#7: "Angela Ro Ro" (1979), Angela Ro Ro + À Moda Antiga
"Não tire da minha mão esse copo, beba comigo a gota de sangue final..."
Não, você não leu errado o nome do drink desta semana. À Moda Antiga é o nome que dei para uma verdadeira Versão Brasileira Herbert Richards. Bons entendedores vão sacar logo que esta é uma adaptação do bom e velho Old Fashioned, em que a cachaça entra no lugar do uísque. Mas não quero falar dessa receita, não agora: quero falar do disco que me motivou a chegar nessa mistura – uma daquelas criações etílicas que a gente faz num domingo em que já está com alguns copos na cabeça e resolve seguir bebendo com o que estiver à mão. Angela Ro Ro, trabalho de estreia da cantora carioca, é um daqueles discos para os quais eu sempre volto quando me sinto um pouco sozinho, solitário, ou simplesmente querendo curtir uma boa fossa – e já adianto aqui que às vezes, mesmo em tempos felizes, curtir uma fossa faz parte da condição humana, é como querer um cobertor num dia quente só por conforto.
Eu devo ter descoberto Angela Rô Rô em algum momento do meio da adolescência, talvez por culpa da regravação do Barão Vermelho de “Amor Meu Grande Amor” – não a de estúdio, nos anos 1990, mas a do MTV Ao Vivo, aquele em que também tem uma versão de “Codinome Beija Flor” com um dueto post-mortem entre Cazuza e Frejat. Mas divago: o que sei é que Angela Ro Ro, o disco, foi um grande companheiro naquelas desilusões juvenis. Eu tinha (e até hoje tenho) certo pendor dramático: parece exagerado hoje pensar que eu curava meus amores platônicos com frases como “amo somente o vazio e me acalmo danando” ou “como é triste beijar sem ser beijado” (eu era BV, hehe).
Sei também que esse álbum foi parte de uma época muito curiosa: lembro de tê-lo gravado num CD-R para ouvir num discman emprestado de um amigo enquanto meu mp3 player consertava. A doideira da coisa é que eu só ouvia música no ônibus, então eu praticamente não conseguia estabilizar o disco lá dentro com o balanço do 493 - Estação Imigrantes da Viação Padre Eustáquio. Ah, a graça de ser uma geração de transição.
A própria Angela Ro Ro entenderia muito bem isso – afinal, ela faz parte de uma própria geração de transição. Seu primeiro disco saiu num momento específico da MPB em que o Brasil até queria fazer rock, mas faltava uma cultura de rock para isso. Sempre vou dizer que é uma balela dizer que o rock nacional começou nos anos 1980, uma vez que os 1970 têm alguns dos trabalhos mais roqueiros que esta terra já viu (e posso dizer apenas os nomes Rita Lee e Raul Seixas para começar, mas há mais, muito mais). Mas entendo que faltava uma certa noção de como se fazer, consumir e embalar rock bem cantado e bem escrito em português para o ouvido nacional.
É algo que fez o disco de Angela Ro Ro ser um trabalho que trafega entre o jazz, a MPB de cantoras (Simone, Fafá, Sueli Costa) e o rock. Talvez dessa forma ele tenha sobrevivido melhor ao tempo: hoje, é um disco que qualquer roqueiro que se preze pode ouvir, porque há muito de Janis Joplin e blues nele, mas também que dialoga com o espírito do samba canção dos anos 1950. Há mais semelhanças entre Angela e Dolores Duran do que poderia sonhar a nossa vã filosofia. (Um dia ainda terei uma van e a chamarei de Filosofia, mas isso é só uma piada ruim). Pelo sim pelo não, vale dizer que este disco era álbum de cabeceira de um jovem rapaz que circulava ali pela Gávea e pelo Leblon, tomando todas e virando mesas: Cazuza.
Parte do que faz de Angela Ro Ro um disco especial é a presença de um dos meus artistas brasileiros favoritos: Antonio Adolfo. Pianista e compositor de mão cheia, Adolfo fez canções de festival (“BR-3”, “Juliana”), temas de novela (“Teletema”, ícone da primeira trilha sonora original de uma novela da Globo, Véu de Noiva) e hits que o Brasil abraçou (“Sá Marina”, uma pérola pop que foi parar até na mão de Stevie Wonder). Foi líder de uma pioneira banda de soft rock local, a Brazuca, foi pros EUA, voltou e gravou um dos primeiros discos independentes da história desse país, Feito em Casa. E fez os arranjos e tocou as teclas (pianos e teclados) deste disco – se você já está cansado de ouvir esse álbum, volte mais uma vez e preste atenção no trabalho de Adolfo. É coisa fina demais.
(E já que você está de ouvido atento, caro leitor, preste atenção ainda nas guitarras de Rick Ferreira, que acompanhou Raul Seixas por um tempão, no baixo do experiente Jamil Joanes e na bateria de Robertinho Silva. Uma banda pra não se botar defeito.)
Mas só com arranjos e teclas não se faz um disco clássico. Angela Ro Ro, é, sobretudo, um disco de cantora-compositora. E que cantora: Angela está com a voz em seu auge, com uma rouquidão afinada e melodiosa, coisa linda. E que compositora: tem algumas das baladas de sofrimento mais bonitas já escritas no Brasil (o quarteto de abertura), mas também tem uma bela homenagem à relação conflituosa entre mãe e filha (“Minha Mãezinha”), tem declarações desbragadas de amor (“Amor Meu Grande Amor”, aqui abaixo num raro dueto com Ney Matogrosso) e canções que ficariam bem num honky-tonky (“Balada da Arrasada”).
É o disco de alguém que amou muito, sofreu muito e perambulou muito – nos anos 1970, Angela viveu o sonho hippie pela Europa, nos altos e nos baixos, incluindo uma participação inesperada tocando gaita em “Nostalgia”, faixa que encerra o Transa de Caetano Veloso. Mas, assim como outros grandes álbuns tristíssimos, Angela Ro Ro é um trabalho que sempre mostra uma luz no fim do túnel – não à toa, o verso que encerra o disco é “abre o coração, faz o sol nascer”. Ou como diria outro mestre tristíssimo, Leonard Cohen, “there is a crack, a crack in everything, that’s how the light gets in”.
É um pouco a forma como eu vejo o Old Fashioned, um coquetel que, à primeira vista, parece álcool puro. Com a adição de duas ou três jorradas de Angostura, então, a coisa se torna ainda mais grave. Mas a presença do açúcar (na receita original, um torrão, que eu substituo por xarope de açúcar por praticidade), por menor que seja, aos poucos vai se revelando, deixando o coquetel muito balanceado, pronto para ser apreciado por qualquer paladar disposto. Além disso, é divertido salientar a história do próprio Old Fashioned, que só se tornou uma receita consolidada quando já existia há muito tempo. No começo do século XIX, era comum misturar uísque, gim ou outros destilados com um pouco de açúcar, água e algum bitter.
À medida que o tempo avançou, porém, começaram a surgir coquetéis com licores, mais elaborados – e a reação de alguns convivas era pedir um drink “à moda antiga”, mais simples, raiz, como dizem os jovens. Inicialmente, um old fashioned podia ser de gim, brandy ou rum, mas o uísque americano acabou tomando seu espaço e definindo a receita favorita de Don Draper. É algo que me dá liberdade poética, porém, pra fazer minha própria receitinha com cachaça, surgida no mesmo dia que harmonizei o Macunaíma com Construção e tomei um grande porre. A liberdade também tem lá suas razões históricas: no Brasil do final dos anos 1970, com importação controlada e pós-choque do petróleo, era bem difícil conseguir um uísque decente. Então nada melhor que apostar numa cachacinha velha de guerra – mas envelhecida em carvalho para dar aquele grau. À Moda Antiga, claro. Vamos à receita?
A Receita
2 doses (100 ml) de cachaça envelhecida em carvalho
Meia dose (25 ml) de xarope de açúcar
Duas ou três jorradas (dashes) de angostura
Uma receita tradicional de Old Fashioned usa torrões de açúcar, mas nem eu que gosto de andar em supermercado de rico tenho lá muito saco para comprar isso. No lugar do torrão de açúcar, que é embebido em angostura antes do gelo e do destilado chegarem ao copo, aposto no xarope de açúcar – cuja receita eu já falei sobre no Macunaíma, então corre lá.
Eu também inverto a ordem dos fatores para chegar a um resultado parecido: pego um copo baixo (o rocks, lembra dele?) e coloco a cachaça e o gelo primeiro. Depois, o xarope de açúcar e mexo levemente, só para que as coisas se misturem no copo. E encerro a coisa jogando a angostura por cima, para que ela apareça de forma desigual nas goladas, mas visualmente esteja presente. Às vezes, a gente também bebe com os olhos. E é isso aí, só correr pro abraço – só espero que essa mistura não te faça caminhar rastejando até o Leblon às seis da manhã. Se você quiser saber como faz um Old Fashioned de verdade (a gente vai voltar nele um dia!), deixo aqui a receita com um especialista: Don Draper.
Vamos aos reclames da vez?
Faz uns bons anos que eu não escrevo uma crônica. Ou melhor, fazia: a chegada do álbum da Copa do Mundo e esse mundo de trabalho remoto me inspirou a soltar a mão e escrever essa crônica pra Cajuína sobre como trocar figurinhas (literalmente) em pleno 2022.
Uma das bandas mais incríveis do Brasil no momento, a Maglore, lançou disco novo nesta quinta-feira. E amanhã eu e o Igor Muller batemos um papo incrível com Teago Oliveira, Lucas Gonçalves e Felipe Didier no Programa de Indie. É um dos programas mais bonitos que a gente já gravou – e algumas das músicas mais bonitas que esses caras gravaram. Se eu ainda tivesse Orkut, “Espírito Selvagem” seria meu “about me” hoje mesmo. Fica esperto!
E estamos quase chegando a 200 assinantes nessa newsletter em pouco menos de dois meses de conversa. Feliz demais que tem gente chegando nesse balcão. Em breve, trago novidades e quero saber mais de vocês, viu? Mas um drink de cada vez.
No mais, é isso – e assim como amor, meu grande amor, você sabe que nem sempre essa newsletter chega na hora marcada.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Essa newsletter foi escrita na véspera do envio, ouvindo Angela Ro Ro, claro. Mas ouvi no streaming e não nesse vinil bonito que eu comprei… em Portugal, por 10 euros. Saudades, Carbono Discos.
PS2: Angela Ro Ro é um dos personagens mais interessantes da nossa música. Se você nunca leu uma entrevista dela, tem que ir atrás pra dar muita risada de boas histórias. E até hoje ela faz grandes shows – o último que vi, dedicado a este disco, foi na Virada Cultural de 2019, em uma Alameda Barão de Limeira apinhada de gente a fim de sofrer. A companhia foi a amiga Vivian Codogno, que me ensinou a beber Campari e é mais fã de Angela e desse disco que eu. Essa newsletter é dedicada a ela.
PS3: Eu tive a sorte de entrevistar Antonio Adolfo, de quem falei pra cacete nesse texto, para o Scream & Yell em 2019. É um daqueles textos da vida.
Confesso que só fui descobrir a Angela Ro Ro recententmene, esse álbum dela realmente envelheceu super bem.