#23: “Chega de Saudade”, João Gilberto + Chopp Brahma
"A realidade é que sem ela não há paz/Não há beleza, é só tristeza e a melancolia"
Nestes primeiros dias de 2023, eu tenho pensado muito no Brasil. (Aliás… feliz ano novo, queridos colegas de balcão! Que esse seja um ano cheio de motivos pra gente brindar por aqui). Desejos à parte, a verdade é que tenho refletido muito sobre o nosso país, seus símbolos e o que significa viver aqui. Há três razões para essa reflexão. O primeiro é que nas duas últimas semanas, por motivos específicos, pude passar algumas horas em Maceió, Salvador e Santos – e em cada uma dessas cidades, pude ver e admirar um jeito de viver a vida que é particular, diferente da particularidade que também é a vida aqui na capital paulista. O segundo motivo foi a posse de Lula e a simbólica passagem da faixa presidencial, no último dia 1º de janeiro. E o terceiro foi a morte de Edson Arantes do Nascimento.
Quem me segue nas redes sociais talvez já saiba, mas enfim. Quis o destino, por circunstâncias tristes e malucas, que eu estivesse desembarcando em Santos bem no dia seguinte à morte de Pelé. Santista nascido nos anos 1990, Pelé foi meu primeiro super-herói: direto do videocassete, eu aprendi a gostar de futebol em meio a imagens tremidas, em preto e branco ou amarelo tecnicolor. E enquanto muita gente temperava a comida ou comprava a última espumante pra celebrar o ano novo que veio aí, eu fiz um pequeno périplo por Santos no último dia 30 de dezembro, entre Museu Pelé, Bolsa do Café, Vila Belmiro e Boqueirão, prestando tributo e empreendendo uma jornada sentimental para dar fim a outra, ainda maior e muito particular.
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
↪E clicando no botão abaixo, você compartilha este texto com quem quiser!
Essa encruzilhada de fatos entre a vida pessoal e a vida brasileira, os momentos históricos que temos todos vivido nos últimos tempos, isso tudo me fez pensar em como o Brasil é bonito – e como foi difícil, ao longo dos últimos quatro-ou-seis anos, lutar para lembrar disso todos os dias. A própria ideia dessa newsletter de focar em discos brasileiros, abrindo raras exceções, é uma forma de tentar lembrar disso sempre. E desde o começo dessa jornada de escrever a Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais, um disco gigante se interpunha como um desafio: o que fazer com Chega de Saudade, a estreia de João Gilberto – que assim como o chapéu-seguido-de-gol de Pelé na final da Copa do Mundo de 1958, mudou tudo o que viria depois?
Lembrei de Chega de Saudade nessa semana ao lembrar de um sábado muito feio e nublado em São Paulo, em julho de 2019. Um sábado frio digno do suéter da capa de Chega de Saudade, em que João Gilberto partiu e nada se ouviu direto do Palácio do Planalto, uma palavra, uma condolência sequer – assim como não se ouviu na morte de Gal Costa, Aldir Blanc, Erasmo Carlos ou outros incontáveis ícones da música brasileira, apenas para ficar em uma só área da grandeza deste país. Foi um sábado em que eu percebi a saudade que a gente já sentia do Brasil.
Quando Pelé morreu, uma frase logo me veio à cabeça: “ele é o maior que você pode encontrar, viu?”. É uma expressão delicada para dizer que simplesmente nem tenho paciência pra discutir com quem quiser dizer que Pelé não é o maior jogador de futebol de todos os tempos. E essa conexão entre Pelé e João Gilberto me fez pensar muito no ano de 1958.
Uma pesquisa rápida conectando o Google à minha biblioteca mostrou que um intervalo de apenas 13 dias separa a vitória do Brasil na Suécia da gravação final de “Chega de Saudade” – lançada inicialmente num 78-rotações com “Bim Bom” do outro lado, a canção que mudou o Brasil para todo o sempre. Parece superlativo, mas juro que não é, e o mito está aí para me ajudar: Caetano, Gil, Jorge Ben, Roberto Carlos, Gal Costa, todos eles (e muitos mais) prestaram atenção no violão do baiano que perambulou pelos sofás de amigos e parentes por uma década até chegar àquela batida mágica, tão bela quanto os dribles de Mané em cima dos Joões europeus.
Assim como os gols de Pelé, o violão de João Gilberto mostrou ao mundo que o Brasil existia e não era um recanto exótico cheio de bananas, dando um chega para lá ao complexo de vira-latas tão bem definido por Nelson Rodrigues. (E me parece muito salutar, devo dizer, que também tenha subido a rampa do Planalto em 1º de janeiro uma vira-lata estopinha num exato momento em que a gente chutava para lá outros tantos complexos impostos ao país).
Sei mesmo que quando ouço Chega de Saudade, eu tomo um banho de modernidade, a despeito das muitas décadas que nos separam de seu lançamento em 1959. (Nota rápida: o compacto da canção gravada por João é de 1958, assim como Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, que fez a primeira gravação da faixa, mas o LP de estreia de João Gilberto só veio mesmo no ano seguinte). Em menos de 24 minutos, esse disco é um bálsamo que permite ao ouvinte se refrescar no que o Brasil tem mais de bonito, com canções de Dorival Caymmi (“Rosa Morena”), Ary Barroso (“É Luxo Só”, “Morena Boca de Ouro”), um clássico do repertório de Orlando Silva (“Aos Pés da Cruz”) e novíssimas canções de Carlos Lyra (“Lobo Bobo”, “Saudade Fez um Samba”) e Tom Jobim (“Desafinado”, “Brigas Nunca Mais” e a faixa-título), além das raríssimas composições do próprio João: “Hô-bá-lá-lá” e “Bim Bom”.
Mas o que há por trás de todas as canções é a bossa de João, a capacidade de cantar de um jeito muito particular e dividir as sílabas que é só seu – e que é herdeiro de Mário Reis, o primeiro a dominar o microfone como instrumento no Brasil, mas também é herdeiro de Orlando Silva e seus dós de peito. (Para quem quiser ler mais sobre isso, sugiro demais a leitura de Chega de Saudade, o livro de Ruy Castro que já é um clássico por si só). Dessa bossa, porém, a impressão que fica é a de uma simplicidade gigante, um despojamento digno de um dia de calção de banho e chope na praia. Chope? Opa, peraí.
Eu disse que seria um desafio enorme parear Chega de Saudade com algum coquetel, ainda mais com uma bebida que pudesse dar conta desse pareamento entre sofisticação e simplicidade, desse bálsamo que aparece entre abraços e beijinhos e carinhos sem mais fim. Uma dose pura de cachaça seria pouco sutil. Um coquetel com uísque, a bebida favorita de Tom e Vinicius, seria distante demais, eu acho. A boa e velha caipirinha talvez fique melhor na mão de um sambista raiz – ainda que, como João e Tom cantam, eles só “dançavam samba”. Até que um amigo sugeriu: que tal um chopinho, parceirinho?
Eu sei que o chope não é lá uma bebida brasileira – a Brahma, vale dizer, foi fundada por um suíço. Mas vai dizer ao bebedor nosso de cada dia que ela também não é um pouco nossa? Ainda mais o chopp Brahma, que quando está muito gelado, é também um bálsamo de refrescância na garganta, com uma razoável leveza. Por um momento hesitei, pensei em homenagear este disco com a minha combinação de boteco favorita: “uma Original e dois copos”, claro. Mas a Antarctica é paulista, a Original é paranaense e a Brahma, perfeitamente carioca como se tornou um pedaço da alma de João Gilberto. E até encontrei esse comercial do começo dos anos 1990 em que a conexão se fez mais que… óbvia, eu diria. “Pensou cerveja, pediu Brahma Chopp”.
Os mais radicais vão dizer que há uma grande diferença entre tomar uma Brahma e um Chopp Brahma. Eu concordo: há diferenças no amargor, na falta de leveza e também na ressaca do dia seguinte na cerveja enlatada ou engarrafada. Outros poderão me acusar de golpe ao escolher uma bebida industrializada e “não misturada” como um coquetel. Também entendo.
Mas, depois de viver tantos momentos históricos e compreender o cansaço que eles trazem às nossas costas, devo dizer que há certa beleza em só abrir uma torneira e já ter uma bebida gelada e redonda (opa!) nas mãos. E acho que as inúmeras idiossincrasias pelas quais João Gilberto se tornou conhecido me permitem essa pequena idiossincrasia para começar o ano. Além disso, vá lá ouvir Chega de Saudade com um chope na mão pra me dizer que a combinação não funciona, vá?
Pelé, João, Lula: por trás das histórias, há os homens – e não preciso entrar no aparte óbvio para dizer que nenhum destes três é perfeito, pelo contrário. Mas me permito a pequena janela de luto e lua de mel para pensar na importância dos símbolos, das narrativas: a história de três indivíduos que saíram de cidades pequenas no interior do país para vencer nas metrópoles e fazer, cada um a seu modo, o Brasil ser maior, rompendo com a própria imagem que o Brasil tinha de si mesmo. Três homens que fizeram e fazem o Brasil ter orgulho de ser o que é. E se você não sente orgulho daquela camisa 10, de João cantando Gershwin como se este escrevesse em português ou da incrível cena abaixo, eu estendo a você o julgamento de Dorival Caymmi sobre quem não gosta de samba: “é ruim da cabeça ou doente do pé”.
Na última terça-feira, o homem que se elegeu fazendo o povo brasileiro sonhar de novo em comer picanha e tomar chope gelado sem medo de ser feliz cometeu uma série de frases históricas, como é de costume a quem faz um discurso de posse como presidente. Uma delas, para mim, se destaca.
E enquanto escrevia esse texto e ouvia muitas vezes Chega de Saudade, tive uma pequena alteração etílica que me fez pensar no sujeito de “Chega de Saudade” não como uma pessoa de quem se tem saudade, mas sim na democracia. Abraços e beijinhos à parte, a letra funciona – e encerro essa singela carta, em meio a mais um gole de chope, com um desejo ou dois para 2023 e diante: chega de ter saudade da democracia. E chega de ter saudade do Brasil. Saúde, amigos. Nós voltamos.
Nos reclames da semana, alguns toques curtos e rápidos:
No Programa de Indie, tivemos uma dobradinha de programas especiais de Natal e Ano Novo, com nossos desejos para 2023. Vale a sua audição!
Além disso, já comecei o ano em Cajuína com dicas para quem quer aprender a lidar com comunicação assíncrona – um tema que particularmente eu gosto bastante (afinal de contas, essa própria newsletter é um exercício de comunicação assíncrona, não é mesmo?). E de quebra, saiu no site também meu papo com o ator Lázaro Ramos sobre diversidade e liderança, que já havia sido publicado no nosso report especial.
E na dica de newsletter legal da semana, a dica fica por conta da
, do vocalista e letrista do Decemberists, . É uma delícia vê-lo escrevendo sobre turnês, livros, suas músicas ou as dos outros – o texto dele sobre "Kanga Roo", do Big Star, é uma das coisas mais bonitas que li sobre música recentemente (e olha que leio muito sobre música).
Sim, como vocês repararam, hoje não tem receita. Afinal de contas, a receita pra um chopp é simples: vá ao seu bar preferido e peça no cardápio. Também dá pra pedir em casa, claro, como eu fiz por motivos acadêmicos nesta edição. O que importa é ter motivos para brindar.
Saúde, amigos, e um abraço! Que 2023 seja um ano leve e lindo pra nós.
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Chega de Saudade, o álbum de estreia de João Gilberto, bem como do recém lançado Ao Vivo no Teatro Santa Isabel, Recife 2000, registro de um show do cantor no mesmo ano.
PS2: Eu queria deixar claro que, infelizmente, eu não ganhei nenhum caraminguá da Ambev para fazer esse texto.
PS3: Há inúmeros fios e textos circulando por aí sobre Lula e Pelé, talvez menos sobre João Gilberto a essa altura do campeonato. Mas vou ficar aqui com um só: o de João Moreira Salles, na Piauí, que reproduziu certo status insone que eu também tive nos últimos dias.
Nossa, deu saudade de tomar um chopp levinho e gelado.
Eu era pequeno quando passou na TV essa propaganda do Brahma Chopp com João Gilberto. Conheci ele pela propaganda. É do caralho, ainda mais nos tempos atuais de LOUDNESS pra tudo