#29: "Cartola (1976)", Cartola + Caipirinha
Um encontro há muito aguardado; samba, cachaça e um pouquinho de Brasil iô iô.
Desde que comecei a escrever essa newsletter, sabia que mais dia, menos dia, um desafio hercúleo iria se impor à minha frente: afinal, que disco seria uma Caipirinha? O coquetel símbolo do Brasil, o único drink originalmente brasileiro reconhecido pela International Bartenders Association, aquela mistura que separa crianças de adultos e serve como verdadeiro batismo de fogo para cunhados, genros & agregados em churrascos de família. A caipirinha é uma combinação que qualquer boteco que se preze neste país deveria servir, mesmo naqueles em que um sujeito falando em “mixologia” provavelmente ouviria “saúde” como resposta.
Ao mesmo tempo, a Caipirinha uma bebida que serve para todas as horas – do almoço de família à praia, da roda de samba àquela gripe forte que teima em não ir embora. É um desafio difícil porque falar da Caipirinha – a receita clássica, com cachaça e limão-taiti – é quase como escolher um disco para ser o hino nacional. E quem gosta de música sabe que isso é tarefa das mais difíceis. Mas desde sempre, eu achei que seria difícil escapar da harmonização entre Caipirinha e samba, sacando do bolso mais uma vez a velha lógica dos símbolos nacionais. E quando penso em discos de samba, é difícil escapar do segundo álbum do mestre Cartola.
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Não só porque ele é de fato um álbum (ao contrário de muitos mestres da batucada que tiveram sua obra melhor registradas em compactos), mas também porque é um disco que contempla as diferentes faces do samba, da festa e da celebração à dor e à contemplação existencial. É ainda um disco cheio de história, uma história de um sambista em que álcool, doçura e azedo surgem tantas vezes que é difícil não juntar uma coisa com a outra. E aqui peço um minutinho entre um gole e outro para tentar resumir, em poucas linhas, a história de Angenor de Oliveira.
Nascido no Catete, criado em Laranjeiras e depois um dos primeiros residentes do morro da Mangueira, Angenor de Oliveira nasceu quando farmácia ainda se escrevia com “ph”. Foi ali no Morro da Mangueira, “habitado por gente simples e muito pobre”, que ele, Carlos Cachaça e outros sambistas fundariam o bloco dos Arengueiros, que daria origem à Estação Primeira de Mangueira em 1928 – não só por ser a primeira na linha do trem, mas também a primeira em matéria de samba, diria Cartola muitas vezes por anos a fio. (Já o nome Mangueira, que batiza o morro, é porque a região há muito tempo reunia muitas fazendas de manga, que abasteciam o Rio de Janeiro de então). Dos anos 1920 aos anos 1940, Cartola até teve alguns bicos, mas seu forte mesmo era a música: vendia sambas para cantores como Francisco Alves e Mário Reis, era amigo de Noel Rosa, excursionou com Donga, Pixinguinha e João da Baiana para os EUA a convite de Heitor Villa Lobos.
No final dos anos 1940, porém, a história de Cartola é uma história triste: ele se desentende com a direção da escola, fica doente de meningite e chega até a ter que andar de muleta, além de sair do morro da Mangueira e ir morar em Nilópolis. Sumido do morro e das rodas de samba, entregue à bebida, houve até quem o desse como morto. Por dez anos, Cartola andou sumido, até ser resgatado por Zica, uma antiga admiradora que cuida dele e o leva de volta para o morro da Mangueira.
O romance lhe dá um novo rumo na vida, Cartola volta a trabalhar fazendo bicos em Ipanema, lavando carros ou trabalhando como vigia de edifícios, até que o escritor Sérgio Porto o encontra e escreve uma coluna que o ressuscita para a vida cultural. Ao longo dos anos 1960, Cartola voltaria a ser gravado e até abriria uma casa noturna que marcou o Rio de Janeiro: o Zicartola, em que ele cuidava da música e Zica, da cozinha. Mas faltava ser gravado em disco, algo que só aconteceu em 1974, quando Beth Carvalho apresenta o sambista ao publicitário paulistano Marcus Pereira, fundador da recém-criada Discos Marcus Pereira, uma gravadora independente, histórica e importantíssima para a música brasileira. Cartola, o disco, tinha algumas de suas maiores canções, como “Tive Sim”, “O Sol Nascerá” e “Alvorada”. Dois anos depois, a sequência seria ainda mais arrasadora.
No também autointitulado Cartola, de 1976, Angenor é acompanhado por ases como Guinga (violão), Elton Medeiros (caixa, tamborim e ganzá), Canhoto (cavaquinho), Dino 7 Cordas (violão de sete cordas) e Abel Ferreira (sax tenor) e Altamiro Carrilho, cuja flauta faz de “As Rosas Não Falam” ainda mais inesquecível, embora talvez seja besteira dizer qualquer linha a mais sobre uma canção que já diz tanto. Além de “As Rosas Não Falam”, Cartola traz neste disco outras nove canções próprias e duas releituras importantíssimas: “Senhora Tentação”, de Silas de Oliveira (um dos fundadores do Império Serrano), e “Preciso Me Encontrar”, do portelense Candeia – esta última, por si só, um monumento em forma de samba.
É pouco? Calma: o disco se abre com “O Mundo é um Moinho”, uma canção tão delicada quanto feroz, uma porrada na cara cheia de palavras gentis, tal qual o primeiro gole em uma caipirinha um pouco mais alcóolica. É fácil interpretá-la como uma canção de coração partido de um amante desgostoso, mas a história vai mais além: reza a lenda que Cartola a fez para sua filha de criação, Creusa, que estava indo embora de casa para exercer a profissão mais antiga do mundo. Outra versão dá conta de que o motivo da saída era um romance com um homem mais velho – e aqui deixo ao leitor/ouvinte o silêncio contemplativo para apreciar essa canção com o significado que mais lhe aprouver.
O resto do disco não facilita muito, é verdade: “Minha” é um samba para qualquer dor de cotovelo que se preze, “Não Posso Viver Sem Ela” é masoquismo puro sem direito a divã, enquanto “Aconteceu” é um exemplo de vingança elegante. Quando não fala de amor, a vida não é menos sofrida – e que o diga o canto de trabalho de “Ensaboa”. Mas mesmo na dureza, na acidez da vida, há a doçura: quem não se emociona com “Sala de Recepção”, a história da Mangueira e os altos e baixos da vida de Cartola talvez deva marcar uma consulta no cardiologista.
A perfeita mistura entre doçura e acidez, de maneira que muitos tomariam por rústica, não é o único motivo para harmonizar este Cartola e a caipirinha. Há outros, como o paralelo entre a história do artista e da bebida. Assim como “O Mundo é um Moinho”, também não é bem certo o mito de origem da caipirinha: para Câmara Cascudo, ela nasceu pelas mãos de fazendeiros latifundiários de cana do interior paulista, na região de Piracicaba, no final do século XIX, servindo como substitutivo local ao uísque importado.
Já a versão do Instituto Brasileiro da Cachaça dá conta de que a mistura de cachaça, limão, alho e mel criada para combater a Gripe Espanhola em 1918 aos poucos foi se transformando em refresco, com a saída do alho e do mel e a chegada do açúcar (para adoçar) e do gelo (para espantar o calor). Nos dois casos, a história passa pelos modernistas, modernos-SP cujo dinheiro vinha de fazendas no interior: na Semana de Arte de 1922, gente como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral bebia caipirinha como símbolo de brasilidade, o que ajudou a espalhar a receita por outros estados. Outra versão diz ainda que a caipirinha mesmo era Tarsila, que serviu o coquetel a seus convivas quando morou em Paris.
De coqueluche, a caipirinha se popularizou e virou símbolo nacional – a ponto de ser presença obrigatória em quase todo boteco brasileiro. Mas, por outro lado, sinto que quem começa a se iniciar no mundo dos coquetéis acaba a deixando de lado, privilegiando Negronis e Gim-Tônicas. “Caipirinha é bebida de tiozão”, já ouvi muitas vezes. Por mim, tudo bem: tiozão em treinamento desde os 15 anos de idade, prefiro pagar pouco num coquetel excelente do que torrar minha paciência torcendo pra uma barraca de praia fazer qualquer outra mistura com alguma destreza.
Além disso, tanto a Caipirinha quanto os sambas de Cartola compartilham uma característica muito curiosa: eles parecem simples, mas são muito intrincados. É só pedir para um gringo fazer uma caipirinha para perceber do que estamos falando: ele vai querer botar o limão na coqueteleira, usar xarope de açúcar ou até mesmo trocar cachaça por rum e acabar fazendo um daiquiri. Isso para não falar nos muitos macetes de bartenders experimentados, passados como segredo de geração em geração.
Da mesma forma pode parecer fácil fazer um samba como os de Cartola, sem perceber a riqueza poética que há ali. Quer um exemplo? Tente passar impune à frase “de cada amor tu herdarás só o cinismo”. Ou então perceba a alegria oculta por trás de “alvorada lá no morro que beleza/ninguém chora, não há tristeza” (estes versos, de “Alvorada”, do disco anterior). E não vou nem me astrever a falar de música, porque aqui meus parcos conhecimentos de violão e teoria derrapam. Diante dessa beleza, só sei sentir – e às vezes, as melhores coisas da vida são assim mesmo.
E depois de três anos sem festa na rua, acho que não haveria combinação melhor para uma quinta-feira de cinzas do que esta aqui: de um lado, o coquetel que é a cara do Brasil, com um requebrado e um molho que só mesmo a gente tem. Do outro, um disco que serve bem à fossa depois do carnaval que tem fim, mas que mesmo no momento mais dolorido, tem no samba a sua força e a sua razão de ser. Uma dupla que já foi muito subestimada, passada para trás, mas que não pode ser esquecida jamais. E sei que eu já falei muito de política aqui, mas vale sempre lembrar: que a gente não esqueça do que faz o Brasil ser o Brasil. Agora deixe-me ir, preciso andar… e tomar um banho que ainda tem glitter na minha cara.
A Receita
60 ml de cachaça
1 limão
1 colher de sopa de açúcar
gelo
Eu sei, eu sei, quem já fez uma caipirinha deve estar rindo dessas medidas aí de cima. Afinal de contas, caipirinha de verdade se faz meio a olho, provando, experimentando, até chegar no gosto geral de quem vai compartilhar aquele copo no churrasco. Tem gente que gosta da caipirinha mais alcóolica, outros mais docinha, e proporção nenhuma dessa se acerta só com esses números aí de cima. Mas para quem nunca fez uma caipirinha, é preciso começar de algum lugar, não é mesmo? Pois vamos lá.
Pegue um copo de caipirinha (aquele como o da foto inicial, de boca mais aberta que o copo rocks) ou então um long drink (como muita barraca de praia faz por aí). Corte o limão ao meio, e depois em oitavos, como se fosse uma meia lua. Há quem prefere cortar em rodelas mais finas, mas acho que aos oitavos é o segredo para conseguir uma caipirinha com limão suficiente, ao mesmo tempo que ela não fica pedaçuda demais. Outro macete? Sabe aquela parte branca que todo limão tem no meio? Tente tirá-la da fruta, porque ela costuma ajudar a amargar a caipirinha. É uma parte que varia de limão pra limão, mas normalmente, dois cortes em formato de V são suficientes para dar conta dela.
Feito isso, é hora de jogar limão e açúcar no copo e macerar os dois juntos com um pilão. Não tem pilão? Ok, então tente improvisar com algo que permita macerar (#amassar) o limão com cuidado. Mas ó, naaaada de simplesmente espremer o suco e passar pra outro copo, pelo amor de deus! Vale o aviso: tem que amassar o limão com carinho; quem amassa demais também deixa a bebida amarga (um conselho que também vale para outras coisas na vida, né não?)
Depois que seu limão estiver espremido e não só o suco, mas também o óleo da fruta estiver bem juntinho ao açúcar, é hora de adicionar a cachaça e o gelo. Normalmente, a proporção vai funcionar na base de 1 limão para 1 dose de cachaça (60 ml), mas tudo vai depender do tamanho do limão e do paladar dos seus convivas. A marca da cachaça também é uma questão que divide torcidas no Brasil – eu sou do time 51, mas sei que muita gente vai de VéiCagão (Velho Barreiro) ou Ypióca. Cadum cadum.
Outra coisa que eu faço, mas não é muito recomendável, eu sei, é deixar para macerar o limão já com a cachaça dentro do copo. Mas tem sua utilidade: deixa a bebida mais “limpa” e, como a cachaça torna mais difícil a tarefa de apertar o limão, acaba evitando que a caipirinha fique amarga. Pra fechar, tem quem goste de decorar o copo com uma ou outra fatia de limão ou um palito de madeira (?), mas aqui em casa eu não faço dessas coisas não. É isso.
Nessa semana, os reclames estão curtinhos, curtinhos:
No Programa de Indie, teve programa especial de um disco que todo indie já encarou uma vez na vida – há quem ame e quem odeie, claro. In the Aeroplane Over the Sea, do Neutral Milk Hotel, fez 25 anos nesse mês de fevereiro e, para marcar a data, eu e o palestríssimo Igor Muller mergulhamos no universo maluco de Jeff Mangum.
E na dica de newsletter massa da semana, uma indicação há muito tempo necessária: a The Spirits, do Richard Godwin. Acho que é uma inspiração para qualquer pessoa que tenha uma newsletter sobre mixologia em dia – Godwin tem um humor próprio e é capaz de fazer qualquer um (que leia em inglês, bom que se diga) descobrir como fazer os drinks mais cabeludos. Inspirado por ele, eu fiz várias pequenas mudanças nesta Meus Discos, e acho que pode ser uma leitura que vai agradar muita gente aqui. Mas em quase cem edições, ele nunca usou cachaça. Não sabe o que tá perdendo…
…tirar glitter nada, que ainda tem mais bloco esse fim de semana. Saúde, senhoras e senhores, e nos vemos na semana que vem.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito numa quarta-feira de cinzas chuvosa em São Paulo, durante a apuração das escolas de samba do Rio de Janeiro. O plano era que a Mangueira ganhasse o carnaval para fazer ainda mais sentido, mas os jurados não colaboraram. Seja como for, vale o aviso que a trilha sonora foram os dois Cartola da Discos Marcus Pereira. Noooooota dez!
PS2: Mal cabia nesse texto, mas quero em breve voltar a falar da Discos Marcus Pereira, uma história de coragem e ousadia da indústria fonográfica brasileira. Me cobrem.
PS3: Eu tô feliz de ter finalmente escrito sobre a caipirinha porque isso me libera para fazer harmonizações mais ousadas de outros tipos de caipirinha com outros discos. Mas para tristeza do atacante Fred, devo dizer que não vai rolar sakêrinha de morango aqui não.
PS4: Essa semana surpreendi a namorada com o fato de que eu tenho uma lista de sambas-enredo favoritos na vida. Ainda aproveitando o clima de carnaval, reuni esses sambas numa playlist – e peço perdão se as gravações forem um pouco aquém do que se imagina, porque infelizmente temos de trabalhar com o que os serviços de streaming nos oferecem atualmente. Espero que vocês gostem. Sim, eu roubei e incluí no começo e no fim dois ótimos sambas-enredo que não são de nenhuma escola, pra mostrar que o gênero vai além da Sapucaí.
PS5: De cada amor tu herdarás só o cinismo não é só um grande verso, como também é o título de um romance do Arthur Dapieve que, embora amargo, é um excelente representante da literatura pop à la Nick Hornby em solo nacional. Vale a leitura.
Ok, preciso beber uma caipirinha antes do pós-carnaval. Obrigada por isso 💚
Os jurados nunca colaboram (apesar que minha torcida esse ano era para a Vila Isabel).