#38: "Ao Vivo em Tatuí", Pena Branca & Xavantinho e Renato Teixeira + Quentão
É que a viola fala alto no meu peito, mano: um drink junino e um disco caipira em pleno dia de São Pedro, tá bom?
Para quem gosta tanto de falar sobre o Brasil, fala sério: você achou mesmo que eu ia perder a chance de fazer uma newsletter falando de quentão, com música caipira? Pois bem, aqui estamos – ainda mais aproveitando que a coincidência que hoje é dia de São Pedro. E se vou gastar um pouco de tempo até chegar no quentão, que fiz em casa num dia de calor paulistano neste mês de junho, aproveito o primeiro parágrafo para deixar claro que este quentão aqui é de cachaça. Em São Paulo, vinho quente é com vinho mesmo, embora leve alguns ingredientes adicionais e… não seja só a bebida de Baco a altas temperaturas, como um amigo tentou fazer certa vez em uma reunião juvenil. Dito isso, dado que no Sul quentão é feito com vinho, me sinto à vontade para falar um pouco mais sobre esse disco, Ao Vivo Em Tatuí, que considero particularmente uma pérola perdida da música brasileira.
Descobri esse disco quando tinha uns 12, 13 anos, e meu pai fez uma compra de baciada no site da histórica gravadora Kuarup Discos, dedicada ao melhor da música brasileira. Em algum canto, dá pra dizer que a Kuarup é uma espécie de herdeira espiritual da Discos Marcus Pereira – o selo que, entre outras coisas, gravou os primeiros discos de gente como Cartola e Paulo Vanzolini. Mas falando daquela compra, sei que tinha o Feito em Casa, do Antonio Adolfo, e este disco aqui, que pode passar como mera coleção de canções gravadas a esmo em um show no interior paulista. Não é: Ao Vivo em Tatuí talvez seja a melhor forma de apresentar o cancioneiro caipira a um ouvinte desavisado, pelas mãos e vozes de três homens incríveis.
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
De um lado, tem um dos melhores compositores “contemporâneos” de música caipira, o santista (!) Renato Teixeira – e ai de quem nunca cantou que é “caipira, pirapora” junto com Elis Regina, na eterna “Romaria”. Do outro, uma dupla de irmãos que cresceu em Uberlândia e canta junta desde criança, mas só despontou nacionalmente no começo dos anos 1980: Pena Branca e Xavantinho. Mais do que apenas um encontro, a reunião entre esses três homens é uma oportunidade de ouvir não só as grandes canções de Renato (além de “Romaria”, tem “Amora”, “Amanheceu, Peguei a Viola”, “Tocando em Frente”, “O Violeiro Toca”....), mas também as excelentes vozes dos irmãos fazendo conexões entre o folclore (“Cuitelinho”), o Nordeste (“Vaca Estrela e Boi Fubá”, de Patativa do Assaré, ou “Canto do Povo de um Lugar”, de Caetano), Minas (em “Peixinhos do Mar” ou “Cio da Terra”, parceria de Milton com Chico) e muito mais.
Gravado em três noites de setembro de 1992, “no começo da primavera”, o disco se divide em três “partes”: primeiro, Renato Teixeira canta algumas de suas canções, e depois abre espaço para Pena Branca e Xavantinho. Ao final, os três se juntam, sempre ao som de violões, viola caipira e, às vezes, um auxílio luxuoso que pode incluir baixo, percussão, gaita e violino. É um disco muito simples, em termos de estrutura, como é uma roda de moda de viola em muitos interiores do Brasil. Mas o que passa por ele é a beleza desse modo de vida, que passa pela relação do homem com a natureza, mas também com seus amores, seus companheiros de luta e trabalho, e, por quê não, com a própria vida – já falei aqui que eu queria demais ver Roberto Carlos cantando “Tocando em Frente”, quase no mesmo espírito de Johnny Cash cantando “Hurt”.
Devaneios à parte, sei que é um disco que me dá sempre um calor no coração – e sei que isso pode parecer uma grande besteira. Afinal de contas, eu sou bicho da cidade e venho talvez do canto mais “poluído” de São Paulo, aquele pedaço de terra conhecido por três letras que muita gente chamou de “Manchester brasileira”. Também não quero entrar num discurso meio ludita, meio árcade, de fuga da cidade e valorização do campo. Mas há algo que me toca nessas canções, feitas da mesma forma que canções são feitas há séculos, que me deixa comovido como o diabo. Como diria outro caipirão que eu gosto demais, Rolando Boldrin, talvez seja só que “a viola fala alto no meu peito, mano/e toda moda é um remédio pra esses desengano”. É como se fosse algo que estivesse impresso, impregnado dentro de mim – e talvez a isso se dê o nome de tradição, eu acho.
Da mesma forma que confesso que este quentão que fiz para acompanhar o Ao Vivo em Tatuí seja uma das primeiras vezes que tomo quentão na vida. Não sou exatamente o maior fã de quermesses – ironia do destino, dado que meus pais se beijaram pela primeira vez numa festa dessas, lá se vão 45 anos. Talvez seja o trauma de ter sido uma criança dos anos 1990 e ouvir mais sertanejo industrializado que música caipira nas festinhas, ou achar meio ridículo quererem pintar um dente meu com lápis preto. Ou o fato de que quermesse é sempre no frio e eu odeio sair de casa no frio, ainda mais se for pra escutar música ruim em volumes altos demais. Não sei, o que sei mesmo é que, ao tomar o primeiro gole do quentão deste texto, tive a estranha sensação de estar em casa.
Alguém poderia apontar que não poderia ser de outro jeito: afinal de contas, quentão é nada menos que um monte de frutas e especiarias, unidas a açúcar, água e cachaça. É um chá embebido em álcool, quente, algo que não poderia dar em outra coisa que não conforto – da mesma forma que o Hot Toddy também esquenta anglo-saxões há séculos e séculos. Pode ser. Ou também pode ser o fato de que o cheiro de quentão é um daqueles aromas que a gente cresce sentindo, pelo menos se você mora no eixo entre o norte do Paraná, São Paulo, Minas, talvez Goiás, um pedacinho do Mato Grosso do Sul, não sei.
Sei que tudo isso junto me faz ficar feliz, como ao vestir um casaco de lã tricotado pela mãe num dia frio. Às vezes, é tudo que a gente precisa – e convido vocês, neste final de junho, a vestir justamente esse casaco botando o Ao Vivo em Tatuí pra tocar e beber um gole de quentão sem nem precisar sair de casa. Vamos à receita?
A Receita
1 1/2 xícara (chá) de cachaça
1 xícara (chá) de água
3/4 xícara (chá) de açúcar
1/2 colher (sopa) de gengibre ralado (um pedaço de cerca de 3 cm x 3 cm)
casca de 1/2 laranja
casca de 1/2 limão
1 ramas de canela
5 cravos-da-índia
meia maçã, fatiada finamente
Talvez esta seja a lista de ingredientes mais longa que eu já digitei nesta newsletter, mas prometo que vai valer a pena. É uma livre inspiração na receita do Panelinha da Rita Lobo, considerando os pequenos improvisos que fiz aqui em casa. Pra começar, pegue açúcar, gengibre, canela e o cravo e coloque numa panela e fogo de baixo pra médio. Mexa com uma colher de pau pra formar o caramelo, sem deixar queimar. Quando o caramelo se formar, tire a panela do fogo. Aí, adicione as cascas dos cítricos e também coloque a água aos poucos – a ideia é que ela vá transformando o caramelo, aos poucos, em um líquido. Se o caramelo, por outro lado, virar balinha, não tem problema: ele vai dissolver com o tempo.
Depois de adicionar a água, você pode colocar a cachaça e deixar tudo cozinhando em fogo baixo, por uns 25-30 minutos. Feito isso, é preciso colocar as fatias da maçã e deixar mais uns 5-10 minutos cozinhando, a fim de que a bebida também pegue o gosto da maçã. Sirva ainda quente, numa caneca bacana aí na sua casa. (Aqui, coloquei num copo de uísque para fins de ilustração). A receita acima vai render de três a quatro copos, o que é suficiente pra qualquer caipira-em-potencial soltar as mágoas num modão. Se você for beber em companhia, pode dobrar ou triplicar a dose. Então, pronto: tá aí seu jeito de fazer quentão em casa, sem precisar ficar apertado na quermesse do seu bairro. Saúde!
Reclames da Semana
Jogo rápido: se na semana passada a gente lembrou de Strokes no Programa de Indie, agora foi a vez de voltar lá para 2003 e conferir vários discos crocantes dessa temporada que já faz duas décadas… ai ai, meus cabelos brancos.
E por falar em festa junina, fica o aviso que amanhã tem mais Festa Junindie no Programa de Indie. Pra você não perder nenhuma novidade, cola lá no Instagram da #firma.
Fica o aviso: se você não chorar ouvindo “Cuitelinho”, talvez seja bom marcar consulta com um cardiologista. Seu coração pode não estar funcionando direito.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi obviamente escrito ao som de Ao Vivo em Tatuí, mas também foi pensado há bastante tempo com outro disco caipira que eu amo de paixão: o Ao Vivo de Almir Sater, que também já foi motivo de uma coluna boa por aqui. Vai lá lembrar.
PS2: Sei que talvez esse texto tenha sido mais curto do que o normal. É culpa de uma semana corrida, mas também dos preparativos para a próxima semana, quando esta newsletter completa oficialmente um ano. Vai ser bonito. Vocês trazem os brigadeiros que eu trago a bebida, pode ser?
PS3: Se você ficar bravo comigo porque entreguei um drink junino só no dia 29, respira: pensa que não tem nada de muito errado não em fazer uma festa julhina. Inclusive vou lá na quermesse de Nossa Senhora Aparecida, em São Caetano, nesse fim de semana. Vai que eu dou sorte no bingo…
PS4: Por último, vale lembrar que atualmente Renato Teixeira é sogro de Evan Dando, dos Lemonheads, o que me lembra o programa que eu e o Igor Muller gravamos com ele no começo do ano. Vai lá ouvir, vai.