#9: "Carlos, Erasmo...", Erasmo Carlos + Cachá-i-kiri
"Tenho fé que o meu país ainda vai dar amor pro mundo"
Esta é a décima edição da Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais – nove drinks & discos e o Guia de Compras interrompendo a contagem há algumas semanas. Para marcar essa data especial (e o fato de que chegamos a mais de 300 inscritos), eu decidi escolher um disco clássico entre os clássicos, um favorito de cabeceira: Carlos, Erasmo…, sétimo álbum de estúdio do amigo de fé, irmão camarada Erasmo Carlos. Para combinar, a ideia era ter um drink também histórico, mas senti que precisava completar uma trilogia de cachaça. Na verdade, eu tinha inventado uma cachaça infusionada com capim cidreira na sequência do drink Pantanar e achei que a combinação de doçura e sabor de mato cabia bem a este álbum estradeiro do Tremendão. É por isso que nesta semana o coquetel também é inventado: o Cachá-i-kiri, uma versão caipira (com cachaça e chá, entendeu?) do daiquiri cubano.
Imagino que os amigos iniciados em música tenham recebido o título dessa newsletter com um sorriso no rosto. Afinal, Carlos, Erasmo… é daqueles discos que a gente ouve repetidas vezes e sempre encontra algo para se espantar no meio do caminho, uma beleza do cancioneiro brasileiro. Mas antes de mergulhar nessa aventura com o Tremendão, vou situar quem talvez tenha torcido o nariz e não saiba que Erasmo é mais do que aquele cara lá da “Festa de Arromba”.
Aliás, a Jovem Guarda é um bom ponto de partida para entender esse momento especial de Erasmo Esteves, o cria da Tijuca que foi amigo de adolescência de Tim Maia e transformou o “Hound Dog” em “O Calhambeque”. Depois de passar os anos 1960 animando jovens tardes de domingo na TV Record ao lado de Roberto Carlos e Wanderléa, Erasmo chegou ao final da década em busca de reinvenção.
O programa que deu nome ao movimento que o catapultou havia acabado. O amigo Roberto, após vencer o Festival de San Remo em 1968, começava na mesma época sua transição para a música romântica, fazendo uma ligeira parada no universo do soul. Enquanto isso, a turma de tropicalistas liderada por Caetano e Gil mostrava que as guitarras não estavam exclusivas ao iê-iê-iê no Brasil. Além disso, com a virada da década, Erasmo se via chegando perto dos 30 e já não cabendo mais nas canções cheias de carangos e gatinhas manhosas. Era preciso ir além da fama de mau.
O primeiro passo para a transição, ainda na gravadora paulista RGE, foi o interessante Erasmo Carlos e os Tremendões, lançado em 1970. Ali, Erasmo ensaiava formas de fundir o rock com a música brasileira, avançando pelo caminho do samba e do soul. Duas de suas maiores canções estão no álbum: a baladaça “Sentado à Beira do Caminho” e o samba-rock “Coqueiro Verde”. Mas havia mais: uma versão delicada de “Teletema”, da dupla Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, e releituras curiosas de “Saudosismo” (Caetano Veloso) e “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso). Não são versões incríveis, mas mostram a busca do artista por um novo espaço, um novo canto para chamar de seu.
No ano seguinte, já na toda poderosa Philips de André Midani, Erasmo pode mostrar o que queria fazer. Toda poderosa mesmo: a gravadora tinha praticamente todo o casting da MPB que importava na época, à exceção de, possivelmente, Roberto Carlos (Columbia) e Milton Nascimento (Odeon). E ele chegou ao novo selo inspirado – nem que fosse por um pesadelo: antes de gravar o disco, foi com a nova mulher Narinha para os EUA. Lá, viu Elvis em Las Vegas, além de um show especial com Bill Haley, The Platters, The Coasters e Chubby Checker. Na hora dos aplausos, só ele e a mulher se levantaram para saudar o cantor de “Let’s Twist” – e ali ele viu, em carne o osso, o pesadelo de se tornar para sempre só “um cantor da Jovem Guarda”.
De volta ao Brasil, Erasmo pode contar com um time de peso. A produção de Carlos, Erasmo… ficou a cargo de Manoel Barenbein, que havia produzido quase todos os grandes álbuns da Tropicália. Nos arranjos, três mestres: Chiquinho de Moraes (em quase todo o disco), Rogério Duprat (“26 Anos de Vida Normal” e “Maria Joana”) e Arthur Verocai (“Ciça, Cecília”). E a banda era incrível: três quintos dos Mutantes (Liminha fazendo guitarra e baixo, Sérgio Dias na guitarra e Dinho na bateria), mais Lanny Gordin e o grande Dirceu tocando Berimbau). Se precisasse de mais, tinha: amigo de todo mundo, Erasmo recebeu composições inéditas de Caetano Veloso (no exílio!), Taiguara e Marcos Valle para cantar no álbum, além de recuperar uma velha canção de Jorge Ben: “Agora Ninguém Chora Mais”, que virou um rockão latino para Santana nenhum botar defeito.
Sabor latino é algo, inclusive, que não falta nesse disco: “De Noite Na Cama”, composta por Caetano no exílio como retribuição a “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, feita pelos Carlos em homenagem ao baiano, também traz a influência do guitarrista mexicano, mesclada a um bom samba. (A outra canção que Caetano fez em retribuição à dupla é um clássico: é só “Como Dois e Dois”). Já “Maria Joana”, feita em Tel Aviv após uma viagem com uma óbvia substância, tem até uma banda de metais caribenha para lhe dar apoio. Talvez por conta desse primeiro sabor foi que eu pensei na harmonização de Carlos, Erasmo… com um coquetel de origem latina.
Sim, porque o Daiquiri é um drink nascido verdadeiramente em Cuba – o açúcar e o limão eram temperos para disfarçar o sabor forte do rum que os mineiros recebiam como parte de seu pagamento nas jazidas de ferro da Sierra Maestra (si, si, la misma de la revolución). A história está bem contada por Simon Difford no Difford’s Guide, para quem quiser mergulhar numa taça refrescante de boas narrativas – e por falar nisso, só vale a nota de rodapé que Ernest Hemingway era um fã de daiquiris, a ponto de ter participado de uma variação só sua. Isso, porém, é assunto pra outro dia.
Mas há mais que apenas latinidades no caldeirão de Erasmo. É nesse disco também que estão algumas das mais bonitas baladas rock dos anos 1970, como é o caso de “Masculino, Feminino”, um delicado dueto entre o Tremendão e a cantora Marisa Fossa. Sugestivo? Sim, mas só pra lembrar que sexo com amor é ainda mais gostoso. (Desculpem a breguice). Também é o caso de “Ciça, Cecília”, com uma letra esclarecida e arranjos de Verocai que fazem chorar. Há rocks bluesy – e o melhor deles, por incrível que pareça, foi feito quase todo por Roberto: “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”. E há canções balançadas para hippie nenhum ficar chateado, como “26 Anos de Vida Normal”, “Mundo Deserto” e “Gente Aberta”, esta última praticamente um hino das festas de brasilidades da juventude paulistana anos 10. Se o amor chamar, a gente vai, né.
Mais que isso, é um álbum que cheira a gosto de estrada e mato, como se pode perceber pela capa e pelo visual já mais largado de Erasmo, livre do figurino da emissora dos Machado de Carvalho. Um disco que antecipa um pouco do clima de desilusão daquele começo dos anos 1970, quase descambando para o desbunde, mas sem perder o ponto com o seu lugar social – e além da trinca hippie, vale citar aqui a estranha “Sodoma e Gomorra”, que mistura passagens bíblicas com o temor da bomba nuclear, tão em voga naqueles tempos.
E é nesse jeito estradeiro que eu achei o lugar dessa cachaça infusionada em capim cidreira – ingrediente que, repito, surgiu a partir das pesquisas para a cachaça com erva mate da coluna da semana passada. Mas, ao contrário daquele último, essa cachaça tem um cheiro e um aspecto adocicados, podendo até ser bebida pura (coisa que fiz bastante nos últimos dias, esquentando o peito antes de sair para algum show). Unida ao xarope de açúcar e ao limão, essa cachaça de cidreira faz o daiquiri ficar menos selvagem, mas ainda assim digno da estrada.
É uma bebida que cabe na festa, mas também tem uma dulçura que se molda aos momentos mais românticos de Carlos, Erasmo…. E claro, por seu DNA cubano, tem lá seu certo sabor de contracultura, o que harmoniza muito bem com as canções desse momento muito feliz na carreira do Gigante Gentil. Modéstia à parte, uma bebida em que cada gole faz jus às reticências do nome do disco, um charme que me delicia toda vez que penso – este não é o outro Carlos, mas sim, ele mesmo… Erasmo!
Mais do que um convite para ir à cozinha e testar novas receitas, esta newsletter é também um convite: vá ouvir Erasmo Carlos. Se você só o conhece pela Jovem Guarda, comece por este disco. Se você já é fã desse disco, mas não foi muito além, caminhe por seus trabalhos nos anos 1970 (Sonhos e Memórias, Banda dos Contentes e Pelas Esquinas de Ipanema, em especial, são três grandes momentos). E se você conhece tudo isso, aproveite: você está em ótima companhia, de gente certa, gente aberta, que tem fé que o nosso País ainda vai dar amor pro mundo. Numa semana como essas, é importante dizer essas coisas – e a gente vai dar um jeito, meu amigo.
A Receita
1 dose (50 ml) de cachaça infusionada em capim cidreira
15 ml de suco de limão
10 ml de xarope de açúcar
Mais uma vez, lá vou eu inventar moda: infusionar capim cidreira em cachaça é simples, e dá mais resultado que a erva mate da semana passada. Eu repito a explicação: separe um pote hermético e coloque lá dentro um bocado da erva – eu usei cerca de 10g de capim cidreira para cada 100 ml de cachaça. É abaixo do que recomenda o manual do Mixology News? É, mas achei que ficou na medida. Depois de colocar a erva, coloque a cachaça, tampe o pote e misture. Guarde o frasco num local escuro e, a cada 24 horas, mexa vigorosamente o vidro.
Para esta receita, deixei a cachaça infusionando por dois dias. Ao final, coei a mistura em um filtro de café – basta uma meia hora para conseguir que toda a cachaça seja bem aproveitada. O resultado final foi uma bebida cor de mel, que eu guardei num frasco e coloquei na geladeira. Ao contrário da cachaça de erva mate, esta aqui se manteve bem alcóolica por vários dias, mas confesso que não deixei sobrar por muito tempo para fazer o teste.
A seguir, é só fazer a receita clássica de um Daiquri. Na proporção, segui a indicação de Simon Difford de 10:3:2, seguindo a ordem de destilado, limão e xarope. Você pode fazer pequenos ajustes caso prefira seu drink mais doce, mais alcóolico ou mais cítrico – vou adorar saber! Coloque tudo numa coqueteleira, bata bem e insira o resultado final numa taça de Martini, se possível já resfriada previamente. (A dica aqui de casa é colocar a taça no freezer por alguns minutos, normalmente antes de começar a separar os ingredientes para irem à coqueteleira). E é isso aí, bitcho: agora, só falta curtir.
Essa semana tá mais magrinha em termos de reclames:
No Programa de Indie da última semana, um especial de DUAS HORAS sobre o ano de 1992, “the year after”. Tem power pop, sons barulhentos, caipirices, shoegaze e até rock en español pra gente se divertir voltando ao ano em que, outras coisas, eu nasci.
E no Scream & Yell, tem uma crítica bonita demais do Marcelo Costa sobre o show de lançamento do “V”, novo disco da Maglore que eu já elogiei aqui. Acompanhando o texto, tem vídeos meus de algumas canções – pra ver tudo, chega mais aqui na playlist com seis trechos do show.
Por hoje, é só, pessoal. Faltam só algumas semanas pra gente poder cantar o refrão: chorava todo mundo, mas agora ninguém chora mais. Vai dar certo.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito, mais uma vez, na véspera do envio da newsletter, em uma maratona de escrita – foi nada mais nada menos que o quinto artigo em um só dia (frilas, frilas). Por isso, pedimos desculpas caso tenha algumas letras fora do lugar. Obviamente, ele foi escrito ao som de Carlos, Erasmo…, tanto no streaming quanto no vinil – tenho um orgulho besta de falar da minha cópia do disco, uma reedição americana caprichada com letras (e tradução em inglês) e um encarte especial. Coisa fina da Light in the Attic, que eu achei por US$ 20 numa loja do Bowery em Nova York faz uns anos. Ô saudade dessa viagem.
PS2: Não sei se você já teve a chance de ver algum show de Erasmo. Se não, vá ver: é dos caras mais simpáticos que tem por aí em cima de um palco, com um repertório incrível. Eu já dei essa sorte algumas vezes – incluindo numa Virada Cultural em que ele tocou este Carlos, Erasmo… no palco do Theatro Municipal acompanhado de Laura Lavieri. Coisa fina.
PS3: Por falar em Erasmo, vem aí em breve uma entrevista deliciosa com histórias não só dele, mas de outras figuras incríveis da MPB, como Tom Zé, Gal Costa, Guilherme Arantes e Nando Reis. Se tudo der certo, sai semana que vem no Scream & Yell. Com quem? Ah, isso vai ter que esperar…
disco da vida :)
Boa descoberta! Boletim assinado! Comecei a curtir Erasmo mesmo com Banda dos Contentes! Vou tentar fazer essa infusão com cachaça!