#27: “Caymmi e Seu Violão”, Dorival Caymmi + Gabriela no Telhado
"Cerca o peixe, bate o remo, puxa corda e colhe a rede; canoeiro, puxa a rede do mar"
“O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito”. Eu sei, você sabe, todo mundo sabe que essa frase é de Dorival Caymmi. Mas olhe de novo para ela: não parece um daqueles ditos populares que a gente repete desde tempos imemoriais? Ou que tal “é doce morrer no mar”? Ou “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”? Quase 110 anos depois de ter nascido em Salvador, na Bahia, Dorival Caymmi parece ter conquistado aquilo que sempre almejou. “Meu sonho é chegar a essa perfeição de ser o autor de uma ‘ciranda, cirandinha’, uma coisa que se perca no meio do povo”, disse ele ao jornalista Tárik de Souza, da Veja, em uma entrevista de 1972. Para mim, ouvir Caymmi é como tomar um bom banho de mar: é mergulhar em algo tão grande que nem sei bem explicar. E nesse dia doooooois de fevereiro, dia de festa no mar, me pareceu de boa ideia homenagear esse gigante compositor.
Existe uma coisa engraçada na maneira como ouço Caymmi: para mim, ele sempre esteve lá. Quando eu era pequenino de pé no chão, muitos dos meus sábados à noite foram momentos de ouvir vinis antigos com meu pai – mais especificamente, a coleção Grandes Compositores da Abril Cultural. Uma das histórias que mais me colocava medo quando eu era criança era a “História de Pescadores”, uma suíte de 9 minutos em que Caymmi e o Quarteto em Cy narram vida, trabalho, tragédia e paixão de um grupo de pescadores (e o sofrimento de suas companheiras). O mais curioso é que não lembro bem quando ouvi essa história pela primeira vez, da mesma forma que não lembro quando de quando vi o mar pela primeira vez.
Antes de avançar sobre Caymmi, porém, me deixe explicar rapidamente o drink da semana: Gabriela no Telhado é um highball de cachaça Gabriela (com cravo e canela) com água com gás, em um trocadilho bem pouco sofisticado. A escolha pela base foi uma homenagem à Bahia, à obra de Jorge Amado e também uma referência a outra das canções de Caymmi que parecem ter sido impressas na alma brasileira – “Modinha Para Gabriela”, aquela que diz que “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim, Gabriela”. Já o complemento é um trocadilho entre o highball (um copo alto, em uma tradução literal) e aquela clássica imagem de Sônia Braga no telhado. Eu juro que vai fazer sentido.
Apesar das muitas citações a Gabriela, o disco que escolhi para representar Caymmi está longe da energia sensual da heroína de Jorge Amado. Pelo contrário: gravado em 1959, com produção de Aloysio de Oliveira, Caymmi e Seu Violão é um disco no qual aparecem apenas o compositor baiano, sua voz poderosa, assovios e seu violão, em um conjunto de canções que guardam como tema principal o mar. Aqui, as águas podem ser traiçoeiras (“O Mar”) ou doces (“É Doce Morrer no Mar”, curiosamente uma parceria do escritor de Capitães de Areia com Caymmi), servindo tanto como local de trabalho em árduas jornadas (“Canoeiro”) como um lugar de mística atração (“Quem Vem Pra Beira do Mar”) e devoção (“Dois de Fevereiro”).
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Quando gravou Caymmi e seu Violão, o baiano Dorival já contava 45 anos de vida vivida e duas décadas morando no Rio de Janeiro. Já era um dos grandes compositores da música brasileira, tendo feito sucesso cantando suas próprias criações e também cedendo-as para nomes como Carmen Miranda, Lúcio Alves e Dick Farney. Cantou o mar, mas também a noite carioca (“Sábado em Copacabana”), fez sambas-canção dignos da dor-de-cotovelo dos anos 1950 (“Marina”) e, lógico, deliciosos sambas com mais (“A Vizinha do Lado”) ou menos malícia (“Maracangalha”). No entanto, a despeito de sua posição de destaque, Caymmi nunca foi exatamente classificável – e a resposta pode estar justamente em algo que muitos imaginariam ser um defeito: seu violão.
Quem ouve Caymmi e Seu Violão pode estranhar, mas a verdade é que Caymmi estudou muito pouco do instrumento, formalmente falando: “exatamente o mínimo”, ele assumiria na mesma entrevista para Tárik de Souza em 1972. O mínimo, no caso de Caymmi, correspondia a um método de livro popular na época, do violonista Canhoto, além de algumas “posições” (acordes) ensinadas por um tio. No entanto, instintivamente, o baiano explorou como poucos o instrumento: não satisfeito com o que tinha aprendido, ele modificava a posição dos dedos de maneira pouco usual, trabalhando com esquemas incomuns para a canção brasileira da época – como intervalos de meio tom (quando o mais comum é de um tom inteiro) ou acordes compostos, com sétimas, nonas e baixos invertidos, para não falar na potência rítmica de sua mão direita, capaz de produzir batidas incríveis.
Pausa: um acorde é uma figura musical composta normalmente de três notas – e uma estrutura básica para quem toca violão. Você talvez já tenha ouvido falar que com três acordes dá para tocar quase todas as músicas da Legião Urbana, e é quase verdade. Um acorde simples, como os acordes maiores, costumam ser formados por três notas: a tônica (a nota principal), a terça e a quinta.
No caso do acorde de dó maior, conhecido pela letra C, por exemplo, essas notas são o dó, o mi e o sol, resultando em um som bem bonitinho. Ao adicionar uma sétima (o si) ou uma nona (o ré), porém, esse som se transforma em algo mais complexo. Já quanto ao baixo invertido, é simples: normalmente, a nota mais grave do acorde é a tônica, mas nesse caso, não – o que cria uma dissonância curiosa nas músicas. Há compositores que passam vidas inteiras tentando descobrir como fazer isso. Caymmi descobriu como fazê-lo de modo mais ou menos natural (e está aí uma de suas grandes belezas).
Essa estranheza já fazia algum sentido na época em que Caymmi lançou a maioria de suas melhores composições, entre os anos 1930 e 1950, mas passou a fazer ainda mais sentido quando outro baiano, este de Juazeiro, trouxe uma bossa diferente para a canção brasileira incorporando um bocado desses elementos anteriores: João Gilberto. Não é à toa que, em seus três primeiros discos, João fez questão de interpretar pelo menos uma canção de Caymmi em cada um deles. Além disso, no texto de apresentação de Chega de Saudade, Tom Jobim teceu loas e mais loas a João Gilberto, mas arrematou o texto de forma simples: “Caymmi também acha”.
Outro ponto de ligação vem de uma rota insuspeita. Na abertura de Caymmi e Seu Violão está “Canoeiro (Pescaria)”, uma canção cujo movimento da mão direita no violão tem um balanço característico. Um balanço que lembra o trabalho de quem, como diz a letra em uma precisão digna de João Cabral de Melo Neto, “cerca o peixe/bate o remo/puxa corda/colhe a rede/puxa a rede do mar”. Pois quem pinçou a mesma canção para seu terceiro disco, já após algumas travessias, mas antes chegar a uma famosa esquina? Milton Nascimento, outra força da natureza. Pode parecer apenas uma escolha fortuita, mas são exemplos que ajudam a mostrar como Caymmi pode ter sido deslocado em seu tempo, mas universal na forma como engendrou suas criações.
Ouvir Caymmi e Seu Violão, lançado bem em meio à eclosão da bossa nova, é uma forma curiosa de atestar isso. Ao usar poucos recursos – violão, voz e microfone –, Caymmi é capaz de proferir uma profusão de climas, da alegria de salvar Iemanjá ao temor de um vento forte representado em só um assobio (a intensidade de “O Vento” às vezes me dá até calafrio). É uma aula para qualquer músico que esteja interessado em como gerar o máximo de resultado com recursos econômicos (uma lição que foi seguida, só para citar um exemplo, no ótimo Micro que Maurício Pereira lançou no ano passado). Ao mesmo tempo, é um disco que passa longe de ser limitado: ele tem um poder hipnótico que me faz voltar para ele sempre que posso, da mesma forma que o último mergulho no mar nunca será suficiente.
Quando pensei em um coquetel que pudesse se conectar diretamente com essa energia de Caymmi, foi difícil recorrer a uma receita que já existia. Era preciso buscar algum sabor muito simples de ser obtido, na medida do possível, da mesma forma que os elementos que Caymmi traz em sua música parecem simples. Uma combinação rápida, que fosse doce, mas trouxesse complexidade e fosse se transformando com o tempo. E talvez por isso eu tenha recorrido à ideia de um highball com Gabriela: uma bebida que tem muita água e gosto doce como o do mar (afinal, por mais salgado que esteja, o mar é sempre doce). Uma combinação que tem um gosto hipnótico, que me faz voltar para ela a toda hora, ainda mais em um dia de calor – e devo dizer que é a primeira vez que preciso de três copos de um coquetel para conseguir completar um texto da newsletter.
Presunção demais da minha parte, porém, achar que eu sozinho seria capaz de conseguir criar um drink capaz de se equalizar a um totem da canção brasileira como Caymmi e Seu Violão. Mas ingenuamente vou tentando, e talvez sem saber eu consiga criar algo divertido da mesma forma que o baiano soube trabalhar seu violão. Presunção demais de novo, eu sei, mas é o espírito da inocência que me abraça aqui, pegando jacaré neste dois de fevereiro – e navegando mais uma vez o mesmo mar que já tantos frutos deu na canção brasileira e segue dando, de Caetano, Gil e João Gilberto, a Gal e Bethânia, passando por B. Negão e a Maglore, cada um do seu jeito, abraçando o velho Caymmi. E se a vida vem em ondas como o mar, é sempre tempo de abraçar Caymmi.
A Receita
40 ml de cachaça Gabriela
120 ml de água com gás
3 jatos de Angostura (bitter)
canela em pau para enfeitar (opcional)
Confesso que gastei algum tempo tentando descobrir a minha proporção favorita da Gabriela no Telhado. Comecei com uma proporção de 1:2 entre a cachaça e a água com gás, depois passei para 1:3 e adicionei a canela em pau. A melhor versão, porém, foi a última, com a proporção de 1:3 e um toquinho de Angostura só para dar um charme.
E aqui faço uma correção importante: na última newsletter, disse que “Angostura é angostura”. A Liliana protestou nos comentários com razão, e talvez seja hora de dar um passo atrás: Angostura é um dos mais famosos tipos de bitter, uma bebida de alto grau alcóolico e normalmente feita com ervas e essências herbais, usada mais para temperar coquetéis do que para ser bebida. Existem inúmeras receitas de bitters, e a Angostura (cuja fórmula é secreta) é talvez o mais famoso deles, concorrendo de perto com o Peychaud’s.
Na última edição, disse que “Angostura é angostura” porque a receita do New York Sour pedia mesmo esse tipo de bitter específico – e recomendava a marca. Mas isso não impede que você tente aí em casa usar outros bitters, inclusive brasileiros, que têm surgido por aí. (Aqui em casa, usei Angostura de novo porque é o que temos na adega à mão, mas aceito sugestões de boas marcas de bitters BR para comprar e experimentar – nos comentários, a Liliana já sugeriu a marca dela de bitters, o Enraízes).
Voltando à receita em si, vamos a ela: pegue um copo alto de tamanho médio (aqui usei o bom e velho Nadir Figueiredo de 300ml) e coloque gelo até o topo. Depois disso, ponha a Gabriela e a água com gás. Mexa com uma colher bailarina, acrescente a Angostura e depois mexa mais um pouquinho – ou como diria Caymmi, “requebre que eu dou um doce”. O doce, no caso, é a própria belezinha que fica esse coquetel, docinho como uma tarde em Itapuã.
Nos reclames da semana, jogo rápido, eu prometo
O Programa de Indie teve seu primeiro episódio totalmente com os pés em 2023, finalmente – trazendo novidades bacanudas como as novas de Pato Fu, Superchunk, The National e muito mais.
Em Cajuína, tem um papo bacana sobre como o RH precisa usar mais tecnologia para ficar mais estratégico, com o Frederico Lacerda, da PinPeople.
Nos últimos dias, acompanhei o Marcelo Costa em dois shows bem bacanas: Wander Wildner e o aniversário de 30 anos do Karnak. Os dois ganharam texto no Scream & Yell e têm vídeos deste que vos digita.
Nesse calor, nesse verão, eu tenho sentido saudade demais do mar. “Ô vento que ondula as águas, eu nunca tive saudade igual.” O jeito é se refrescar no copo mais próximo. Saúde!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de incontáveis audições de Caymmi e Seu Violão, mas também de Canções Praieiras, incrível disco de 1954, e também da “Suíte dos Pescadores”, na versão que está registrada no disco Vinicius e Caymmi no Zum-Zum. Além da versão incrível, vale ainda prestar atenção na bela versão de “O Dia da Criação”, onde Vinicius de Moraes disse pela primeira vez que “a vida vem em ondas como o mar”. Eu poderia ter escolhido Canções Praieiras para este texto, mas não o fiz por um singelo motivo: ele ainda não está na minha coleção. Ainda.
PS2: Alguns de vocês podem ter notado que o meu Caymmi e Seu Violão tem a capa meio acinzentada, enquanto a edição original tem o fundo rosa. Real oficial: comprei esse disco em Buenos Aires, na Miles Discos, em Palermo, numa tarde muito doida em que fui apresentado à carreira solo de Spinetta e o primeiro disco de Charly García. Devia ter comprado mais discos… mas resolveremos isso em breve!
PS3: É uma loucura pensar que esta newsletter está chegando nesta edição à sua trigésima edição. Tem sido uma honra e um privilégio estar ao lado de vocês (já somos 750 convivas!) por tanto tempo – e estou cheio de ideias para fazer coisas legais em 2023. Semana que vem, quero ver se escrevo um texto mais curto e se sobra mais tempo pra gente conversar um pouco. Afinal de contas, o bar não pode ser unilateral.
PS3: Desde uns 12, 13 anos, após uma formação católica, eu descobri que era ateu. O que faz com que eu não tenha adentrado muito na discussão sobre Iemanjá, até por ignorância. O que tenho a dizer nesse assunto, porém, é que hoje a perspectiva de uma religião animista, com várias forças se dimensionando entre si, me parece muito mais racional do que uma religião monoteísta. Mas isso é tema pra conversa de bar real, não aqui… eu acho.
PS4: Já que fevereiro também é mês de Carnaval, eu fiz um fio esperto no Twitter indicando ofertas da Amazon para você se abastecer pros bloquinhos. Fica a dica. (Lembrando que compras com links comissionados ajudam este bartender a seguir bebendo para fazer as colunas, risos).
Excelente combinação, texto e coquetel! Bote aí um link em João Gilberto, meu bom!!!
Eu amo uma pessoa que leva a sério uma bronca hheheh!
Aliás, esse Gabriela no telhado ficaria tudo com o enraizes de Café e Cacau!
vamos renovar essa sua adega aí, que tal? me manda seu insta para coordenar o envio de um presentinho. Pode? bjs!