#16: "O Canto da Cidade", Daniela Mercury + Jorge Amado
"Não me pegue não, me deixa à vontade/deixa eu curtir o Ilê e o charme da liberdade"
Tem certas canções que tem um poder incrível sobre a gente. Elas são capazes de fazer tirar aquele grito do fundo da garganta, balançar os ombros e deixar ir embora todo o peso acumulado das costas. (É um poder que certos goles também tem, mas me deixa falar um pouco sobre música primeiro). No último domingo, esse grito entalado na garganta pode sair. Não só os ombros, mas todo o corpo se permitiu dançar como há muito tempo não acontecia. Cada amigo que conheço teve sua trilha sonora. Mas a minha, aqui em São Paulo, direto da Avenida Paulista, foi com Daniela Mercury e o seu “O Canto da Cidade” – um momento tão inesperado quanto redentor, em que eu saí de casa para ouvir um discurso e acabei ganhando junto um dos shows mais bonitos dos últimos tempos.
Peço desculpas ao leitor, mas o relato que vem a seguir será bastante pessoal. Pelo menos posso dizer desde já que estou cumprindo a promessa que fiz na última conversa: vou trazer um disco (O Canto da Cidade, uma pérola do pop brasileiro que a gente precisa redescobrir todos os dias) e um drink (Jorge Amado, uma versão especial da caipirinha pra ninguém botar defeito) da mais louca alegria que se pode imaginar. Porque foi isso o que eu vivi nos últimos dias.
A semana passada foi muito difícil: eu dormi mal, tive dificuldades de me concentrar e até não consegui escrever uma newsletter convencional, vocês lembram. Sexta e sábado foram talvez os dias mais dramáticos: precisei desesperadamente de companhia para ver o debate presidencial e enfrentei uma verdadeira maratona no dia seguinte. Um dos meus melhores amigos (e talvez o mais antigo que eu tenha) ia se casar em Paulínia e eu não podia deixar de estar lá. Mas também precisa voltar pra votar cedo no ABC, descansar e estar pronto, se a sorte permitisse, para ir para a Avenida Paulista. Até agora, sinto que o corpo não se recuperou bem da maratona – enquanto escrevo, bebo este Jorge Amado pensando se a cachaça poderá ajudar minha voz a voltar. Espero que sim, já que preciso gravar Programa de Indie essa semana.
No domingo, a tensão era tão grande que dava para cortar o ar com faca. Rompi uma tradição de uma década e decidi não ir votar de vermelho – São Caetano, apesar de ser o C do ABC, é marcadamente uma cidade conservadora, que só piorou com os anos (e na qual o PT nunca chegou nem perto de governar). Fui de azul-Wilco, com a mesma camiseta que tomei a segunda dose contra a covid-19, uma forma de lembrar algo que a gente não pode esquecer nunca: a loucura que foi a pandemia no Brasil e o absurdo de se discordar da ciência, da saúde e das vacinas.
Na volta pra São Paulo, antes das urnas serem abertas, encontrei num bar um amigo que estava tranquilo. Perguntei o motivo: “acho que o outro vai ganhar, então o que vier é lucro”. Tentei não me levar deixar pelo pessimismo, como vim fazendo nos últimos tempos. E felizmente, a terra é redonda e o mundo gira… e lá pelas 18h45, essa nuvem cinza, esse medo, tudo isso foi embora.
Fui pra Paulista sozinho e assim fiquei por mais de uma hora, andando, sorrindo para as pessoas. No metrô, a passagem por cada estação fazia a festa surgir. Na saída da Trianon-Masp, comecei a gravar um vídeo para mandar pros Capelas e um rapaz começou a dançar junto no fundo. Confessei pra ele que não tinha ainda abraçado ninguém para comemorar e ele só faltou me jogar pro alto. Naquela noite, como diria o poeta, “em cada esquina tinha um amigo, em cada rosto a igualdade”. E quando comecei a encontrar os amigos, era até difícil de acreditar na vitória. Que os quatro (seis?) anos mais tenebrosos da história recente do Brasil estavam começando a acabar ali – e eu não arredaria pé da Paulista enquanto aquela noite não pudesse acabar.
Minha obsessão em ir para a Paulista tinha um motivo: eu precisava ver o Lula fazer um discurso. Depois de tantos anos vivendo momentos históricos dentro de uma redação ou em casa, eu precisava ir para a rua. Mas preciso confessar que o que eu vou lembrar mesmo daquela noite são dois momentos de Daniela Mercury: quando Lula acabou o discurso e ela explodiu no trio elétrico Demolidor cantando “O Canto da Cidade”, eu senti que podia sorrir de novo. E pouco depois, quando ela cantou o hino nacional, eu me arrepiei – como me arrepiei ao beijar o bandeirão enorme da bandeira brasileira que passou pela cabeça antes dos discursos. O canto dessa cidade é nosso, o país é nosso, a bandeira e o hino pertencem a todos nós – e ninguém pode tirar mais isso da gente.
Eu sei que usar a música para pensar um projeto nacional pode ser uma coisa meio besta, esquerda festiva, mas estou ainda contagiado pela energia da estação Santa Cecília no último domingo. E se eu posso dizer alguma coisa, esse projeto parte justamente de O Canto da Cidade. Segundo disco de Daniela Mercury, lançado em 1992, O Canto da Cidade é um primor da canção pop brasileira. Ele une o melhor de dois mundos que foram gestados nos anos 1980: de um lado, o pop-rock produzido por Liminha, Paulo Junqueiro e Vitor Farias em estúdios como o Nas Nuvens; do outro, o samba-reggae que se tornaria conhecido na década seguinte como axé, cultivado dentro do WR, mítico espaço de gravações em Salvador que, entre outras coisas, conseguiu trazer para as gravações o peso que blocos afro como Olodum e Ilê Ayê faziam nas ruas da capital baiana.
É a estrutura perfeita para que uma cantora carismática e cheia de habilidade pudesse mostrar a que veio – o primeiro disco, autointitulado e lançado no ano anterior pelo selo Eldorado, trazia o hit “Swing da Cor” e já mostrava muito potencial. Mais que isso, o repertório era incrível: além da faixa-título, uma composição de Daniela que se tornou quase seu sinônimo, tem uma balada pop de Herbert Vianna (“Só Pra Te Mostrar”), tem uma canção-manifesto daquela geração que tentava reconstruir o Brasil após três décadas de ditadura (“Geração Perdida”) e uma releitura esperta de um apse da canção brasileira: o medley “Você Não Entende Nada/Cotidiano”, registrado inicialmente em Chico e Caetano Ao Vivo, que transformou a carreira tanto de um quanto de outro. Tem um irrepreensível axé romântico de Daniela e Durval Lelys (do Asa de Águia!), “Vem Morar Comigo”, tem Carlinhos Brown (“Rimas Irmãs”) e um balanço envolvente ao qual é impossível não mexer o quadril: “Batuque”.
É música suficiente para gente começar um carnaval e já exorcizar muita coisa. Mas tem ainda outras duas músicas para as quais eu peço especial atenção. A primeira é “Bandidos da América”, uma letra sensível e cheia de referências, cunhada por Jorge Portugal (que foi professor de redação e secretário de Cultura da Bahia). Para avançar como Brasil, talvez o caminho comece justamente por aqui: “abra os olhos/e assuma os enganos/de 500 anos, cara pálida”. É preciso olhar para trás e entender o que deu errado. Entender que pacificar sem punir não dá certo e que anistia é uma palavra bonita para uma ideia bem errada.
A outra é talvez a minha canção favorita de O Canto da Cidade – ou pelo menos, a que me faz mais berrar quando aparece num bloco ou na noite. É “O Mais Belo dos Belos (A Verdade do Ilê/O Charme da Liberdade” – e quem não aguenta chora de tanta emoção, como eu chorei domingo. O charme da liberdade é talvez uma das expressões mais bonitas para uma democracia plena. Não aquela liberdade irrestrita, em que acreditam aqueles que estão queimando pneu e atrapalhando o Brasil nesse momento. Mas sim aquela em que a minha liberdade acaba quando a sua começa – e que nesse charme, talvez a nossa liberdade ande junta, tal como aquele vídeo clássico (desculpas pela referência) em que o dançarino Fly, do antigo Caldeirão do Huck, ensina como você deve fazer para “dançar junto com uma menina numa boate”. Afinal de contas, “para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua/é que se fez o seu braço/o seu lábio e a sua voz”, citando outra canção que ecoou forte na Paulista no domingo.
Desculpa aqui, caro colega de balcão, recorrer à metáfora do Carnaval. Mas é que ela é perfeita para descrever o melhor do Brasil – e não à toa, clichês existem por causa disso, porque funcionam. Sei que os próximos momentos serão duros, difíceis, vai ter muita gente jogando fora das quatro linhas para nos tirar dessa festa e voltar ao caos. É a união que vai nos fazer seguir em frente – a mesma união que uniu a força da música baiana com o apuro técnico dos estúdios do sudeste, a união de um país inteiro, do Nordeste às grandes capitais, que fez com que uma pequena margem fosse suficiente para sonharmos com dias melhores.
E essa parceria de sucesso também aparece no drink da semana, o Jorge Amado. Calma, não se trata de uma adaptação brasileira do Fitzgerald, mas sim de uma criação especial da bartender Camila Paiva, de Paraty – que, vale lembrar, fica bem no meio do caminho entre Rio e São Paulo. Foi na cidade histórica e litorânea que, nos anos 1980, a Globo gravou a novela Gabriela, com Sônia Braga. Para homenagear a atriz, produtores de cachaça locais passaram a fazer uma versão muito particular da bebida, incluindo melado, cravo e canela – uma iguaria local que já é incrível de ser degustada pura. Em 2014, num concurso local, Camila trouxe uma adaptação esperta da bebida, transformando-a em base para uma caipirinha singela, com limão taiti e maracujá, homenageando o criador da personagem que dá nome à beberagem. É uma união, também, entre dois pontos diferentes do País, mas que resulta em um sabor único – a ponto de merecer uma classificação própria.
Jorge Amado é uma bebida singular, daquelas que a gente bebe e até fica impressionado com as nuances. O álcool está lá e se faz presente, mas até fica em segundo plano perto das bonitas combinações entre a acidez do limão e do maracujá com o dulçor do açúcar e do melado. O cravo e a canela trazem não só o perfume, mas também uma elaboração esperta, amaciando essa acidez, em um coquetel extremamente equilibrado e envolvente – como é equilibrado e envolvente O Canto da Cidade, a despeito de um ou outro teclado que demarca aquela época. É um coquetel com a nossa cachaça – não à toa, uma das bebidas favoritas do presidente eleito.
É, sobretudo, um drink verde amarelo, com a cara do calor e do Brasil, que eu gostaria de beber e passar o dia todo dançando – como dancei na noite do último domingo, no trio elétrico comandado por Daniela e que teve a participação de Dexter, Maria Rita e da dupla Tiago Doidão e Juliano Maderada, os nomes por trás de “Tá na Hora do Jair Já Ir Embora”. Do trio elétrico tão simbólico que lembrou os 30 anos do show de Daniela no vão do MASP, com um batuque que balançou não só nêgo, mas também as estruturas do projeto de Lina Bo Bardi, no 1992 em que eu nasci.
E se não fosse suficiente, o coquetel ainda homenageia um daqueles brasileiros incríveis que, falando sempre em liberdade, igualdade e dignidade, levaram nossa cultura pelo mundo afora. Cultura, não à toa, foi citada treze vezes na Avenida Paulista no discurso da vitória. E acho que não posso encerrar essa conversa com outra frase que não essa, com outro canto da cidade que não esse.
"Quem tem medo de cultura é quem não gosta do povo e não gosta de liberdade, é quem não gosta de democracia. Nenhuma nação do mundo será uma verdadeira nação se não tiver liberdade cultural. O país vai recuperar a sua cultura."
(Luís Inácio Lula da Silva, na Avenida Paulista, 30 de outubro de 2022)
A Receita
1 limão-taiti
polpa de 1⁄2 maracujá
5 g de açúcar
50 ml de Gabriela
gelo
Fazer um bom Jorge Amado é praticamente como fazer uma caipirinha – o que seria fácil se todo mundo soubesse fazer uma boa caipirinha. Eu mesmo demorei algum tempo para aprender a fazer. Mas não é tão difícil assim, acho. Para começar, corte o limão em pedaços pequenos – aqui em casa, eu cortei em oitavos, mas confesso que ficou um pouco grande. Depois, corte o maracujá ao meio e coloque metade da polpa junto ao limão em uma coqueteleira. Para completar, uma colher de chá de açúcar. Use o pilão para macerar bem e misturar o suco.
Aí vem a diferença para a caipirinha: enquanto na bebida típica do Brasil a cachaça é só adicionada e mexida, aqui é preciso bater a Gabriela. Como já expliquei, uma cachaça com cravo e canela que tem “determinação de origem” de ser produzida em qualquer parte perto de Paraty. Para quem não está perto da região, tudo bem: a Paratiana faz uma boa Gabriela “industrializada” e dá até para comprar pela internet.
Pois bem: adicione 50 ml de Gabriela e bastante gelo na coqueteleira e bata tudo. Pra fechar, sirva com fruta e tudo, sem coar (isso é bem importante!) num copo de caipirinha. Se você não tiver, vale apelar para um double rocks ou um long drink. Para facilitar a beber, um canudinho pode ser recomendável – mas talvez você tenha que lidar com as sementes do maracujá. (Particularmente, eu até gosto de ficar mordiscando entre um gole e outro, mas vai de cada um. O charme da liberdade, né?).
Rapidinho com os reclames da semana, porque o mundo gira e a Lusitana roda.
No Programa de Indie da semana passada, eu e o Igor Muller conversamos com o amigo Pedro Antunes, ex-companheiro de Estadão e hoje curador do Primavera Sound São Paulo. O tema? Claro que é o festival, que rola nesse fim de semana aqui em SP (quer dizer, já tá rolando, com direito ao Primavera na Cidade. Quer saber o que é? Então vem ouvir).
Na Cajuína, tem uma conversa rápida minha com o Robson Privado, COO e cofundador da MadeiraMadeira, sobre o feedback mais importante que ele já recebeu.
Eu sei, eu sei, tem muita gente doida na rua fazendo bobagem e o trabalho para recomeçar a reconstruir esse Brasil vai ser gigantesco. Mas só por essa semana, não me pegue não, me deixa à vontade, deixa eu curtir o Ilê e o charme da liberdade.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de O Canto da Cidade, de Daniela Mercury, claro. Mas ele começou a ser escrito bem antes disso, no domingo à noite, voltando para casa sem voz e sem fôlego, com um sorriso no rosto. Ele foi em parte escrito na cabeça durante toda a segunda-feira, quando eu acordei e chorei ao me dar conta que o domingo foi um dia de verdade. E este texto, acho eu, continuará a ser escrito.
PS2: Eu já havia bastante tempo queria escrever sobre O Canto da Cidade, mas não era esse o texto que eu havia planejado para escrever essa semana inicialmente. Felizmente a realidade se impõe à nossa frente e nos traz essas surpresas. Ainda bem.
PS3: Eu tenho uma garrafa quase cheia de Gabriela em casa e adoraria pensar em outras combinações com ela. Se alguém tiver sugestões, aceito de excelente grado.
Que domingo! E que boa lembrança de o Canto da Cidade. Lembro de ouvir esse disco nas matinês aqui em Cuiabá, entre um poperô e outro, o pessoal voltando da praia com a letra decorada e eu embasbacado com o som.
Ela tem que ser ministra da Cultura