A semana que passou deixou aí um gosto amargo na boca? Aqui também, caro colega de balcão. Depois do último final de semana, sinto que viver em algumas partes do Brasil se tornou uma tarefa um bocado mais insalubre. Não à toa, nesta cartinha decidi recorrer a uma dupla áspera. De um lado, um coquetel indiscutivelmente amargo: o Black Manhattan, uma adaptação de um clássico. Do outro, um disco que sinto que funciona como meu oráculo, meu I Ching, meu tarô, meu jogo de búzios desde os 12 anos de idade: Alucinação, do Belchior. Se você fizer as contas, saberá que isso foi bem antes dele sumir e de “Sujeito de Sorte” virar hit do jovem que cultiva samambaias num apartamento com chão de taco. Pode me chamar de hipster, eu sei – mas vou aproveitar para já tirar duas histórias pessoais sobre Belchior da frente. A primeira é que “Belchior” foi meu apelido durante algum tempo na única escola de música que frequentei na vida, quando ainda achava que podia ser músico. A segunda é que eu vi um show do Belchior em 2005, no SESC Santo André, e até entrei no camarim. Arrepio só de lembrar.
Lançado em 1976, pela Phillips, Alucinação é o segundo disco de Belchior – o primeiro, autointitulado e gravado três anos antes, é uma pequena pérola que ainda precisa ser redescoberta. Alucinação também é o primeiro trabalho do cearense depois do estouro de “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” na voz de Elis Regina. Mais do que apenas a obra-prima do cantor nascido em Sobral, que quase foi padre e médico, este disco talvez seja um dos melhores testamentos do desalento que foi viver no Brasil em meio aos anos 1970.
É um retrato de alguém que, antes de chegar ao estrelato, perambulou muito por Sul e Norte, lutou, desbundou, passou fome e viveu na pele aqueles anos de chumbo. E é importante lembrar dessa perspectiva não só pela ameaça que paira sob as nossas cabeças ou porque há no Planalto alguém que cultua aqueles tempos, mas também porque mesmo sob as condições mais tenebrosas, Belchior é capaz de ver a luz entrando em meio às rachaduras. Não é algo fácil de se ver, eu reconheço, mas ela está lá – e é desses sinais que quero falar aqui hoje.
Criado pelo bartender Todd Smith, em 2015 (ou o primeiro dos anos que a gente gostaria de esquecer), o Black Manhattan é a adaptação de um clássico – o Manhattan, que une uísque de centeio, vermute e angostura em taças elegantes por balcões mundo afora. Já o Black Manhattan substitui o vermute (que é uma espécie de vinho fortificado, de certo tom adocicado) por amaro, nome italiano dado a qualquer bebida de gosto (rá!) amargo, normalmente feita a partir de ervas e raízes. Na receita original, Smith usa o Amaro Averna, mas aqui em casa fui de Fernet Branca.
A mudança não foi só por conta do que estava disponível na adega, mas também porque o Fernet é um bocado mais amargo do que o Averna – e nessa semana eu precisava de um coquetel assim, vigoroso, que não servisse para qualquer paladar. Além disso, fui de Fernet porque, assim como Belchior, nesta semana um tango argentino me vai bem melhor que um blues. Eu sei, assim falando você pensa que esse desespero é moda em 2022. Talvez seja.
Fato é que o Black Manhattan não é um coquetel palatável para qualquer paladar. A primeira reação ao prová-lo foi de fazer uma careta, quase como se alguém tivesse me dado um tapa na cara. E foram muitos os tapas na cara que levei de Alucinação ao longo da vida e continuo levando. Só nessa semana, escrevendo este texto, tive um calafrio ao ouvir uma estrofe como esta, de “Não Leve Flores”, uma canção que fez meu otimismo da última semana parecer ingenuidade.
“Tenho falado à minha garota, meu bem
Difícil é saber o que acontecerá
Mas eu agradeço ao tempo
O inimigo eu já conheço
Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço
A voz resiste, a fala insiste, você me ouvirá
A voz resiste, a fala insiste, quem viver verá”
No entanto, acredito mesmo que quem se dispuser a mergulhar nessa estrofe verá nela uma força inesgotável, como a de quem sabe que dias melhores virão. Da mesma forma que quem não cuspir longe o primeiro gole de um Black Manhattan conseguirá ver aos poucos o amargo se transformando em outros gostos – é possível sentir ao longe o herbal do Fernet, até mesmo a dulçura do uísque chegando na garganta. Acho que é um pouco por aí que vamos viver nas próximas semanas: com um gosto amargo na boca, mas deixando que ele possa se transformar em novos sabores. Não é tempo de descansar, não é tempo de esmorecer – mesmo que pareça que tudo está como o diabo gosta, tá.
Não vou aqui gastar inúmeras linhas versando sobre as muitas mensagens de Alucinação – até porque talvez este seja o disco que melhor honrou não só a herança de diferentes poetas da última flor do Lácio, mas também de Bob Dylan. É um disco palavroso, cheio de mensagens e referências. Juro que não vou ceder ao clichê de olhar para “Como Nossos Pais” e achar que a vida, a mentalidade das pessoas, o Brasil, não pode melhorar – pelo contrário, o sinal ainda não está fechado para nós.
Se é para negar o que Belchior disse, vou também dizer que o que pesa na Sudeste também pode cair no Nordeste, ao contrário do que Newton já sabia – ainda que eu ache que a discussão que divide as regiões do País pela tendência de seus votos acabe mais por nos separar do que nos unir. E precisamos estar unidos. (Sim, colega de balcão, caso você não tenha notado, este é mais um texto sobre política).
Também não pretendo aqui gastar muitas linhas dizendo o que a gente deve fazer para tentar impedir o Brasil de ir para um caminho lúgubre. Primeiro, porque se a receita fosse fácil, alguém já tinha feito. Segundo, porque a discussão dos últimos dias sobre a conta de erros e acertos, posturas e medidas, hot takes e opiniões tem sido por demais cansativa. E acredito que essas ideias todas têm mais ajudado a dividir do que somar. Ou, seguindo o exemplo de Belchior, não estou exatamente interessado em nenhuma teoria – “amar e mudar as coisas me interessa mais”. Pode parecer um exercício curioso, uma ideia maluca vinda de um disco que se chama justamente Alucinação, mas é o cantor quem explica: “Viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?", disse ele à revista Pop em 1977.
Mas vou me permitir, antes do fim, falar algumas palavras sobre a história recente de Alucinação. Não sei, perdi a conta das vezes que ouvi “Sujeito de Sorte” em festas de ano novo nos últimos anos – especialmente de 2015 para cá, justamente o ano de criação do Black Manhattan. Depois de ouvi-la como um mantra e só ver a realidade piorar, confesso que achei que a música trazia mau agouro.
Como toda canção desgastada pelo uso (ref. cit. “Hey Jude”, “Pais e Filhos”, “Que Pais é Esse?”, etc), sinto ao ouvi-la numa semana como essas que é justamente por sua mensagem que ela talvez tenha caído no gosto da juventude anos 10: é uma música sobre a esperança em tempos melhores, mesmo que ela venha acompanhado de um gosto amargo, como o de quem teve um ano terrível.
E não acho que seja à toa que ela faça a base para a melhor canção de um dos maiores artistas brasileiros da última década: “Amarelo”, de Emicida, com a participação especial de Majur e Pabllo Vittar. Há alguns meses, pude vê-la ao vivo e escrevi algumas linhas sobre essa obra singular. Vou pedir licença para me autoreferenciar aqui, só porque sim.
“Mais do que só entrega, porém, Emicida também tinha o domínio de como encaixar seu repertório de forma a construir não só um espetáculo, mas uma noção pública, cívica, uma república federativa de gente disposta a resolver injustiças e se acolher num abraço e em versos. Hoje, talvez, não exista melhor tradução de acolhimento na canção nacional que a dupla ‘Hoje Cedo’ e ‘Amarelo’, executada lá pelo terço final da apresentação – e que resume bem o espírito do show. Há dois, quatro, seis, cem, quinhentos e tantos anos, tem gente morrendo – mas se depender das palavras e da performance de caras como Leandro Roque de Oliveira, o amanhã não vai ser só um ontem com outro nome.”
Talvez a única coisa que eu mudaria nesse texto é que essa mudança não é responsabilidade só desses caras que sobem num palco, mas de todos nós. E claro, essa é uma luta diária, mas acho que ela se torna ainda maior nos próximos 23 dias. É hora de conversar com quem é diferente, é hora de não perder tempo brigando entre a gente. Vamos nessa?
A Receita
60 ml de whisky
30 ml de Fernet Branca
1 dash de Angostura
1 dash de Orange Bitter
gelo
Falei tanto de tantas coisas que você quase achou que não ia ter receita hoje, né? Mas vamos lá: para o Black Manhattan, a receita é bem simples. Coloque todos os ingredientes (nesta ordem, se possível) dentro de um mixing glass ou mesmo de um copo simples. Mexa com uma colher ou uma bailarina, com o gelo. Depois de misturar bem (sem bater, por favor!), o último passo é coar o líquido (sem o gelo!) para uma taça bonitona. Aqui em casa, fui de Taça Coupé.
Mas vale falar um pouco mais sobre as minhas adaptações: em vez de uísque de centeio, que é chatinho de achar no Brasil, fui mesmo com o bom e velho Ballantine’s que já apareceu aqui algumas vezes. Custo-benefício, sabe? No lugar do Averna, que eu não tenho na adega, fui com o Fernet Branca – o que resultou em um Black Manhattan mais alcóolico (o Averna tem 29% de álcool, já o Fernet Branca tem 39%) e um pouco mais amargo. De qualquer forma, vale a incursão pelo universo dos amaros, um mundo que pretendo explorar cada vez mais.
Nessa semana, mais uma vez, tem uma soma grande de reclames lá do nosso Programa de Indie:
O primeiro, para relembrar, é o papo incrível que a gente teve com Santiago Motorizado, do El Mató a un Policia Motorizado, na semana passada. Vale o aviso: eles tocam hoje à noite em São Paulo no Cine Joia (e eu estarei lá!)
O segundo é a conversa que a gente teve com o godfather Lucio Ribeiro sobre o Popload Festival, que rola na próxima quarta-feira, 12 de outubro, aqui em São Paulo, com Pixies, Jack White, Cat Power e até um recém-anunciado encontro entre Fresno e Pitty.
E por falar em Pixies, eu e o Igor Muller tivemos a honra de conversar com o baterista Dave Lovering, numa conversa que falou do disco novo deles, Doggerel, mas também dos dois shows que eles fazem no Brasil (além do Popload, tem Rio dia 11, com abertura do gorduratrans). A primeira parte desse papo saiu na Popload, mas tem mais por aí, viu? Fiquem ligados!
Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Belchior e Alucinação, os dois primeiros discos do cantor cearense, além de doses cavalares de “AmarElo”, de Emicida, Pabllo Vittar e Majur.
PS2: Ainda sobre Belchior, tenho uma história curiosa: antes que me mandassem, eu fui para Cuba em 2017, como já falei no texto do Mojito com Paralamas. Na época, o acesso à internet na ilha era bastante precário, então fiquei pouco conectado durante a viagem, só para mandar notícias e eventualmente postar uma foto no Instagram. O que me fez descobrir a morte de Belchior apenas cinco dias depois do ocorrido, por conta de uma postagem de um amigo que havia ido cobrir seu funeral em Fortaleza. Foi provavelmente a última vez que recebi uma notícia dessas com tanto atraso – e claro, fiquei sentido por não poder escutar Alucinação logo na sequência, em uma viagem de seis horas de ônibus de Havana a Trinidad. Espero que eu tenha pago essa dívida com o grande bigode, que já me desejou amizade e canções, agora.
PS3: Confesso que eu não esperava ter que escrever esse texto nessa semana. Eu tinha outro coquetel e outro disco programados – uma harmonização bem mais agradável, leve, tranquila do que esta aqui. Mas ela simplesmente não faria sentido agora. Espero que em breve ela possa estar nesta newsletter (não só porque é muito boa, mas para simbolizar um momento melhor).