#35: “A Vida é uma Granada”, Dingo + Curaçau Spritz
Um disco bonito e um drink entre o doce e o azedo pra falar de luto, saudade, família e de como 2022 foi um ano difícil.
Na última terça-feira, fez seis meses que minha tia Laura morreu. Sei que parece meio brutal começar um texto assim, mas a verdade é que esta é a primeira vez que eu consigo escrever isso publicamente. De muitas maneiras, essa foi uma morte difícil de encarar – e acho que colocar algumas ideias no papel vai me ajudar a entender melhor essa loucura. Sei também que pode parecer leviano usar um disco e um drink de maneira qualquer para falar dela, mas escolhi como companheiras nessa jornada duas peças bem significativas: A Vida é Uma Granada, um dos meus discos favoritos de 2022, e o Curaçau Spritz, uma variação mais ou menos reforçada do último drink que a gente tomou junto. Tia Laura não era exatamente uma pessoa de drinks, ela era mais do time do vinho (“toma vinho para esquentar os pezinhos” era uma frase clássica dela), mas acho que a lembrança se justifica.
Tia Laura foi embora rápido demais. Não só pela idade – ela morreu alguns meses antes de fazer 60 anos –, mas também pela velocidade com que tudo aconteceu. Há pouco menos de um ano, eu estava na sua casa em Bragança, trocando figurinhas sobre viagens pela Europa. Na época, eu ia para Portugal e pra Espanha, enquanto ela se preparava para ir para a Alemanha pela primeira vez, com meus primos e o tio Edson, seu marido. Na última semana da minha viagem, ela foi para o hospital porque não estava conseguindo engolir. O que à primeira vista parecia só um problema do sistema digestivo era bem mais sério: um tumor no esôfago. A essa descoberta se seguiu outra, poucos dias depois, quando eu mal havia acabado de chegar ao Brasil: outro tumor, desta vez no cerebelo. Dizer que foi uma porrada na cara seria pouco.
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Ao mesmo tempo, durante alguns meses, confesso que não me passou pela cabeça a possibilidade dela morrer. Ela estava em um dos melhores hospitais do país, com recursos à disposição, sendo acompanhada de perto por um corpo grande de especialistas. Além disso, pelas infelicidades da vida, ela e meu tio eram mais que escolados em tratamentos complicados – desde bebê, meu primo convive com uma doença rara chamada esclerose tuberosa, o que lhe fez passar muito tempo em tratamentos e salas de hospitais. Desde o primeiro momento, eu achei que ia dar tudo certo. Não deu: após idas e vindas do hospital, pequenos processos lentos de recuperação, o câncer tomou conta do corpo dela – àqueles primeiros dois tumores, um deles removido numa longa cirurgia de doze horas, se somaram outros, no pulmão, no esôfago e em outros lugares que eu nem dei conta de contar ou saber.
Fiquei sabendo que o quadro era irreversível numa quarta-feira de manhã, no final de novembro – na noite anterior, eu e Igor Muller recebemos os rapazes da Dingo na rádio Eldorado para uma sessão especial com as novas músicas de A Vida é uma Granada. Dois dias depois, fui até o hospital com a minha irmã para o que hoje sei que foi minha última conversa com minha tia, ainda que ela já não estivesse falando 100%. Na mesma noite, fomos eu e Beatriz ver o show de lançamento do disco dos gaúchos – e foi difícil não segurar o choro ao ouvir frases como “a vida é uma granada/e ainda não vimos nada” ou “onde era teto agora é chão/o que era certo agora é ilusão”, da faixa-título, ou “no final, só o amor resistirá/quando o mar agitar nossas vidas”, de “Parabólicas”.
Nos últimos tempos, eu tenho pensado muito sobre “legado”, naquilo que a gente pode deixar pro mundo. Pode parecer papo de hippie ou de startupeiro, mas a verdade é que pensar que um ônibus pode me atropelar a qualquer hora me fez ter consciência de fazer mais o que eu acredito e menos “só pagar as contas”. Deixar algo pro mundo, que vá além da minha própria existência, me parece um bom objetivo de vida – e vá lá, eu tenho uma meia dúzia de textos e um livro sobre um programa infantil que muita gente gosta como itens checados nessa lista. Mas essa frase, “só o amor resistirá”, talvez explique o maior legado que alguém pode deixar. É o que eu lembro da minha tia com mais carinho – e olha que foi ela quem desenhou a casa dos meus pais, que eu particularmente acho não só um lugar muito gostoso como também bonito pra caramba. Mas eu sei que sou suspeito, como também sei que essa casa pode não durar pra sempre.
O que eu tenho comigo da minha tia, porém, vai durar enquanto eu durar. Única irmã do meu pai, na minha adolescência ela foi “a tia legal” que fazia meus pais parecerem menos rústicos ou chatos (ou simplesmente, menos meus pais, cada qual com sua função no mundo). Enquanto eu morava no ABC, ela mostrava que morar em São Paulo não só era um plano possível, como um negócio legal pra caramba. (E, na última semana, chorei bonito ao lembrar dela e pensar no caminho que eu percorri enquanto a Lupe de Lupe tocava “SP (Pais Solteiros)” num show deles).
Foi tia Laura quem me apresentou uma porção de coisas incríveis: de comida japonesa às tapas espanholas, passando pela noção de que viajar pelo mundo é algo mais fácil do que parece. Se eu não sinto mais medo de botar uma mochila nas costas, reservar uma passagem, um hotel e embarcar, foi porque minha tia fez isso parecer fácil já nos anos 2000, quando fazer isso sem internet era uma tarefa difícil pra caramba. Toda vez que eu viajo, de certa forma, eu presto um tributo a ela – e foi doído e gostoso, ao mesmo tempo, encontrar pequenas coisas que ela me mostrou enquanto eu andava pela Argentina, como um conjunto de lápis de cor bem rústicos que uma vez ela me trouxe de Tigre.
Minha tia também era a guardiã de muitas histórias da família – quando a memória do meu pai falhava, era ela quem lembrava das coisas importantes. Mais: ao me contar a versão dela das histórias, ela me fazia entender muito melhor quem era esse sujeito que eu chamei a vida toda de Ludy e de pai. Ela também era a pessoa que melhor fazia meu pai entender que podia fazer uma besteira aqui ou ali e ajudá-lo a encontrar o caminho correto – e ver a relação dos dois ao longo de muitos anos é uma grande inspiração para a maneira com que eu mesmo lido com a minha irmã. (Como eu gosto de dizer, ter uma irmã foi das melhores coisas que meus pais fizeram por mim: eles colocaram alguém no mundo que me ajuda a resolver o enigma que é ser filho, enquanto me deram a chance de também ajudar alguém com o mesmo problema).
Nem sempre minha relação com minha tia foi fácil. Durante muito tempo, foi ela quem mais pegou no meu pé a respeito do meu peso – de um jeito que me fazia querer comer mais e cuidar menos do corpo, de raiva mesmo, numa questão que até hoje eu não encarei bem. A distância também foi outro empecilho: pouco depois de eu entrar na faculdade, ela mudou de São Paulo para o interior, e encaixar a rotina de jornalista com visitas de família aos poucos me fez vê-la menos e menos. Nos últimos anos, como muita gente, ela também deu uma guinada à direita. Nunca vou esquecer de um jantar de família em que briguei com ela (e com meu tio, meu pai e minha mãe) sobre o golpe contra a Dilma. Também não vou esquecer dela não acreditando que viajar para Cuba foi bom demais (e foi!).
Sei que é um clichê, mas queria poder repetir essas brigas de novo. Ou pelo menos um acerto de contas disso tudo, enquanto a gente trocava dicas de viagem à beira da piscina, tomando vinho. (Da última vez que a gente se viu enquanto estava tudo bem, a mistura foi vinho branco com uma dose curtinha de Curaçau, que eu adaptei para a receita de hoje).
Depois daquela visita no dia do show da Dingo, ainda houve outra, que me dói só de lembrar. Por uma coincidência infeliz da vida, foi também na mesma época que o Pelé foi internado no mesmo hospital. Sair daquele lugar em meio a carros de reportagem foi um troço esquisito demais, assim como foi viver a morte do Pelé, da mesma doença maldita, no final de um cruzeiro que fizemos em família no fim do ano para dar conta do luto, de alguma forma.
Luto, aliás, tem sido um negócio com o qual eu tenho aprendido a lidar de uma maneira muito doida. Nas primeiras semanas, confesso que fiquei mais preocupado em cuidar de quem estava ao meu redor do que propriamente chorar por conta própria. E essa ficha demorou a cair – só começou a rodar mesmo em Buenos Aires, em tardes caminhando e pensando justamente sobre como tia Laura foi importante pra que eu quisesse viajar por aí.
Enquanto eu escrevo, tudo ainda dói demais, de um jeito que às vezes não dá para controlar. Se a vida é mesmo uma granada prestes a explodir, eu posso dizer que sei como se sente um estilhaço pronto para um abraço. Escrever talvez seja uma forma de fazer a dor passar, ou pelo menos de entender de onde ela vem. Espero que um dia eu consiga ouvir A Vida É Uma Granada sem chorar, sem me arrepiar em uma meia dúzia de músicas – embora talvez isso não vá acontecer porque é um disco muito, muito bonito, com as vozes lindas dos quatro rapazes de Porto Alegre e uma porção de melodias incríveis.
Espero que um dia a dor passe e vire só uma saudade bonita, em que o azedo da perda se combine com o dulçura desse carinho, desse amor, desse afeto todo – como o último carinho que eu fiz nos pés da minha tia, ao tentar retribuir o que ela me deu quando a vi viva pela última vez naquele dia no hospital. (Ainda vivíamos dias de preocupação por conta da pandemia, e um abraço e um beijo sem máscara poderiam ser arriscados demais). E espero que a vida possa voltar a ser bonita como o azul desse drink, como é também azul o mar onde as cinzas dela estão, dando “tchibum” com as ondas do Guarujá, onde a gente se divertiu tanto. E se às vezes parece tão difícil seguir em frente depois de uma perda tão grande, é em outra frase da Dingo que eu busco forças: “todo fim também é um recomeço”.
A Receita
30 ml de Licor Curaçau Blue
30 ml de suco de limão siciliano
60 ml de espumante/vinho frisante
120 ml de água com gás
gelo
rodela de limão siciliano para decorar
Sei que falar de bebida e luto no mesmo texto pode ser uma parada meio problemática, ainda mais quando um parece servir pra compensar o outro. Juro que está tudo bem. Também não sei bem a receita pra fazer esses desejos aí de cima se concretizarem, muito menos pra arranjar uma tia tão legal.
Mas se você quer a receita do drink da semana, vamos lá: para começar, bata o suco de meio limão e o curaçau na coqueteleira com gelo. (Aqui em casa, eu uso o Curaçau Blue da Stock, que tem bom custo-benefício. Se você não quiser encarar o corante ou não tiver esse licor de laranja doidinho aí, vai de triple sec mesmo). Depois, basta servir a mistura num copo com gelo e adicionar o espumante/frisante (aqui eu usei aquele Lambrusco barato que compro lá em São Caetano) e a água com gás, tal como num Aperolzinho™.
Aqui em casa, servi tudo uma tacinha de vinho e coloquei uma rodela do limão siciliano pra decorar. O resultado é uma bebida docinha e azedinha ao mesmo tempo, perfeita pra tomar na borda da piscina num dia de verão – que é o tipo de ambiente que eu tenho ótimas memórias da minha tia. (Foi num desses dias, na casa dela da praia, que eu inventei uma iguaria de larica maravilhosa: pão, manteiga e batata palha. Saudades).
Reclames da semana
No Programa de Indie, aproveitamos a aparente calmaria nas últimas semanas para seguir atualizando nossa agendinha de novidades da música, naquilo que eu e o Igor Muller chamamos de programa “normal”, mas que de normal não tem quase nada…
No Scream & Yell, tem um papo grande e muito bacana que eu bati com o Alexandre Kumpinski, que lançou no finzinho do ano passado o bonito disco Cartilagem. Ele também é o responsável por um dos meus discos favoritos da última década: Antes Que Tu Conte Outra, da Apanhador Só – que fez 10 anos esses dias e é uma das grandes trilhas do que foi Junho de 2013. No papo, falamos disso, de cancelamento, de eleições, da sofisticação do funk, do legado da Apanhador Só e muitas outras coisas mais. Pra ler com calma.
Pra aliviar o peito, mais uma da Dingo: “não fica tudo bem/nem tudo vai tão mal/que tempo a gente tem/nem sempre é o final”.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Esse texto foi escrito ao som de A Vida é Uma Granada, da Dingo. Eu sei que falei pouco do disco, então vamos lá: é um dos melhores discos feitos aqui no Brasil sobre a pandemia, com os vocais lindões do Rodrigo Fischmann e uma banda muito, muito consciente de que tem grandes canções na mão, trafegando entre o folk, o pop e o soul. “A Vida É Uma Granada” é uma porrada, mas o disco tá cheio de ótimas canções – da balançada “Doce Delírio”, com saborzinho Rita Lee & Tutti Frutti, até a otimista “Parabólicas”, passando pela beleza triste de “Tropeço” e de “Pra Aliviar o Peito”. Vai lá ouvir.
PS2: Também deixo aqui pra vocês o papo que eu e Igor Muller batemos com o pessoal da Dingo, que eu citei no meio do texto. De quebra, tem eles tocando nos estúdios da Eldorado, com direito a usar o piano da rádio – que, diz a lenda, foi o mesmo usado na gravação de “Ovelha Negra”, da Rita Lee, outra gigante que também morreu por conta de um câncer. E preciso fazer o desabafo que não aguento mais gente morrendo por conta dessa doença maldita.
PS3: Ainda sobre a Dingo, preciso dizer que tem também uns vídeos lá no canal com eles, tanto no já citado show do Cine Joia quanto um mais recente, na Casa Rockambole – um dos meus lugares de shows favoritos em São Paulo hoje em dia. Aliás, sempre tem novidades rolando no canal, então vai lá e se inscreve. E por falar em Dingo também, aviso que em breve tem um papo gigante com o Felipe Kautz, baixista da banda, pra sair no Scream & Yell. #spoiler
Minha família é do interior do Ceará e tem um costume chamado “beber o morto”, que apesar do nome ruim é na verdade brindar (td mundo junto pós velório) de tristeza pela partida e tb de alegria pelo que se viveu juntos. Senti sua news assim para sua tia hj! ❤️