#24: “Ao Vivo”, Banda Eva + Cravinho
"Eu não vou perder você/faz parte dessa história/revelo o segredo/existente na memória"
Tem certos discos que funcionam como um refúgio. Você deve saber bem do que eu estou falando: aqueles conjuntos de canções em que basta um mero play para transportar o sujeito ou sujeita para longe de uma vida besta. Nos últimos anos, poucos discos desempenharam melhor esse papel na minha vida do que Ao Vivo, da Banda Eva – ou como eu vou chamá-lo a partir de agora, Banda Eva Ao Vivo 1997, assim com nome e sobrenome. É o tipo de álbum que eu chamo de corretor de vibes – e depois de ter meu otimismo com o Brasil testado no último final de semana, acho que faz bastante sentido espantar para lá todo o mal com o ritmo evolvente de Ivete Sangalo, bem antes dela levantar poeira por aí.
Ao contrário de muita gente, Banda Eva Ao Vivo 1997 é uma paixão recente da minha vida. Acho que eu só reparei nele mesmo durante a pandemia, quando se tornou meu disco oficial de faxina durante o isolamento social. Enquanto o mundo lá fora parecia cinzento e difícil, as caixas de som de casa traziam todo um colorido e me faziam lembrar do último Carnaval de nossas vidas – o de 2020. Por uma coincidência meio engraçada, foi também uma espécie de meu primeiro Carnaval, ou pelo menos o primeiro Carnaval em que eu me diverti botando glitter no rosto (na barba nunca!), vestindo fantasias improvisadas e saindo cedo de casa pra dançar e me espremer entre gente desconhecida.
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Pelas vielas da Pompeia (os puristas diriam “Vila Anglo Brasileira”), eu me encontrei de novo com melodias que há muito não ouvia e refrães que eu sabia cantar de cor. E foi curioso perceber que muitas delas estavam quase todas reunidas dentro de um único disco. Se alguém precisar saber por onde começar a entender o axé baiano (e seu potencial pop comprimido em menos de 60 minutos), basta ouvir Banda Eva Ao Vivo 1997 – e ainda leva duas releituras espertas de Skank (“Tão Seu”) e do mestre Cassiano (“Coleção”) de brinde. É um feliz encontro de diversas tradições da música pop brasileira, tal qual o encontro dos trios no Carnaval na Praça Castro Alves – e esse trecho do texto pode ou não ter sido bastante inspirado no dia que passei em Salvador no fim de dezembro passado.
Criado como um trio de universitários, o Bloco Eva nasceu no final dos anos 1970 na capital baiana, em uma época em que o trio elétrico já estava consolidado no Carnaval local. O Eva surgiu três décadas depois de Dodô e Osmar subirem num Ford 1929, equiparem-no com cornetas e saírem fazendo festa, e quase uma década depois de Caetano Veloso eternizar esse jeito de ser feliz dizendo que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. A origem do nome do bloco está longe de ser bíblica – pelo contrário: os amigos do trio reuniam-se na Estrada Velha do Aeroporto para ensaiar suas canções, o que deu origem à sigla Eva.
O que importa mesmo é que ao longo dos anos 1980, o Eva saiu pelas ruas de Salvador trazendo nomes que, anos depois, disputaram o topo das paradas de sucesso nacionais: nos vocais principais, por lá passaram Luiz Caldas e Ricardo Chaves, enquanto uma jovem Daniela Mercury passou muito tempo fazendo backing vocals no Eva. (Aliás, sabia que até o meio dos anos 1970, trio elétrico era instrumental? Quem inventou essa moda de cantar em trio foi Moraes Moreira – pelo menos foi o que eu aprendi na Casa do Carnaval da Bahia, uma parada obrigatória pra qualquer um que queira conhecer mais sobre esse pilar da cultura nacional).
Posteriormente responsável pelo hit “É o Bicho”, Ricardo Chaves ficou à frente do Eva até 1992. No ano seguinte, o bloco foi assumido pela banda Asa de Águia, capitaneada pelo guitarrista Durval Lélys. Paralelamente a isso, o próprio Eva percebeu que virar banda poderia ser uma saída para explorar o sucesso fora da época das folias de Momo – e uma jovem cantora de Juazeiro, recém migrada para a capital do estado, ocupou os microfones da banda, que assinou de cara um contrato com a Sony Music, correndo a esteira do sucesso aberta por Daniela Mercury. O nome da novata? Ivete, que liderou o grupo por três discos de estúdio, sucessos locais e uma participação especial no Xuxa Park que fez a rainha dos baixinhos abraçar a cantora e catapultar o Banda Eva para o mercado nacional.
Gravado em 4 de março de 1997 e lançado em julho daquele ano, Banda Eva Ao Vivo 1997 é o resultado estelar desse percurso acidentado – e mais de 2 milhões de cópias vendidas na época não podem me deixar mentir. Está lá de tudo um pouco: do pop que já dominou as paradas (Cassiano e Rádio Táxi, na indefectível “Eva”) ao melhor do rock da época, ressignificado para o balanço baiano (“Tão Seu”, cujo DNA reggae se conecta ao samba reggae que, durante algum tempo, foi um dos apelidos do axé no Sudeste), passando pelos blocos afro (“Vem Meu Amor”, do Olodum) e por canções que já tinham marcado a carreira do grupo nos últimos anos, como “Beleza Rara”, “Levada Louca”, “Alô Paixão” e “Me Abraça” – e atire o primeiro abadá quem não saiu cantando só de ler o nome das músicas. (Aliás, por falar em abadá, quem fez o primeiro abadá composto de shorts e regata foi o Bloco Eva, ainda na fase Lélys, que compôs “Leva Eu” em homenagem ao trio… ufa!).
O que me conquista em Banda Eva Ao Vivo 1997, mais do que só as canções em si, é que além da energia festeira de Ivete, o disco exala toda uma aura romântica, quase fofa mesmo, como a promessa de um amor pronto para se cumprir. (Coincidências da vida ou não, o disco também se tornou uma espécie de totem do meu namoro, iniciado justamente em meio aos dias cinzentos de 2021, mas que poderia ter começado bem antes, não fosse um desencontro e a timidez deste escritor justamente naquele Carnaval de 2020. E esse texto, bem, esse texto está sendo escrito diretamente de Uberlândia (MG)).
O que nos leva à bebida da semana: o cravinho. Pela segunda semana seguida, vou ser acusado de golpe, mas o motivo é nobre. Afinal de contas, o cravinho é ao mesmo tempo bebida e coquetel, ao menos no que se entende pela ideia de que um coquetel é uma mistura de diferentes elementos. Inspirado em beberagens imemoriais, o cravinho é uma instituição baiana, encontrada no bar homônimo, localizado na região do Pelourinho. Fundado nos anos 1980, O Cravinho (o bar) tem enormes barris vendendo uma mistura esperta de cachaça infusionada em cravo, mel e limão, que pode ser consumida em doses ou levada para casa – seja em garrafas de plástico ou em bonitos vasilhames para turistas sudestinos pagarem de mala. Fiz isso? Claro que sim, enquanto observava o local e via baianas de saia rodada e guias procurando “um turista bem bom pra nós”.
E ao beber o cravinho, um hit no Instagram dos amigos que foram a Salvador meses antes de mim, tive o estalo perfeito de que a bebida batia direitinho com Banda Eva Ao Vivo 1997. Uma bebida que tem raízes fortes e à primeira vista, parece bruta demais – tal como o axé fazia torcer o nariz do paulistano aqui, que nasceu e cresceu enquanto moleque roqueiro. Ao primeiro gole, às primeiras palmas batidas por Ivete, porém, é difícil não ficar impune: a doçura do cravinho se alinha perfeitamente às melodias e o canto doce da vocalista, enquanto o aroma forte do cravo eclipsa o álcool que faz o corpo entrar no ritmo mais fácil.
Mais: enquanto outras bebidas doces podem ser extremamente enjoativas, o cravinho é daqueles elixires que podem ser consumidos no repeat – que é basicamente o que acontece com Banda Eva Ao Vivo 1997 quando ele entra nos meus fones ou nas caixas de som. (Repeat, devo dizer, é também o que eu quero com Salvador: afinal de contas, a parada rápida em meio ao cruzeiro que fiz no fim do ano passado só serviu para abrir o apetite. Como diria o mestre Paulo Diniz, I don’t want to stay here/I want to go back to Bahia).
Você pode perguntar: pô, mas não dá para fazer cravinho em casa? Até deve dar: no Twitter, disseram que o melhor caminho é deixar cachaça e cravo infusionado por uns 20 dias, e depois misturar com mel e limão. Mas como não testei a receita, melhor não arriscar – e se der certo, prometo que volto aqui com ela. Por outro lado, confio que para algumas coisas é melhor nem apostar em receita. Apesar do sucesso de décadas, O Cravinho nunca saiu do Pelourinho, por opção de seu criador, como conta essa ótima matéria do portal Bahia.ba.
Algumas coisas funcionam melhor em um lugar e época específicos, como talvez seja o caso de Ivete e o Eva. Não que sua carreira solo seja desprezivel – pelo contrário, e o excelente MTV Ao Vivo, que pega a cantora em um ponto mais que ótimo, não me deixa mentir. Mas em nenhum momento Ivete caminhou por um equilíbrio pop tão perfeito quanto nesse disco – e a própria existência da inédita “Arerê”, cujo ritmo acelerado já antecipa uma nova fase da cantora, é exemplo disso.
Certas coisas têm seu lugar pra acontecer, mesmo que seja necessário esperar. E digo isso como quem, em meio a uma chuvosa semana em que olha só, de novo hoje o Sol não apareceu, espera o Carnaval que vem aí para concretizar a esperança de dias menos cinzentos, depois de tanto tempo. Já comprou o seu abadá?
Jogo rápido nos reclames da semana, hein:
O Programa de Indie começou seu 2023 de uma maneira crítica: elencando nossos discos favoritos do ano no Brasil. Um programa inteirinho pra Policarpo Quaresma nenhum botar defeito. Chega mais!
E na newsletter da semana, a dica é a ótima
, do Thiago Ney. Bem localizada numa esquina entre tecnologia, arte, cultura pop, sociedade e outras doideiras, é uma daquelas newsletters que me deixam pensativo toda semana – ou pelo menos me fazem abrir (literalmente ou não) várias abas diferentes.
E esse é só o começo da aventura humana na terra, viu? Saúde e até semana que vem!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Banda Eva Ao Vivo 1997, claro, mas também foi composto com a ajuda de 12 de Janeiro, álbum de estreia de Nando Reis que… bem, é um disco que você só pode ouvir neste 12 de janeiro. Tá na lei, sabe, não sou eu que mando.
PS2: Prometo que semana que vem essa newsletter voltará a ter receitas de verdade. Até porque muitas dessas ideias estão fervilhando por aqui. Se alguém quiser uma pista pro que vem aí na semana que vem, deixo aqui um trocadilho: é bourbon para o moral.
PS3: Aproveito ainda para dizer que aceito dicas e mais dicas do que fazer em Salvador (a meta é ir em algum momento do segundo semestre, visse).
Bruno, quando voltar a Salvador, visite o Mercado das 7 Portas. Fui levado a conhecer este lugar, depois de assistir aos shows do grande (e infelizmente falecido) Mestre Letieres Leite & Orquestra Rumpilezz. Só pra constar, Letieres Leite fui músico e maestro da banda de Ivete Sangalo, por muitos anos.
Só de ler "Banda Eva Ao Vivo 1997", sou teletransportado por um carnaval de 98, em uma enevoada Chapada dos Guimarães. Confesso que tenho uma garrafa dessa de cravinho, mas quem me presentou não tinha explicado. Talvez encare.