#12: “Lula”, Lupe de Lupe + Bombeirinho
“Brasil Novo ainda vai ser o que jamais se chamou Brasil”
O velho Lênin já dizia que “há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”. Ele não conheceu o Brasil dos últimos dez anos: uma década em que décadas aconteceram– e viver boa parte desse período dentro da redação de um jornal talvez só tenha amplificado essa sensação. Mas, nessa semana que estamos vivendo, parece que tudo pode acontecer. Cada dia se derrama em horas, enquanto o domingo não chega. Um domingo que muita gente espera há quatro anos, seis, talvez até mais tempo.
Se posso confessar que passei os últimos dias esbanjando otimismo da boca pra fora, torcendo por um futuro um pouco menos tenebroso, na hora de escrever essa conversa semanal com vocês devo dizer que quase digito com os dedos cruzados para dar sorte. Por isso, peço licença ao leitor que só veio aqui buscar uma receita de bebida pro final de semana: hoje talvez a conversa seja um pouco mais séria. Mas prometo tentar deixar o papo o mais leve o possível com meus melhores trocadilhos, harmonizando um dos discos mais importantes lançados no Brasil em 2021 (Lula, da Lupe de Lupe) com um coquetel que qualquer boteco tosco deve ter no cardápio (o Bombeirinho).
A escolha da semana, óbvio, começa pela cor do coquetel – se pra bom entendedor meia palavra basta, a gente aqui reafirma que o drink da semana tinha que ser vermelho mesmo. Mas há mais que isso: criado nos anos 1980 (tal como o PT), o Bombeirinho é um daqueles coquetéis meio controversos (erhm, tal como o PT). É um fruto da época que bartenders usavam corantes para tingir suas criações e estavam mais preocupados com eficiência e menos com o soc… sabor (ok, não exatamente como o PT, mas vá lá). Afinal, quem é que colocaria tanta groselha assim num coquetel, sabe? Pois bem, ela está aí para disfarçar o gosto da cachaça – especialmente para quem não gosta do sabor ou está tomando uma bebida de baixa fidelidade. O limão, por sua vez, ajuda a fazer essa mistura pararem em pé, tal como uma frente ampla que pode juntar Henrique Meirelles e Guilherme Boulos em um só palanque. Para alguns, pode parecer uma receita indigesta; nesse momento, é o coquetel derradeiro que vai nos redimir (se bem que hoje não é dia de falar de Chico Buarque aqui, esse dia já foi).
Mas há mais um motivo para resgatar o Bombeirinho (não, não é o Cabo Daciolo e a incrível URSAL) numa semana dessas. Passei minha adolescência inteira ouvindo “cachaceiro” como um xingamento dirigido ao ocupante do Planalto daquela época. (Faça as contas: eu nasci em 1992 e completei 18 anos em 2010). Mas confesso que nunca vi uma predileção por esta ou aquela bebida impedi-lo de exercer seu posto. Enquanto isso, a cachaça ganhou status e virou ingrediente de alguns dos mais interessantes bares de São Paulo (vá ao Pina, na Santa Cecília, e entenda rapidamente o que eu quero dizer). Hoje, acho um barato poder fazer drinks com a nossa caninha sem preconceito. Agora, leite condensado? Pffff. Faça-me o favor. Eu sei, eu sei, eu até deixo você me chamar de hipster santacecilier tentando resgatar mais um coquetel de boteco sujo – mas só depois de você fazer a receita aí na sua casa, tá?
Por falar em boteco sujo, a banda da semana parece justamente saída de um deles. “Quem?”, provavelmente terá perguntado o leitor ao ler o nome do conjunto. Lupe de Lupe, caro colega de balcão. Possivelmente, a banda mais caótica, visceral e verborrágica a passear pelo underground brasileiro na última década. Ponta de lança da Geração Perdida de Minas Gerais e hoje parte do selo Balaclava, a Lupe de Lupe é conhecida pelo rótulo de “rock triste”, por gostar de polêmicas e por fazer shows que carregam pequenas multidões por aí – a despeito de muita gente nunca ter ouvido falar neles.
Entre 2019 e 2022, vi os caras duas vezes: uma abrindo para o Cloud Nothings, outra fechando a primeira noite do Balaclava Fest. Nas duas saí suado, rouco e com um sorriso aberto de um lado a outro do rosto. (Ok, um pouco mancando também, por sempre me enfiar nas rodinhas de pogo, mas isso a gente disfarça). Para quem cresceu nos anos 2000, sei que “rock triste” pode fazer muita gente pensar em emo, mas a Lupe vai um bocado além. Eis aqui uma banda autodepreciativa, mas que também tem muita guitarra torta, letra raivosa, política e, no meio de tudo isso, até umas canções de amor – vale ouvir “Gaúcha”, “17” ou “O Arrependimento”, para ficar em três exemplos, para sacar o que eu quero dizer.
Em tempos em que nove entre dez bandas são fofas com jornalistas, fãs e o sistema, a Lupe de Lupe tem a mania de ser meio chata, meio ranzinza, meio mala mesmo. Ou pra usar uma palavra repetida nesse texto… controversa. Muito disso é culpa da personalidade online de um de seus vocalistas, Vitor Brauer, ainda que ele evite o rótulo de líder do atual quinteto. A Lupe de Lupe, por incrível que pareça, é uma democracia. E ainda que nos últimos anos, o cenário independente tenha sido pródigo em bandas significativas, talvez nenhum grupo reflita tão bem as questões e contradições da política nacional da última década do que o grupo que Brauer e seus amigos formaram em 2009, em Belo Horizonte. Aliás, a saber, na formação atual a Lupe de Lupe é Renan Benini, Cícero Nogueira, Gustavo Scholz e Jonathan Tadeu, todos eles capazes de compor, cantar e se esgoelar por seus versos.
Mas eu divago, pois falava de política: lá em 2012, quando tudo parecia bem no Brasil, eles já cantavam que “Há Algo de Podre no Reino de Minas Gerais”, mesmo que reconhecessem que seu coração também pertencesse ao estado de Drummond. No disco seguinte, Quarup, a mensagem era mais direta: a abertura já dizia “o futuro é feminino/minha presidente é uma mulher”, enquanto “SP (Pais Solteiros)” homenageava a capital paulista e trazia Brauer discursando: “sei que a vida anda difícil aí com essa galera conservadora e sem cérebro/tem gente que quer tentar a loucura de separar a gente/mas vamos continuar unidos que venceremos todos, sem dúvida”. Até parece que ninguém soltaria a mão de ninguém, né? Mas a metralhadora verbal de Brauer não poupava muita gente: em “Eu Já Venci”, ele botava o dedo na cara da esquerda festiva, ao mesmo tempo em que batia no peito e perguntava: “pode o filho de uma enfermeira ser um gênio?”. Pode.
E se fosse preciso mais uma prova, talvez valesse a pena olhar a letra de “O Brasil Quer Mais”, lançada em 2018 pelo grupo mineiro, pouco antes das fatídicas eleições daquele ano – a faixa está em Vocação, o sucessor de Quarup. Há inúmeros trechos para se citar nessa canção caótica, que defende os dois presidentes da República eleitos pelo PT enquanto aponta tantos dedos quanto possível. Mas fico com um só: “mas é preciso coragem pra se sacrificar”. É preciso também coragem para dar o passo que eles deram a seguir: em 2021, o grupo decidiu dar a seu novo disco o singelo nome de Lula. (Dizem as más línguas que o disco ia chamar Trator, mas a banda mudou de ideia de última hora. O resultado da decisão está até registrado no álbum em “Caetés”, que contém um áudio de Fernando Dotta, il capo do selo Balaclava, reagindo ao anúncio do grupo. Vale ir lá ouvir).
Mais coragem ainda é fazer um disco em que todas as músicas, à exceção da última, tem nomes de cidades. É um reflexo da natureza estradeira do grupo, que rodou o país em condições precárias em turnês de nomes inspirados, como Sem Sair Na Rolling Stone. Mas também é um desafio encapsular a natureza de cada canto do Brasil em uma narrativa de três, quatro ou cinco minutos, ainda mais se há guitarras tortas por trás de tudo isso. Assim como um Bombeirinho meio feito às pressas, é um disco que nem sempre vai descer redondo no primeiro gole – especialmente para quem estiver com sentidos desacostumados ao ruído.
Mas Lula é um prodígio: safado de coração, é um disco que tem de tudo: de uma das maiores canções de amor dos últimos anos (“Coromandel”, de Cícero) a uma balada definitiva sobre as praias fluminenses (“Cabo Frio”, de Renan), composta por um mineiro! Tem axé disfarçado de indie (“Salvador”, de Gustavo), tem arrocha-vanerão carregada por guitarra (“Pelotas”, também de Renan) e pelo menos um samba torto pra ninguém botar defeito (“Contagem”, de Jonathan Tadeu). Um disco complexo, como o Brasil é complexo (ok, desculpe o clichê, caro leitor). Ao contrário do Brasil, porém, é um trabalho que não tem lá muito o medo de botar o dedo na cara quando necessário – e isso vale tanto para a diss-track “Goiânia” quanto para “Sorocaba”, uma espécie de diário de viagem às avessas, ambas saídas da pena de Vitor Brauer. Às vezes, pode parecer um disco longo demais, às vezes pode parecer que tem uma parte meio indigesta. Mas é só dar o gole… digo, o play seguinte, e as coisas voltam a fazer algum sentido. E eu não vou nem falar de “Brasil Novo”, a faixa que encerra o álbum – vou deixar você ouvir mesmo, leitor.
Tá, e quando é que chega a harmonização? Bem, vamos lá: tanto o álbum mais recente da Lupe de Lupe quanto o Bombeirinho não só tem aquele sabor de Brasil, como também compreendem a complexidade de juntar sabores diversos em um só lugar. Tomar um gole de cachaça-groselha-limão ou ouvir uma canção como “Natal” tem, em mesma medida, doçura, acidez e aquele travo na garganta que desce queimando.
Além disso, ambos cabem muito bem nessa semana. Eu reconheço que muita gente pode até torcer o nariz para o Bombeirinho. Mas buscar no passado uma receita para acabar com o incêndio que é viver no Brasil nos últimos anos não é uma estratégia ruim, muito pelo contrário. Especialmente quando essa receita lá de trás chega cheia de tarimba, experiência e vontade pra fazer a coisa valer, além de muito apoio. E se confessar em voz alta que essa receita é boa pra você, tem crise não: pode beber no seu canto, sem fazer alarde – o gole, assim como o voto, é secreto.
Já o disco da Lupe de Lupe tem pelo menos umas três frases que valem para a semana. Se em 2018 a gente não pode evitar o desastre, um mundo melhor parecia impossível, vale dizer que “o impossível é questão de tempo”. Pode ainda dizer “pras tia” que o homem “tá voltando em definitivo”. E se você ainda tem alguma dúvida do que é que eu estou falando nessa newsletter, do que é que está em jogo nesse domingo, até mesmo pela liberdade da gente se preocupar mais com bons discos e drinks (cacete, eu nem gosto tanto de política assim!), deixo aqui esse verso de “Sorocaba”: o que está em jogo é que “ser livre é não ter medo de errar, ser livre é não ter medo de ser ridículo, ser livre é não ter medo de ser feliz”. E o Brasil precisa ser feliz de novo. “Brasil Novo ainda vai ser o que jamais se chamou Brasil”.
A Receita
50 ml de cachaça
15 ml de suco de limão (meio limão)
10 ml de groselha
gelo a gosto
Achou que eu ia passar aqui os números de quem eu vou votar, né? Calma, isso vem lá no final, se você estiver mesmo interessado. De qualquer modo, vale dizer que Bombeirinho de boteco mesmo não costuma ter lá muita medição – aposto que o Baixinho do bar da sua esquina no máximo deve fazer uma contagem de segundos da bebida saindo pelo gargalo, sabendo que vai dar tudo certo. Mas como aqui a gente tá tentando reabilitar o Bombeirinho da mesma forma que o U2 fez com “Helter Skelter” (eu sei, referência repetida), vamos a uma certa proporção. Essa daí foi a que eu usei nos últimos dias e agradou até mesmo quem não gosta de cachaça (minha sogra, a dona desse copo bico de jaca que ilustra a foto principal do texto).
A receita aqui é simples: pega um copo grande (ou um mixing glass, se você tiver) e coloca tudo lá dentro: a cachaça branca, o limão, a groselha e o gelo. Mistura tudo com uma colher (ou uma bailarina) e passa direto para um outro copo menor. Marcas? Aqui eu usei cachaça 51 e groselha da Hemmer, mas pode usar a cachaça que tiver por aí e a groselha Milani, se for o caso. O importante mesmo é ter bastante gelo no primeiro copo pra não deixar seu Bombeirinho quente demais. Rá, rá, rá.
Agora, se você quer a receita da minha cola no final de semana, segue aí a decisão das últimas horas, lembrando que eu voto em São Paulo. Lembrando ainda mais que é muito, muito importante que vocês prestem atenção nos votos para o Legislativo. Se você lê essa newsletter, eu boto uma fé que você seja no mínimo um pouco progressista, então é mais que justo, é necessário buscar um Congresso mais parecido com o que a gente pensa. É importante demais.
Deputado Federal: 1877 - Ricardo Galvão, Rede (escrevi tanto #vivaciência em 2021 que decidi abraçar a bandeira, deixando de lado meu voto clássico na excelente Luiza Erundina)
Deputado Estadual: 50123 - Ricardo Alvarez, PSOL (#ABC)
Senador: 400 - Márcio França, PSB (#votoútil)
Governador: 13 - Fernando Haddad, PT (#homembonito)
Presidente: 13 - Luís Inácio Lula da Silva, PT (e se você é um bom leitor, saberá que essa é a primeira vez que esse nome aparece nessa newsletter inteira).
Para os reclames da semana, uma dose tripla de Programa de Indie!
Na semana passada, batemos um papo incrível com o Santiago Motorizado, da banda argentina El Mató a Un Policia Motorizado, que vem tocar no Brasil na semana que vem. Foi a nossa primeira entrevista internacional (e a primeira vez que eu fiz uma entrevista inteira em espanhol, fiquei muito orgulhoso, hehe).
E porque essa semana, bem, é essa semana, nós resgatamos da gaveta dois programas mais que especiais: o Contrapontos vem de novembro de 2020, enquanto o Pé na Porta vem de março de 2021. Em ambos, a visão de que a arte deve almejar o mundo melhor e denunciar a realidade que está aí – e esse é um pacto ainda maior na música alternativa. Mais: são dois programas cheios de músicas fortes, para dar força pra gente chutar os canalhas pra bem longe. Se precisava de mais algo, o recado está dado.
Felizmente, caro leitor, essa não é uma quinta-feira comum. Estamos vivos para lutar e para cantar, porque o Brasil quer mais.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som da discografia da Lupe de Lupe – além de Lula, fiquei percorrendo uma seleção muito particular dos discos da banda. Pra facilitar o trabalho, até preparei uma pequena playlist para quem quiser se aventurar pela banda.
PS2: Reforço o aviso: preste atenção no Legislativo e não se esqueça de baixar o e-Título (que poderia se chamar E-leitor, hein?) até sábado. Domingo ele não vai funcionar. E não vá confiando que a sua seção é igual: mais de 2 mil seções eleitorais foram cortadas por conta, especialmente, dos quase 700 mil mortos pela covid. Poderiam ser muitos menos – e é também por eles que domingo é um dia tão importante.
PS3: No mais, caro leitor, é isso aí: consciência no voto, ouça Big Star e nos vemos do outro lado.
PS4: Pós-edição, em maio de 2023, eu cansei da loucura que é a sequência de números ou não dessa newsletter. Por isso, infelizmente, uma das piadas mais legais desse texto (o de número 13) acabou virando 12. Mas não, não preferimos Ciro.