#14: “La Dinastia Scorpio”, El Mató a Un Policia Motorizado + Fernet con Coca
"Nuevos discos, nuevas drogas"
“Pô, mas você só escreve sobre discos brasileiros?”, pergunta sempre algum amigo quando eu conto que comecei essa newsletter. “Não, porque nem sempre”, deveria responder eu, à moda de Rodrigo Amarante (para ficar em uma piada que já citei nessa newsletter). Faltava só a deixa para começar a expansão internacional da Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Mas aí veio o show do El Mató a Un Policia Motorizado em São Paulo na semana passada, a vontade de tomar um drink fácil de fazer, mas diferente e… ¡listo! Acá está nuestro primer artículo con um disco en español. Talvez não exista estreia mais justa: com exceção de um disco perdido do Soda Stereo (Canción animal, que tem o hino absoluto “De Musica Ligera”), o El Mató foi a minha primeira paixão do rock latino.
Formado em 2003, na cidade de La Plata, terra do Estudiantes e do Gymnasia, distante uns 60 quilômetros de Buenos Aires, o El Mató é o que se pode chamar de banda working class hero: seus integrantes não são particularmente bonitos, vêm da classe trabalhadora e suas canções falam de coisas comuns. Comuns mesmo, pelo menos quando se é um jovem adulto num país latinoamericano em crise: ter pouca grana no bolso para comprar discos (e drogas), relacionamentos complicados, mulheres, passar um sábado em casa sem fazer nada, precisar de um amigo para arrumar o carro, um cachorro perdido… sem nunca perder a esperança, porém, de que a vida vai melhorar. Para quem ouve suas músicas repletas de ruídos, bem à moda do rock alternativo dos anos 1990, a sensação muitas vezes é a de pertencer a uma pequena gangue (do bem), que se junta sempre em busca de uma festinha divertida ou pelo menos alguma distração barata.
Eles começaram por baixo, na cena independente de Buenos Aires, numa época em que guitarras barulhentas não eram lá bem o que as pessoas queriam ouvir. Os sons mais escutados na região portenha naquela época, ao menos pelos jovens e não necessariamente nessa ordem , eram o rock mainstream, algo de indie pop e os panelaços contra a crise da qual a Argentina parece não ter saído desde então.
Esse desprezo inicial não foi exatamente um problema: de maneira discreta, esse grupo liderado pelo carismático Santiago Motorizado (vocal e baixo) pode ir testando com calma suas canções inspiradas em bandas como Guided by Voices, Weezer, Yo La Tengo, Pavement e Velvet Underground. Mais que isso, permitiu ao grupo desenvolver uma relação próxima com a audiência, um magnetismo especial não só na Argentina, mas em toda a América Latina. Eu mesmo descobri o El Mató por conta do Superguidis, outra dessas bandas meio malditas e sujinhas, que gravou uma versão em português de “Navidad en los Santos” – uma canção maravilhosa que conta a história de um rapaz perseguido pela polícia em meio à noite de Natal.
Lançado no finalzinho de 2012 (e prestes a completar dez anos!), La Dinastia Scorpio é provavelmente o ponto mais alto da carreira grupo cheio de canções cativantes – e até mesmo quem não fala espanhol pode compreender essa força e esse lirismo com um pouquinho de paciência. Dinastia é um pequeno tesouro do rock latinoamericano de como se fazer música sincera, capaz de reunir desconhecidos em um abraço terno. Juro que não é força de linguagem: na última quinta-feira, no Cine Joia, enquanto o quinteto executava petardos como “Chica de Oro” ou “Mujeres Bellas y Fuertes”, foi difícil não entrar em um estranho movimento, misto de abraço de time de futebol antes de um jogo e roda punk. Mais difícil ainda é não se empolgar, em pleno 2022, com canções que dizem de forma tão cândida frases como “cuando juntes fuerzas, las cosas van a estar mucho mejor” (“quando[você] unir forças, as coisas vão estar muito melhores”, de “Chica de Oro”) ou “en este mundo peligroso, tenemos que estar juntos” (“neste mundo perigoso, temos que estar juntos”, de “El Magnetismo”). É sobre energia juvenil, mas não só.
Assim também como é sobre energia juvenil, mas não só, a bebida escolhida para harmonizar com este grande disco: o Fernet con Coca, também chamado por aí de Fernando, Fernandito, Fernuco ou Fercola – tipo aquele amigo seu do segundo colegial que tem quinze variações diferentes de um só apelido. O nome é autoexplicativo: uma junção rápida de Coca Cola com Fernet, o amaro italiano que caiu nas graças dos argentinos no início do século XX, em meio a uma onda de imigração parecida com a brasileira – e que fez tanto os hermanos como muitos paulistanos se acharem mais europeus do que latinos. Pffff.
Questões de identidade à parte, a verdade é que o Fernet é a terceira bebida mais popular da Argentina, atrás só de vinho e cerveja. E a marca que mais caiu no gosto do lado de lá da fronteira foi o Fernet Branca – que tem esse nome não por conta da cor, óbvio, mas sim por levar o sobrenome de seu criador, Bernardino Branca. E apesar de ter chegado à Argentina na virada do século, o Fernet Branca só foi se juntar com a Coca-Cola mesmo no começo dos anos 1980, bem no período em que o país voltava a viver uma democracia, assim como o Brasil. (Afinal de contas, a história latina muitas vezes pasa como diria o velho Barba: acontece como tragédia e se repete como farsa).
Sua criação é creditada a um grupo de estudantes universitários de Córdoba, a segunda maior cidade do país vizinho, mas não demorou muito para se espalhar pelo país e virar uma bebida das massas (claro que com ajuda de um bocado de marketing, é verdade). É mais ou menos a história do rock alternativo ao longo dos anos 1990: começou nas universidades e acabou indo parar nas paradas de sucesso com o Nirvana (e outros tantos grupos que as gravadoras contrataram em busca de um Kurt Cobain para chamar de seu).
Seja como for, fato é que o sucesso do Fernet con Coca foi tamanho que ajudou a disparar as vendas da bebida – estima-se que só cerca de 5% do líquido vendido no país vizinho seja consumido puro. E essa disparada aconteceu especialmente a partir da crise de 2001: enquanto o corralito fazia o país mergulhar no caos, as vendas de Fernet só cresceram, chegando a uma alta de 250% na primeira década do século XXI, em torno de 40 milhões de litros. Haja erva.
É fácil entender o porquê da popularidade: lá, uma garrafa de Fernet custa o equivalente a algumas (poucas) dezenas de reais, tal como uma cachaça minimamente decente por aqui. Ambas as bebidas, vale dizer, giram em torno dos 40% de teor alcóolico, o que as faz uma alternativa barata para quem quer esquecer os problemas. Além disso, combinar o amaro à Coca-Cola é algo fácil de se fazer em qualquer situação, dado que, com os dois ingredientes, bastam algumas pedras de gelo para você ser feliz.
Ok, vá lá: para quem não está acostumado, é preciso amadurecer o paladar com o amargo do Fernet para encarar bem a brincadeira. Da mesma forma, devo dizer, que é preciso se acostumar com certo grau de guitarras ruidosas para que as canções do El Mató desçam goela abaixo fresquinhas, fresquinhas. Outro ponto é que o Fernet con Coca é uma bebida que fica bem decente mesmo em condições sub-ótimas (como Coca sem gás, como foi o meu caso enquanto escrevia este texto). E isso tudo talvez tenha ajudado o coquetel a entrar na lista de coquetéis reconhecidos pela IBA, a International Bartenders Association, em 2020 – ainda que pelo nome de Fernandito.
Assumo que talvez eu esteja sendo “bondoso” com a expressão energia juvenil (para não falar em espírito juvenil, rá!): rock já deixou de ser coisa de jovem, bem como muitos membros da geração Z acham beber um pouco demodé, ainda mais quando a mistura envolve refrigerantes. Não importa, não: como diria Jules Feiffer, “maturidade é uma fase, adolescência é para sempre” – e eu sigo contando um pouco as moedas no bolso para saber se vou conseguir ter dinheiro para tomar umas cervejas e comprar uns vinis novos no final do mês, como Santiago canta tão bem em “Nuevos Discos”. E é difícil não se sentir jovem depois de lavar a alma em um show suado e barulhento (daqueles de voltar pra casa com o ouvido zumbindo) como foi o do El Mató no Cine Joia, ao lado de amigos que também começam a ter seus cabelos brancos e talvez não aguentem mais do que duas ou três músicas em uma rodinha – afinal, me duelen las rodillas –, mas não param de sorrir.
Três músicas, em especial, me fizeram bastante feliz na semana passada em pleno bairro da Liberdade. A primeira, “El Tesoro”, não faz parte do repertório de La Dinastia Scorpio, mas foi difícil não abrir um sorriso quando Santiago dedicou a canção a Raí e Juninho Pernambucano – ou quando, momentos depois, ele respondeu um canto de apoio a certo candidato à presidência com uma data que não sai da minha, da sua, da nossa cabeça: “30 de outubro, 30 de outubro”.
Responsável por encerrar a primeira parte do show (antes do bis), “El Fuego Que Hemos Construido” é também a canção que fecha La Dinastia Scorpio – e muito provavelmente, é a minha música favorita dos platenses. E não é à toa: em meio a uma viagem instrumental de sete minutos que remete aos melhores momentos do Yo La Tengo, ela traz palavras tão simples quanto é possível, mas de uma força poética incrível: quiero mirarte y que me mires. Há pouco mais de um ano, eu peguei emprestadas essas palavras para fazer uma tímida declaração de amor em meio a um romance à distância que virou um namoro interestadual (com escalas em Lisboa, Porto, Madri e Zaragoza, é verdade). Naquele momento, eu nem sabia exatamente o que estava fazendo, mas só queria acreditar que poderia dar certo. Deu – e lembrar dessa história toda ali me deixou arrepiado, filminho passando na cabeça e tudo mais.
Mas foi outra canção desse disco que completa uma década que me tirou lágrimas do rosto: “Más o Menos Bien”. Executada lá pelo meio do show, ela tem versos que fazem tanto sentido neste mês de outubro: “amigo, não é hora de chorar, é hora de buscar o essencial” ou “pai, preciso de um pouco de dinheiro para que tudo siga mais ou menos bem”. (Se você por acaso é o meu pai, que lê essa newsletter, aviso: tá tudo bem com minhas contas, seu Capelas!). Não é só de dinheiro que a gente precisa, claro, mas não acho que seja pedir muito para que as coisas fiquem “mais ou menos bem”, como numa bebida em que o gosto doce supera o amargor. Ainda mais depois de de tanto tempo sendo difícil responder “sim” quando alguém pergunta “como vai?”. Eu juro que o plano hoje não era falar daquilo, mas me parece inevitável a esta altura do campeonato. No mais, só me resta desejar a nós o mesmo destino do refrão de “Chica de Oro”: todo lo que ves será nuestro, nena.
A Receita
50 ml de fernet
Coca Cola a gosto
gelo
Essa possivelmente é uma das receitas mais fáceis que eu já publiquei aqui na newsletter. Tudo o que você precisa fazer é pegar um copo alto – o long drink, lembra? – e colocar as coisas na seguinte ordem: gelo, fernet, Coca. O quanto de cada coisa? Aí é uma questão de proporção e de gostos. Quem está mais acostumado com Fernet costuma usar 1:2 – ou seja, se são 50 ml de Fernet, vão ser 100 ml de Coca. Já paladares mais comuns vão preferir a proporção 1:4 – isto é, se são 50 ml do amaro, serão 200 ml de refrigerante. Vale você ir testando aí na sua casa.
Há ainda quem coloque um pouco de limão (seja suco ou rodela) para dar uma graça, mas acho que a beleza do Fernet con Coca é ser algo mais denso mesmo, diferentemente de um Gin & Coke, por exemplo. Quer algo mais fácil que isso? Só se for aprender a tocar o riff de “Come As You Are” no violão.
Se a edição dessa newsletter tá internacional, a gente tem que seguir com os reclames de maneira chique, não é mesmo?
O primeiro ponto é para avisar que tá nas bancas a edição de outubro da GQ, na qual eu assino um perfil de Alfredo Nugent Setubal, herdeiro da família que fundou o Itaú e um dos seis sócios executivos da editora Todavia, de hits como Torto Arado e um dos meus livros favoritos dos últimos anos, Os Supridores. (Além disso, tem até fotinho minha no meio da revista, uma boniteza que só). A capa é o craque Vini Jr., infelizmente no Real Madrid.
Na Cajuína, um dos lugares que tem me ajudado a pagar as contas e que tem sido massa colaborar, tem um papo rápido meu com a veterana executiva de tecnologia Paula Bellizia, falando sobre feedbacks certeiros. (Aliás, cê tem algum feedback para me dar? Escreve aí!)
E no Programa de Indie a gente tá muito fino: semana passada teve papo com os Pixies, que tocaram ontem no Popload Festival (e chegaram perto de fazer um show histórico, como relatei nesse fiozinho). E já falei aqui, claro: teve papo com o grande Santiago Motorizado há duas semanas e se você gostou deste texto, vai adorar a entrevista.
Espero que vocês tenham gostado dessa primeira incursão latina da newsletter. Outras virão. Enquanto isso, amigos, formemos una banda de rocanrol. ¡Hasta la victoria!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de La Dinastia Scorpio, do El Mató a Un Policia Motorizado, além de El Nuevo Magnetismo, coletânea dos primeiros trabalhos do grupo, e a belíssima canção “El Perro”, um outtake de La Otra Dimensión.
PS2: Para quem quiser experimentar o Fernet con Coca sem gastar pelo menos uma centena de reais numa garrafa de Fernet Branca, recomendo a visita ao La Guapa, casa de empanadas da chef Paola Carosella, uma espécie de embaixadora informal da cultura argentina por aqui. Quase todas as unidades têm este drink em seu cardápio (chamado, porém, de Fernet Cola e com a adição de limão siciliano). Se você for, aproveita e me manda uma caixinha com uma empanada Pucapapa (queijo e cebola caramelizada) e outra Julieta (requeijão de corte, goiabada e alecrim). Até salivei aqui só de lembrar.
PS3: Meus Discos, Meus Drinks também é fofoca: anos antes de vir para o Brasil, Paola namorou o mestre Charly García, uma das maiores referências do rock en español (e que não demora, pinta por aqui também). ¡Yo aumento, pero no invento!