, em 2011, num dos melhores shows da minha vida, com direito até a cover de “Blister in the Sun”, do Violent Femmes). Aliás, fica a dica: se a Bidê passar na sua frente, não hesite em ver. Carlinhos Carneiro é um dos maiores animais de palco do rock brasileiro, não importa a época.
Beber, digo, ouvir essas músicas tem o exato gosto do Campari se chocando com o cítrico: é doce, mas você sabe que alguma hora vem um negócio amargo aí. Porém, a ironia da Bidê ou Balde neste Outubro ou Nada não é aquela ironia carregada de quem já viveu demais. É só a de quem já aprendeu algumas coisas, como o fato de que o melhor remédio para lidar com uma manhã de ressaca pode ser beber um pouquinho – afinal de contas, “sem proteínas e uns bons hematomas nenhum ser humano consegue viver”. É a ironia do jovem que tem a moral de fazer uma música chamada “O Antipático”.
Ou aquela risadinha no canto da boca de quem vivia nos tempos do trabalho presencial e adorava quando chovia para chegar atrasado, mas que é capaz de se apaixonar à primeira vista no aeroporto. É sobretudo uma ironia divertida, como um bom filme de verão – e eu não consigo pensar em um coquetel que eu queira beber mais à beira de uma piscina nos próximos meses do que um Garibaldi bem gelado, pra esquecer os momentos mais difíceis deste 2022 que parece longe de acabar.
O que isso tudo tem a ver com o revolucionário italiano? Eu não sei, sinceramente – confesso que até acho meio difícil entender porque uma bebida tão fresca homenageia um homem que viveu a vida em guerra em prol de seus ideais. Mas para mim, a palavra Garibaldi remete muito mais ao Rio Grande do Sul, e daí para cair no rock gaúcho é um pulo. E enquanto hoje parece meio besta dizer isso, preciso confessar que sem bandas como Bidê ou Balde, Cachorro Grande, Wonkavision, Video Hits e Wander Wildner, minha vida teria sido bem mais chata. (Não, eu não gosto de Ultramen, próximo assunto!) Ok, talvez eu não falasse tanto “bah” e “tu” sem querer, mas isso é um mero detalhe.
Durante algum tempo, eu achei que essas bandas (e tantas outras!) tinham tudo para tomar as paradas de sucesso de assalto. Não rolou: depois de Outubro ou Nada, a Bidê lançou um terceiro disco (É Preciso Dar Vazão aos Sentimentos), mais fraco, mas que tinha a baladaça “Mesmo Que Mude”. Mais ou menos na mesma época, a banda gravou o Acústico MTV Bandas Gaúchas, foi acusada de pedofilia com “E Por Que Não?” e passou a segunda metade da década de 2000 inativa. Quando voltou, já no início da década seguinte, os shows continuaram incríveis, mas parte daquela energia caótica das composições dos primeiros anos havia se perdido. Fique claro: nessa segunda fase, há singles ótimos, como “Me Deixa Desafinar”, mas também um monte de canções que repetiam o que eles já tinham feito antes. Faz parte, e “tudo bem”: já tinha sido mais que suficiente.
Pra quem? Pra mim, claro: bandas como a Bidê me fizeram seguir ouvindo música maluca e transformaram minha vida numa busca incessante atrás do ideal do refrão perfeito, um atrás do outro, todos os dias. Ok, pronto, tá aí a conexão com Garibaldi – uma prova que, por trás de toda ironia, também tem um coração batendo. Agora me passa mais um copo que eu pulei demais ouvindo esse disco, talvez já não esteja mais fazendo sentido e tenho sede.
A Receita
45 ml de Campari
120 ml de suco de laranja
5 ml de xarope de açúcar
gelo
Fazer um Garibaldi é tão fácil quanto se pode esperar de um drink de café da manhã, meio ressaca, Ray-Ban na cara e roupão vermelho. Mas tem alguns truques: antes de começar, você deve bater o suco de laranja em alta velocidade, para deixar ele com espuma. Isso vai deixar o suco aveludado que nem um terno cotelê. Na sequência, pegue seu copo e coloque duas pedras de gelo, o Campari, o xarope de açúcar e metade do suco. Mexa com calma para misturar tudo. Depois disso, basta apenas colocar mais algumas pedras de gelo (três ou quatro, vai) e derramar o suco com delicadeza. Pode ser bruto também, mas se for na maciota, seu drink vai ficar com um bonito degradé que pode te entreter por alguns minutos. Última coisa: especialistas costumam fazer o Garibaldi num copo highball, mas aqui em casa eu fui numa taça de vinho mesmo. Fica ao seu critério.
Reclames rápidos e rasteiros essa semana, ok?
Semana passada, no Programa de Indie, teve Black Friday especial com discos em efeméride – passeamos pelas turmas de 1962, 1972, 1982, 1992, 2002, 2007 e 2012, sem deixar cair.
Sei que eu já falei dela na semana passada, mas não custa repetir: particularmente acho que ficou muito boa a minha entrevista com a Phoebe Bridgers, na sequência do Primavera Sound São Paulo. Tá lá no Scream & Yell, que tá em grande fase com quase quatro textos por dia (na minha época tinha disso não!)
E pra completar, um evento quase tão raro quanto o cometa Halley: a conje Anna Vitória Rocha deu o ar de sua graça na No Recreio, sua bissexta newsletter, falando sobre vida, louça, Mitski e a sopa de ervilha da minha mãe. (Ou pelo menos foi o que eu entendi, é um texto cheio de palavras doida pra quem gosta de palavras doida).
Percebo ao final deste texto que só esqueci de falar da minha música favorita de Outubro ou Nada: “Matelassê”. Então lá vai: “me lembro do verão, mão na bunda dela”.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som do melhor da discografia da Bidê ou Balde, a dupla Se Sexo É o Que Importa, Só o Rock é Sobre Amor e Outubro ou Nada. Afudê, velhinho, afudê.
PS2: Tão ruim quanto ter uma música acusada de pedofilia é ter sua melhor canção gravada ao lado de Roger Moreira? Fica a dúvida, caro leitor.
PS3: Sim, como vocês podem perceber, eu ando na onda do Campari nas últimas semanas. Isso deve continuar.
PS4: Aproveito aqui para relembrar que agora temos um Índice nesta newsletter, com todos os drinks publicados divididos por ingredientes. Também temos dois Guias de Compras: um de utensílios de bar e outro de garrafas básicas. Fechou?
Obrigada por me lembrar da existência da Wonkavision! Mas ainda prefiro Video Hits e recomendo os shows do Carlinhos com a Império da Lã (se é que ainda rolam em algum palco) 😉