#33: “Canção ao Lado”, Deolinda + Porto Tônica
"Agora sim, temos a força à toda": na semana do 25 de Abril, uma homenagem a um disco que mudou minha vida e a uma ideia de Portugal moderna, sem tirar um pé na tradição
Quando eu comecei essa newsletter, confesso que não quis dar muita bola para a ideia de efemérides e aniversários, me obrigando a escrever sobre um determinado disco só porque ele completou 10, 20, 30 ou 50 anos. Mas nessa semana vou ser forçado a abrir novamente uma exceção – e a causa é nobre, porque este é daqueles discos que mudam vidas. Mudou a minha, pelo menos, e acho que a de alguns amigos como o Marcelo Costa e o Pedro Salgado. Estou falando de Canção ao Lado, disco de estreia dos portugueses do Deolinda, que completou 15 anos na última sexta-feira, dia 21. Sei que um disco português não é exatamente o que vocês esperavam do retorno de férias pelas duas capitais do Rio da Prata, mas não estamos aqui sempre para cumprir o que é esperado, né? Em vez da Prata, vem passear comigo pelo rio Tejo, que eu prometo que vai valer a pena.
Formado em 2006, o Deolinda é uma banda de família: reúne os irmãos Pedro da Silva Martins e Luís José Martins, a prima Ana Bacalhau e o marido de Ana, José Pedro Leitão. É também a personificação de uma personagem, que dá nome à banda – “uma mulher de Lisboa que conta, nas suas canções, histórias que vê através de sua janela”, como me contou Pedro em uma entrevista para o Scream & Yell em 2013.
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Principal compositor do grupo, Pedro é responsável por metade do motivo que me faz achar o Deolinda um negócio incrível: de forma muito delicada, suas músicas conseguem unir a tradição portuguesa do fado com a perspicácia moderna da canção pop, seja em letras que criticam o capitalismo e o capital (“Mal por Mal”), filosofam sobre a grama do vizinho (“Canção ao Lado”) ou discutem a imigração brasileira ao outro lado do Atlântico com muita graça (“Garçonete da Casa de Fado”). Aqui, talvez o referencial menos seja o pop de rádio, mas sim cantores e compositores que partem das cordas para compor seu universo – de maneira que o Deolinda não parece tão distante, por exemplo, da delicadeza de gente como o uruguaio Jorge Drexler, que também parte de suas raízes para dialogar com o mundo.
As músicas de Pedro da Silva Martins, porém, não seriam grande coisa se não fosse uma intérprete de nível internacional: Ana Bacalhau. Fora do palco, seria difícil acreditar que aquela morena baixinha é capaz de encarar multidões – mas ela o faz de modo cativante, seja pela graça (“Fon-Fon-Fon”, o maravilhoso caso de amor entre uma mulher e um tocador de tuba), pela ironia (“Movimento Perpétuo Associativo”, este hino à preguiça cotidiana, este “vai na frente que eu já vou), ou pela tristeza pungente de um amor que se afasta, entre a burocracia das fronteiras (“Clandestino”, espécie de Radiohead-circa-The Bends em águas de bacalhau).
Eu descobri o Deolinda em algum momento entre 2011 e 2012, quando o plano de fazer intercâmbio em Portugal começou a ganhar forma na minha cabeça. É algo que também coincide com os primeiros textos do Pedro Salgado no Scream & Yell, divulgando a nova onda da música pop portuguesa e colocando o Deolinda como capitães de uma importante nau dessa esquadra. Singrando mares bravios, eles recuperavam uma lição importante do mestre António Variações, mesclando a tradição local com sons que chegam do resto do mundo, pelas ondas de rádio ou internet.
Se nas primeiras audições eu estranhei as guitarras portuguesas, e foi difícil entender exatamente o que Ana Bacalhau cantava, aos poucos aquilo tudo foi entrando no meu coração. Foi a época em que eu fazia meus primeiros estágios e não foi difícil me identificar com “Mal por Mal”, na busca de se enquadrar na estrutura de uma vida adulta, correta, plana. Foi também um período em que eu sentia que eu merecia o que os outros tinham, sem entender que o que me cabia também me fazia muito sentido – e não foram poucas as vezes que cantei “Canção ao Lado” sem refletir muito bem sobre o que aquela letra queria dizer.
Com o tempo, fui aos poucos me acostumando com o sotaque e os intrincados arranjos de corda das guitarras lusitanas. Ao chegar em Lisboa, as canções de “Canção ao Lado” me serviram não só como um mapa antropológico, mas também como um consolo – um amigo que a gente faz logo que chega numa cidade nova e que me mostra as coisas bacanas. (Aqui, no caso, a dica para frequentar os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian e o Centro Cultural de Belém veio da letra de “Fon-Fon-Fon”).
Mais que isso, o Deolinda me mostrou que Portugal podia ser um país moderno, divertido e do qual eu podia me orgulhar – afinal, três dos meus quatro avôs eram portugueses (e a vó brasileira era filha de portugueses, então…). Já falei um pouco disso no texto que escrevi sobre o disco de estreia de António Variações, mas avanço. Quando eu era criança, português não era adjetivo, era personagem de piada – e olha que a querida Portuguesa de Desportos ainda frequentava a primeira divisão do Brasileirão.
Portugal era um país querido, mas meio velhinho e brega, e a referência cultural que vinha de lá era a austera Amália Rodrigues (ao menos para a criança que eu era, um fã das marchinhas de Assis Valente e Lamartine Babo) ou o piroso Roberto Leal. Acho que eu próprio caía nessa piada: certa vez, numa festa a fantasia da primeira ou segunda série, fui fantasiado de Super Pois Pois – uma espécie de Capitão Portugal, com direito a boina, bigode e uma capa com pano de prato lusitano. Não adianta pedir, não vou publicar uma foto aqui.
É claro que não foi o Deolinda que fez Portugal mudar: foi a entrada na União Européia, a mudança para o euro – e com a nova moeda uma injeção de dinheiro que começou a mudar a economia local. A capacidade de preservar certas tradições, de conservadorismo, se transformou em chamariz para o turismo – e foi estranho retornar a Lisboa no ano passado, depois de nove anos, e ver como a cidade pós-crise se transformou em morada de nômades digitais de todo canto.
Em certos locais, mesmo falando em português eu era atendido em inglês, o que me irritou – e isso é nada perto do que sente quem esta lá, onde a gentrificação é problema dos maiores, com aluguéis de regiões centrais subindo vertiginosamente, sendo pagos com assinaturas de outros cantos. Talvez nem mesmo a personagem Deolinda possa morar na sua janela mais – e curiosamente ou não, a banda está em hiato desde 2017, vendo Pedro da Silva Martins espalhar composições por aí e Ana Bacalhau se dedicar a uma carreira de cantora pop que, a mim, passa longe de agradar. Estava tudo lá, afinal: ainda bem que “Lisboa não é a cidade perfeita” para nós.
Mas prometo que hoje não é dia de ser rabugento: é dia, sim, de te pedir para abrir os ouvidos (e o paladar, vamos chegar lá) para um disco incrível, ou mais que isso, uma banda incrivel. Além deste Canção ao Lado, o Deolinda tem outros três grandes discos: o mergulho lusitano de Dois Selos e um Carimbo, a virada para uma canção mundial, mais percussiva e pop com Mundo Pequenino, e o até logo redondinho de Outras Histórias. Nestes discos, dá para achar de tudo – e fazer canções que servem tanto ao amor quanto a um pedido de revolução, como “Seja Agora”, “Algo Novo” ou “Musiquinha”, parece uma especialidade da casa tal qual alheiras à mirandela em qualquer tasca que se preze.
Isso para não falar em “Parva Que Sou”, espécie de hino da juventude portuguesa na última crise e que, arrisco eu, é uma letra difícil de não se identificar se você tem algo entre 25 e 40 anos aqui no Brasil. (É também um refrão que faz eco com uma coluna forte da Giovanna Madalosso na Folha de S. Paulo da última semana que, apesar de falar só de publicidade, diz muito respeito a outras profissões).
Eu disse que hoje não era dia de ser rabugento, é dia de abrir os ouvidos para Portugal. Essa semana também se celebra o 25 de Abril, a Revolução dos Cravos – caso raro de uma revolução em que militares derrubaram um governo fascista para restaurar a democracia. Mais raro ainda ao se pensar que foi uma revolução sem tiros, com cravos na ponta das armas. Flower power é isso aí, meu. Brincadeiras à parte, é uma data que sempre me lembra de sonhos e utopias – e ouvir “Grândola, Vila Morena”, a canção de José Afonso que foi senha para os primeiros passos da mudança, é algo que me faz chorar quase sempre, pensando nessa cidade em que cada rosto é um amigo, em cada esquina há igualdade. (Ainda mais nessa cidade sem prefeito nem governo em que basta pisar na calçada para sentir a desiguladade).
Sem 25 de abril, talvez Portugal não tivesse chegado nunca a ser esse país cool de hoje. E isso me é muito caro num momento em que a extrema-direita também encontra eco por lá, atrapalhando um discurso de Lula, pedindo o fechamento das fronteiras e querendo dividir um país que entendeu há quase cinco décadas o poder da democracia. Mais: um país cujo povo precisou de portas abertas durante o último século para não passar fome em seu próprio território – e falo porque sou fruto disso, também.
Andei pensando muito nisso nos últimos dias, enquanto caminhava por Buenos Aires e entendia a influência deste ou daquele povo na cidade. Existe uma beleza em se abrir para o que vem de fora, entender a experiência de outros e incorporá-la de alguma forma na sua própria realidade – o que não é estranho para quem já ouviu Caetano Veloso e Mutantes demais, mas pode soar um tanto esquisito hoje em dia. Hoje, eu peço a você para se abrir para o Deolinda e também para entender como uma bebida nova pode modificar um gosto bastante antigo: o vinho do Porto branco.
Já falei aqui sobre como o gim-tônica se tornou o drink da moda nos últimos 10 anos no Brasil. Mais que isso, como fez muita gente trocar a cerveja pela parte de drinks no cardápio do boteco – e hoje até o bar e lanches da vila, o Jhony’s, tem uma seção com pelo menos dez variações de gim-tônica em seu cardápio. Mas em vez de colocar esta ou aquela fruta, que tal trocar o gim pelo vinho do Porto? Dá para fazer isso com Porto Ruby ou Tawny, claro, mas ambos têm uma certa força e açúcar que deixa o coquetel desbalanceado.
Agora, com vinho do Porto branco, o resultado é diferente: o gim-tônica ganha um frescor e uma complexidade invejáveis, ao mesmo tempo que tem um certo gostinho de casa, um cítrico delicioso. É o reflexo da modernidade do Deolinda em um copo: o Portugal castiço, das tascas e do fado tradicional, está lá, mas em borbulhas, efervescente como um país moderno – em que a esquerda é quem resolve a crise econômica num arranjo político de nome tão inusitado quanto genial, a geringonça.
Duvida? Então “sai de casa e vem comigo para a rua”, como diria o Deolinda em “Um Contra o Outro” – single do disco seguinte, Dois Selos e um Carimbo, passo adiante em uma trajetória quase irretocável. Mas onde tudo começou, há quinze anos, foi mesmo neste Canção ao Lado, uma revolução tão singela quanto a de por uma flor no bico de um fuzil.
A Receita
50 ml de vinho do Porto branco
100 ml de água tônica
limão (a gosto)
hortelã ou outras ervas (a gosto)
Em essência, o Porto Tônica (ou Porto Tónico, como se diz em Portugal) é nada mais, nada menos que um highball. E como um bom highball, entender a proporção certa entre álcool-base e a bebida gaseificada que o acompanha é algo que vai da medida de cada bebedor. No caso do Porto Tônica, ainda é importante considerar o quanto você vai desejar mexer nessa mistura, adicionando elementos como uma fruta cítrica ou hortelã.
Sinceramente, acho que a medida certa vai depender de uma combinação de gosto pessoal com a temperatura lá fora – no verão lusitano, que não raro chega a 35ºC, colocar até meio limão e um bocado de hortelã deixa o Porto Tônico bastante refrescante. Já em temperaturas mais amenas, um Porto branco seco e uma dose mais curta de água tônica podem ser suficientes.
Fazer o Porto Tônica é bem simples: se sua combinação for apenas Porto & tônica, basta colocar o álcool e depois o refrigerante em um copo com gelo. Agora, se você for adicionar limão, a coisa muda um pouco de figura. Vale a pena misturar o limão e o Porto branco em uma coqueteleira com gelo, para depois transferir essa mistura a um copo highball já com gelo, adicionando por fim a água tônica. O mesmo vale se você decidir adicionar hortelã ou alguma outra erva (já tentei com manjericão e alecrim e os resultados foram bastante divertidos).
Pode fazer com Porto Ruby? Ou Tawny? Poder até pode, mas o resultado vai ser um drink mais doce e um pouco desbalanceado. Além disso, eu considero lá um certo desperdício – e muitos portugueses me acompanham, já que até poucos anos o Porto branco era uma raridade e foi se tornando mais popular justamente como ingrediente para coquetéis. Mas gosto é gosto, e vale mais um gosto que um vintém. Até semana que vem?
Reclames da semana:
No Programa de Indie, tivemos uma volta no tempo para 2008, em mais uma edição do nosso Baile de Debutantes, comemorando os discos que completam 15 anos. Chega mais:
Como contei na semana passada, estou embarcando em poucas horas para Porto Velho. O motivo? Cobrir o Festival Casarão nesse final de semana, que vai ter bandas como Terno Rei, Maglore, Black Pantera, Ratos de Porão e muito mais, então vale ficar ligado lá no Scream & Yell pra ficar de olho na cobertura.
Além disso, semana que vem eu vou moderar um papo no Web Summit, no Rio de Janeiro, com o Thibaud Lecuyer, CEO da Loggi. Se você estiver por lá, me dá um olá!
E essa é a primeira edição da Meus Discos depois de longas férias. Espero que vocês tenham gostado. Agora sim, temos a força à toda. Ou não?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Canção ao Lado, do Deolinda, e também de Mundo Pequenino, talvez o meu disco favorito dos portugueses. Também escrevi revendo os vídeos que eu fiz dos shows do Deolinda que vi em Lisboa e no Sesc Santana, em 2013, com alguns meses de intervalo. Tá lá no canal.
PS2: Para quem tá esperando as dicas de viagem pelo rio da Prata… segura aí, que semana que vem eu chego com a primeira parte delas.
PS3: Para quem quiser spoilers da viagem, porém, vale dar um oi lá no Instagram, que eu publiquei algumas prévias em um formato de diário de viagem maluco que eu aprendi com o Tiago Aguiar, vulgo Tiago Oliveira, vulgo… Dinha.
PS4: Para quem estranhou o vídeo dessa versão de “Grândola Vila Morena”, eu explico: ela é parte do projeto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, um negócio bonito que circulou nas redes sociais no começo da década, com vídeos de artistas portugueses, mas também de gente simples cantando canções que ficaram na memória – e os Ganhões de Castro Verde são um desses grupos de gente que se move pela música, em uma interpretação tão cheia de defeitos (que não importam) quanto de méritos. Vale fuçar e descobrir coisas tão incríveis quanto.
Obrigada por me apresentar música portuguesa nova. Meus pais ao ouviam fados e desagarradas. Muito bom conhecer essa nova geração! Amo seu bom humor e ironia 😊 e adoro as suas invenções nos drinks 🍹
Já ia comentar que era muita coincidência! Ouvi "Mal por mal" hoje cedo (uma das minhas favoritas da Deolinda), que conheci lá no Scream & Yell e ganhei esses dias uma garrafa de vinho do porto (só que tinto)!