#32:“Tudo Que Eu Sempre Sonhei”, Pullovers + Maria Mole
Um texto sobre um disco da vida, um coquetel doce e perigoso, inferninhos na Augusta e a esperança de ver São Paulo sempre se tornar São Paulo, mesmo em tempos difíceis
Eu me lembro bem da primeira vez que fui a São Paulo sozinho. Era julho de 2006, meu pai me deu uma grana de presente de aniversário e me mandou pegar o ônibus em uma missão especial: testar o caminho que eu ia fazer todo dia, a partir do fevereiro seguinte, para o colegial. (Naquela altura, eu estava acabando a oitava série e, de olho no vestibular, já estava decidido que eu ia para o Colégio Etapa, sediado na Estação Ana Rosa e com quatro provas por semana).
Na época, o glorioso 018 ia direto do quarteirão da minha casa até o metrô Vergueiro. Desci antes, na Ana Rosa, e peguei o metrô até a Consolação, rumo ao Conjunto Nacional – onde eu viria a comprar, de uma tacada só, livros de Lester Bangs, Nick Hornby e André Takeda, além do CD de Construção, do Chico Buarque. Sair do subterrâneo na Paulista me deixou desorientado: até hoje lembro de me encolher frente aos prédios e ficar meio assustado. Isso para não falar na fama da rua Augusta, ali na esquina – cujos bares e inferninhos eu viria a frequentar nos anos seguintes, sempre dizendo pros meus pais que tava vendo um “cinema na Paulista, tomando uma Coca”. Mas eu não bebia, juro.
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Esses dias, uma amiga comentou no Instagram sobre como a cidade de São Paulo está mudando – a falência da Livraria Cultura e o fato de que o Espaço Itaú de Cinema poderia ficar só de um lado da rua mudam completamente a geografia cerebral-psicológica que tenho da região. Ela dizia que, em breve, “inferninho na Augusta” não significaria muita coisa, a não ser uma memória distante. Foi algo que me botou pra pensar e me fez lembrar das muitas bebidas que meus amigos tomavam naquelas tardes e noites de iniciação alcóolica, tabagística e… afetivo-sexual, por assim dizer. Além de cerveja, claro, uma das mais populares era a Maria Mole.
Não sei até hoje o porquê da origem do nome Maria Mole. Tem quem diga que é por conta do sabor levemente doce do coquetel que mistura, em partes iguais, conhaque e vermute branco. Nos melhores estabelecimentos da cidade, a mistura era composta de marcas como Dreher e Contini, respectivamente, ou Presidente e Martini, com alguma sorte. Outros dizem que Maria Mole é porque essa junção particular é capaz de deixar qualquer um meio molenga, para dizer o mínimo. Sei mesmo que a Maria Mole era bastante popular nas noites de frio – e o copo vira-e-mexe era dividido, mais no espírito do “golinho pra esquentar’, menos no do “cachimbo da paz”.
Também comecei a lembrar do Nick Hornby, claro: além de Alta Fidelidade, ele cometeu um texto sobre o Teenage Fanclub que é um padrão ouro de amor por uma banda para mim. O Teenage Fanclub é daquelas bandas que merecem a frase “se o mundo fosse justo, eles tocariam no rádio de cinco em cinco minutos”, que eu cunhei há alguns anos para falar justamente de bandas “injustiçadas”. Ela se enquadra em tantos grupos que nem sei dizer. Mas acho que tem uma banda que, no meu coração, merece essa frase ainda mais que o glorioso Tineijão.
É o Pullovers, dono do disco da semana aqui na newsletter. Talvez seja porque eu me identifique demais com a imagem que eu fiz da banda: uma mistura de guitarras indie à la Pavement com sonoridades brasileiras (em especial, o lirismo beatlesco do Lô Borges nas músicas do Clube da Esquina) e letras de uma doçura e uma sinceridade absurda, nascidas no coração de São Paulo. Não à toa, tocar Pullovers foi uma das minhas obrigações morais na estreia do Programa de Indie – que eu apresento na rádio Eldorado com o Igor Muller.
A primeira vez que eu ouvi o Pullovers deve ter sido também em 2006, mais ou menos na época daquele ônibus “018 - Metrô Vergueiro/Príncipe de Gales”, da Viação Padre Eustáquio. Foi quando apareceram no saudoso TramaVirtual as primeiras músicas deles em português — as gêmeas “O amor verdadeiro não tem vista para o mar” e “Todas as canções são de amor”, a gracinha “1932 (C.P.)” e o hino “Futebol de óculos”. Na mesma época, eu também coloquei no meu vocabulário algumas expressões novas, como “amor” ou “pegar o metrô todo dia”.
Aquele quarteto fantástico de 2006 contém quase tudo que faz o Pullovers ser uma banda especial. São os ótimos refrões, sim, mas também a relação com o longo namoro entre a cultura pop e a crença de que um dia, o amor vai chegar. (“Como é que eu pude acreditar em Hollywood, no que diz letra de canção popular?”, choraminga Venâncio em “Todas as canções…”, uma filha direta da escola Rob Fleming de psicologia pop).
É também o sangue de São Paulo correndo pelas veias, seja na máxima “O amor verdadeiro não tem vista para o mar” – um falso samba que poderia ter saído do Fellini, não fosse romântico demais – ou em “1932”, uma canção em que a grande dificuldade do protagonista é assumir que está apaixonado, contraditoriamente, por uma garota carioca.
Para um garoto de 14 anos que rascunhava os passos para ir estudar em São Paulo, era um prato cheio. Para o aluno que só tirava dez em história, mais ainda — afinal, “1932” era uma referência boa demais para ser deixada para trás. E “Futebol de Óculos” ainda se conectava com outra força que me movia na época, o futebol, falando a todos os craques tímidos que usam óculos na alma. (O ludopédio também aparece em “O amor verdadeiro…”, numa indireta rápida: “vestiu a amarela e foi comemorar”, verso que hoje é uma lembrança boa dos tempos em que a camisa da seleção tinha outros significados).
(Antes dessas canções, a banda liderada pelo vocalista e compositor Luiz Venâncio cantava em inglês, como se a rua Augusta fosse uma extensão de Manchester ou do Brooklyn. Cometeu nesse caminho alguns petardos inesquecíveis — com o tempo e a demora da banda para lançar novas canções depois das quatro que citei acima, acabei descobrindo Riding Lessons, de 2002. É um disco maluquinho com três ou quatro músicas que dariam inveja a Rivers Cuomo e poderiam muito bem estar em qualquer pistinha no começo dos anos 2000. (Ouça, pelo amor de Deus, “Kisses Sounds”, “Modern Times Gal” e a incrível “Too Fat For You”.). Lembro bem também de uma entrevista que Venâncio deu ao Scream & Yell na época. “Pavement não é ruim, só admito que é tremendamente chato”, afirmou ele. “O sujeito tem que ser esquisito pra gostar tanto daquele vocal torto, aquelas viagens um pouco longas e toscas demais nas partes instrumentais.”. Meu clube?)
Entre 2006 e 2009, eu peguei muitos ônibus, tirei muitos 10, como um bom nerd, e tive alguns corações partidos. Foram três longas temporadas até que o Pullovers aparecesse de fato com um novo disco. E ele era tudo que eu sempre sonhei — literalmente. Tudo Que eu Sempre Sonhei, o disco, abria-se com a faixa título, uma canção que não seria desapropriadamente descrita como a “Tropicália” ou a “Construção” dos anos 2000 — ainda que, como a própria canção diz, “pra que imitar Chico Buarque?”. (Os versos anteriores também falam em “pra quê reclamar se tem conhaque”, o que considerei uma licença mais-que-poética para parear o disco com esta Maria Mole).
Catorze anos depois (argh!), ainda acho que a letra é um retrato perfeito do jovem-classe-média-paulistano do século XXI. Está tudo lá: da desilusão millennial de que bastava apenas trabalhar para que a vida desse certo à insatisfação com as estruturas tradicionais da sociedade (“Tem beijinho e também trepada/ e a consciência pesada a cada nova vontadinha que surgir”). Continuavam presentes as referências ao futebol (com o Corinthians) e à cultura pop (esta é das poucas canções que conseguem citar a Turma da Mônica sem soar banais). Isso para não falar na relação com São Paulo — nesse caso representada por um curioso vídeo da banda na série Música de Bolso. Ali, o Pullovers aparece tocando debaixo do Minhocão, com Luiz escondendo o microfone por trás de uma garrafa de Skol, entre mendigos, carros e transeuntes.
Mas o disco ia além: depois das versões definitivas de “O Amor Verdadeiro…” e “1932”, havia “Marinês”, outra das canções que justificava porque todo mundo achava que o Pullovers era, depois do IRA!, a melhor tradução do rock paulista, mêo. Não é à toa: é uma canção sobre gente que trabalha demais, se desdobra, pega metrô lotado e, apesar disso, não perde a pose de “encantadora flor da zona leste”. Tinha também “O Que Dará o Salgueiro”, espécie de continuação depois do felizes para sempre, ainda mais felizes, de “1932”. Para não falar em “Marcelo (Eu Traí o Rock)”, prima da faixa-título, que já antecipava certo cansaço do rock enquanto forma&conteúdo. No final, o Pullovers ainda abraçava o Brasil, seja na bonita balada “Quem Me Dera Houvesse Trem” ou em “Tchau”, um quasi-baião que fechava o disco.
É até hoje um dos discos que eu mais amo dessa época – e que penetrou no meu inconsciente de maneiras curiosas. Há alguns anos, um amigo me deu uma camiseta do Pullovers que havia ficado pequena demais para ele. A estampa era baseada na capa do disco, com os óculos que se tornaram símbolo do grupo. Me assustei ao perceber que, sem querer, comprei um óculos quase igual quando tive de voltar a ter quatro-olhos, ali por 2015. Nunca vi um show do Pullovers — quando eu finalmente tinha idade pra ver shows sozinho, a banda já tinha acabado. Também nunca bebi uma Maria Mole sozinho em um boteco da Augusta, porque quando eu aprendi a beber, já tinha me afastado da maioria desses amigos boêmios. É curioso que eu tenha escolhido um drink “não tão meu” para um disco que me é tão íntimo, mas a vida tem dessas coisas.
O que sei mesmo é que a Maria Mole e o Pullovers, para mim, surgem do mesmo lugar: dessa experiência confusa e caótica que é tentar viver em São Paulo. É uma história doce e perigosa ao mesmo tempo, em que é preciso se tomar cuidado com os excessos. Mas é também apaixonante, a despeito dos altos e baixos que a vida nos traz. A Maria Mole não é um drink que eu vou beber sempre, Tudo Que Eu Sempre Sonhei não é um disco que eu escuto com tanta frequência – até para não desgastar. Mas sei que eles estão sempre lá para me abraçar.
Uma vez, encontrei com o Luiz Venâncio nos corredores da faculdade de Letras da USP — acho que ele acabava algum curso lá ou mestrado, não sei. Perguntei do Pullovers e ele, meio blasé, meio apressado, respondeu que estava com um novo projeto, O Cantor Mudo e a Sonora Vaia. O projeto chegou a lançar um EP autointitulado em 2013, e deles eu vi um show bacana no finado (duas vezes!) Studio SP, no mesmo dia em que Lou Reed morreu. Luiz entrou no palco, cantou, mas entrou mudo e saiu calado — tudo que ele disse, escreveu numa lousa, dessas de criança fingir que dá aula. Numa cruel coincidência da indústria, naquela mesma época o Pullovers fazia parte da trilha de uma novela das 7 com “O amor verdadeiro…” e “Todas as canções são de amor”, tocando uma vez por semana em rede nacional.
E esse texto acabaria com uma nota triste, uma piada besta do tipo “o amor verdadeiro por uma grande banda tem vista para qualquer lugar’, não fosse uma notícia boa: o Pullovers está de volta. Como exatamente ainda é difícil dizer, mas fato é que a banda abriu um perfil no Instagram – coisa que não existia na época do lançamento de Tudo Que Eu Sempre Sonhei, cujo encarte tem um link para o myspace do grupo. Em poucas fotos, é possível ver Luiz Venâncio e seus companheiros ensaiando. Será um show? Será um disco? (Uma das imagens tem a singela legenda “#rec”, o que traz bons ventos ao meu coração).
Em breve a gente vai ficar sabendo – e enquanto isso, se você nunca ouviu Pullovers, “vista a amarela, veja que a vida é bela e venha também comemorar”. Afinal de contas, assim como a capital alemã, São Paulo está sempre se tornando São Paulo – e mesmo em tempos difíceis e com um dos piores prefeitos da história, tem sempre alguém tentando acreditar que as coisas podem melhorar ultimamente.
A Receita
50 ml de conhaque
50 ml de vermute branco
gelo
Como uma boa bebida de boteco, fazer uma Maria Mole não é difícil: um copo americano, uma boa pedra de gelo e duas doses servidas straight up (isto é, direto no copo) são mais que suficientes. Como eu disse no texto, em qualquer bar & lanches ltda. você vai achar uma Maria Mole feita com Dreher/Presidente e Contini. Mas como aqui a gente tá tentando evitar a fadiga (e não sobrecarregar nosso fígado), dá para subir um pouco o nível do coquetel. Aqui em casa, usei Martini Bianco no lugar do Contini e Osborne (um brandy de jerez) como o conhaque. Coloquei tudo no bom e velho copo Nadir e misturei rapidamente com a bailarina – uma mistura que não me exigiu mais do que 30 segundos para ficar pronta. Saúde, mas cuidado ao repetir a dose: afinal de contas, a Maria Mole é doce e perigosa.
E vamos aos reclames da semana:
No Programa de Indie, eu e o Igor Muller nos unimos em prol das novidades da música, porque 2023 já tá bem agitado – incluindo uma versão incrível do Fontaines D.C. para “Cello Song”, do mago Nick Drake.
Lá no canal do YouTube, tem vídeos novos dos últimos shows que eu vi por aí: Evan Dando no Sesc Avenida Paulista e o combo de terraplana e Fernando Motta + eliminadorzinho no BarAlto.
Como o bom filho à casa torna, no Estadão do domingo passado eu escrevi sobre a Starlink, a internet via satélite do Elon Musk, que já começa a ser utilizada aqui no Brasil em áreas remotas e rurais.
Lá no Twitter, aproveitando a semana do consumidor, tem um fio com ofertas na Amazon de bibidinhas – lembrando que os links são comissionados e ajudam na continuidade dessa newsletter.
E pra fechar a conta, na Cajuína, tem um papo incrível com a Daniele Botaro, PHD em Biofísica e head de diversidade e inclusão da Oracle, falando sobre ciência, viés, dados e diversidade em grandes empresas, fugindo (juro!) dos clichês.
Aos assinantes dessa newsletter, um aviso antes de partir: na próxima terça, parto para uma temporada de férias & trabalho digital en Latinoamérica. Primeiro passo uns dias no Uruguai, depois vou curtir Buenos Aires com a namorada.
A ideia é desacelerar um pouco e reorganizar os pensamentos, comer muita carne, doce de leite e tomar bastante coquetel. Comprar uns discos e ver uns shows tão nos planos também – já tem Fito Paez marcado no estádio do Vélez Sarsfield e um festival com El Mató e Conociendo Rusia em plena Sexta-Feira da Paixão.
Digo tudo isso porque essa newsletter entrará em um breve recesso: não prometo colunas novas nas próximas semanas, a menos que a inspiração surja. Talvez eu apareça aqui com uma lista de bares ou dicas para comprar vinil, mas senão, a gente só se vê no fim de abril. Prometo que voltarei com a carga toda.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS1: Este texto foi, obviamente, escrito ao som de Tudo O Que Eu Sempre Sonhei, o primeiro disco cheio em português do Pullovers. Só que ele não foi escrito integralmente nessa semana – uma parte razoável dele pertence a outro texto, “Todas as canções são de amor”, que escrevi em homenagem à banda paulistana em 2019. O que não importa muito: ouvi o disco de novo essa semana e achei que tudo batia igual no coração. Certas coisas nunca mudam.
PS2: E repito aqui que aceito dicas de rolês, restaurantes e segredos bem guardados em Montevidéu e Buenos Aires, viu?
um achado em buenos aires para mim é dentro do mercado de san telmo, o bar de tapas De Lucía https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g312741-d13417514-Reviews-De_Lucia_Tapas-Buenos_Aires_Capital_Federal_District.html
o "vermú" feito por eles com uma receita secreta que já tentamos pegar várias vezes mas em troca recebíamos sempre apenas um chorinho rsrs. o precinho super em conta e as tapas e copão de vinho mais gostoso do bairro, no mínimo hehe
volta em breve!! bjs
Nunca tinha ouvido falar dessa banda, e gostei bastante. Obrigado pela recomendação