#43:“Buena Vista Social Club”, Buena Vista Social Club + Daiquiri
Duas produções tipicamente cubanas, mas com uma mãozinha dos Estados Unidos, pra gente refletir um pouco sobre raízes e misturas latinoamericanas.
Tem um meme circulando nas redes sociais há alguns meses que por vezes descreve o estado do meu coração: “gracias a Díos, nací en Latinoamerica”. Nem sempre é fácil seguir o destino da canção de Belchior, é verdade, mas tem certos momentos em que ter nascido e sido criado nesse cantinho do planeta é realmente muito especial. Acontece quando vejo a Venezuela marcar um gol de bicicleta na seleção brasileira. Acontece quando vou a um festival com bandas do Cone Sul e converso com um baterista paraguaio de uma banda de ska sobre a campanha do São Caetano na Libertadores em franco portunhol. Acontece até mesmo quando mordo uma empanada ou um pedaço de mandioca frita. E acontece especialmente quando dou um gole num drink feito com rum – bebida que, talvez eu já tenha dito aqui, foi minha droga de entrada para a coquetelaria ao lado do gim. E em tempos corridos, em que as tarefas se somam, recorrer a um coquetel com rum é uma boa saída para manter essa newsletter funcionando.
Já vinha há algum tempo pensando em escrever algo sobre esse verdadeiro monumento da música latina, o álbum Buena Vista Social Club. Tal como a coquetelaria, é um gosto adquirido: quando criança, lembro bem de ver clipes da música cubana passando na HBO, numa época em que a gente ainda assinava DirecTV lá em casa. E lembro de achar tudo muito esquisito. Era um ritmo sincopado, mas não era samba. Os arranjos de metais mais agrediam do que agradavam aos ouvidos. E por que raios eles não cantavam em português, eu me perguntava? Durante anos, tentei ouvir o Buena Vista, sem sucesso. Larguei de mão e evitava o assunto quando alguém buscava louvar os heróis da Ilha numa conversa sobre gostos musicais. (Aliás, tem pergunta pior que “que música você gosta?”. Ainda não descobri, mas aceito sugestões).
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Mais velho, já adulto, retomei as audições de Buena Vista Social Club por um motivo nobre: era o final de 2016, Fidel havia acabado de morrer e, com a namorada da época, decidimos que nossas primeiras férias como um casal seriam gastas em Cuba. “A gente precisa ver Cuba antes de Cuba acabar”, pensávamos nós – vale lembrar que Obama ainda era presidente dos EUA e a queda do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos à ilha caribenha parecia iminente. Passagens compradas, roteiro feito e dividido por quatro cidades (Havana, Trinidad e Cayo Santa María, com uma rápida passada pela revolucionária Santa Clara), era hora de imergir na cultura local. O que nos fez provar mojitos e daiquiris em São Paulo, fazê-los em casa a rodo e… vá lá, até comprar uns livros de literatura cubana – lembro que achei o Pedro Juan Gutiérrez uma espécie de Fante/Bukowski sem perder a ternura jamais.
Dessa vez, Buena Vista Social Club desceu redondinho. Meu ouvido tinha evoluído um pouquinho, é claro, mas eu também estava mais atento a alguns detalhes específicos. Um deles, em especial, é o mote deste texto: a produção do americano Ry Cooder. Guitarrista de mão cheia, Ry Cooder é um explorador das profundezas dos Estados Unidos, passeando por folk, blues, bluegrass, country e uma série de outros ritmos específicos ao Norte do Rio Grande.
Em algum momento da adolescência, fiz um bom passeio pela sua discografia e me encantei por uma meia dúzia de canções – marcantes mesmo, são o disco A Meeting by the River, um encontro da guitarra de Cooder com a cítara indiana de V. M. Bhatt, e a faixa de abertura da trilha sonora do filme Paris, Texas, de Wim Wenders. Olha só que coisa bonita, com essa slide guitar característica – mais que isso, eu diria que quando penso em slide guitar, esse som é meu arquétipo do uso do instrumento.
Em 1996, Ry Cooder foi convidado por um produtor britânico para ir a Cuba, coordenar as gravações de um encontro de músicos do Mali com artistas locais. Por problemas de visto, os africanos nunca vieram, mas ele não se fez de rogado: decidiu aproveitar a oportunidade, reunir os artistas locais e coletar canções, gravando-as no estúdio da histórica gravadora Egrem. O resultado foi este disco, lançado em 1997, que acabou inspirando o filme homônimo do diretor alemão Win Wenders – colaboradores de longa data, Cooder e Wenders estavam trabalhando em um novo projeto, mas Cooder simplesmente não conseguia se concentrar, pois estava sempre pensando em voltar a Havana, diz a lenda. Eu entendo: tem horas que também estou sempre pensando em como voltar a Havana.
Não vou aqui contar o resto da história, porque espero realmente que você assista o filme – ainda que Buena Vista Social Club não esteja presente em nenhum serviço de streaming, para complicar as coisas. O que queria falar sobre, na verdade, é uma das questões polêmicas em torno de disco e filme: a influência de um americano sobre o contexto local. Na hora de analisar criticamente Buena Vista, muita gente acha que Ry Cooder meteu a mão demais nos arranjos e na seleção de canções, deixando-as “menos cubanas”.
Preciso ir na linha contrária: sem sua interferência direta, talvez muitas dessas músicas nunca tivessem vencido o bloqueio imposto à ilha. Mais que isso: ao arranjá-las de maneira peculiar, Cooder também atualizou esse repertório de uma maneira muito singela, respeitando suas origens. Não foi só: é interessante ressaltar que as escolhas de arranjos e produção feitas por Cooder, que “limpam as músicas”, permitem que as verdadeiras estrelas brilhem: os cantores e instrumentistas cubanos e suas histórias de sobrevivência, de luta e do poder da arte, acima de tudo.
Topei com Buena Vista Social Club esses dias de novo por conta das extremas ondas de calor que tem abatido o Sudeste nos últimos tempos. É uma lembrança sensorial: até as últimas semanas, nunca vivi calor mais extremo que naquele mês de abril que estive em Havana – mesmo de noite e com ar condicionado ligado, era difícil dormir naquele quartinho gentilmente alugado pelo médico Leo no Airbnb. E passei um tempo matutando que drink ele seria. Filosoficamente, cogitei muito um Hemingway Daiquiri – a versão que o escritor americano Ernest Hemingway criou do Daiquiri, com licor marasquino e suco de toranja, e ajudou o coquetel a ganhar fama por aí. (Aliás, viajar a Havana é também viajar dentro da obra de Hemingway, especialmente para fãs de O Velho e o Mar, mas isso é assunto pra outro capítulo). Mas achei que entraria numa saia justa com vocês, leitores: se o disco cubano por excelência seria uma adaptação do Daiquiri, disco nenhum poderia ser um Daiquiri – um enorme desperdício lógico.
Felizmente, durante minhas pesquisas, descobri que o próprio Daiquiri foi inventado por um americano. É sério: na virada do século XIX para o século XX, empresários dos Estados Unidos começaram a explorar jazidas de minério de ferro em Cuba. Numa dessas minas, chamada de Daiquiri, o engenheiro americano Jennings Stockton Cox percebeu que muitos mineradores bebiam doses nada homeopáticas de rum antes de começar a trabalhar.
Ao receber sua ração periódica de Bacardi Carta Blanca, Cox começou a improvisar com os ingredientes que tinha à mão até chegar numa combinação de rum, limão e açúcar. (Há quem também diga que ele tenha usado o rum quando ficou sem gim, usando limão e açúcar para retirar certo caráter agreste da bebida a fim de não ofender o paladar de seus convidados, mas a lenda é melhor contada na bíblia Difford’s Guide). Fato é que a receita ficou e, aos poucos, migrou para os Estados Unidos, onde alcançou status de clássico. Claro que os americanos também inventaram moda: hoje, para pedir um Daiquiri com limão, é preciso marcá-lo pelo número 1, dado que muitos outras receitas com frutas como manga e morango pululam por aí. Ó as ideia.
Em Cuba, talvez o principal lugar para se beber um Daiquiri é o bar La Floridita – conhecido pela frase clássica de Ernest Hemingway, “mi mojito en la Bodeguita, mi daiquiri en la Floridita”. Lá, porém, a receita leva um leve toque de marasquino (nada contra, pelo contrário) e é batida no liquidificador com gelo, dando ao daiquiri certo caráter frozen… ou raspadinha. É assim que também é servido o daiquiri do Hotel Nacional, meu coquetel favorito da viagem que fiz em 2017, ainda que este não leve marasquino. Sorver aquela refrescância toda olhando o Malecón – a costa do mar ao norte de Havana – é uma experiência que eu acredito que todo mundo deveria ter, mais ou menos como aquela frase do Trotsky que diz que a revolução trará o direito ao pão e à poesia. Não foi o caso em Cuba, é verdade, mas não é por isso que a gente não deva pensar num mundo menos desigual.
Divago, eu sei. O que sei mesmo é que Daiquiri e Buena Vista Social Club parecem feitos um para o outro. Tanto coquetel quanto disco têm punch, acidez e dulçura em medidas equilibradas. Servidos no volume certo ou com a quantidade exata de gelo, são misturas capazes de refrescar corações, ao mesmo tempo em que também secam a boca pedindo mais um gole. Ao tomar um gole de Daiquiri feito com bom rum Havana Club ou ouvir os tambores do Buena Vista, a voz de Compay Segundo ou o piano de Ruben González, é difícil não sentir calor no corpo e uma leve brisa batendo nas costas.
Talvez importe pouco o fato de que ambos tenham dedos estrangeiros e, ainda assim, sejam símbolos nacionais muito fortes – na minha viagem a Cuba, era difícil passar um dia inteiro sem ouvir “Chan Chan”, “De Camino a La Vereda” ou “Dos Gardenias”. Ao contrário do que quer a esquematização contemporânea, a História vista enquanto aula-de-cursinho, as histórias das pessoas e das coisas não é exatamente linear, nem livre de interferências.
Enquanto a gente busca as raízes, pode às vezes se esquecer de que a mistura é mais interessante – e como bom fã de música criado à base de Mutantes e dos tropicalistas, sempre achei que a antropofagia é uma ideia mais legal do que o purismo exacerbado das tradições. Falar disso em meio ao imperialismo e o capitalismo sempre é complexo, mas aposto aqui minhas garrafas de rum que nem Cuba, nem quem se encantou com suas belezas, se arrepende de tê-lo feito depois de dar o play no documentário de Win Wenders. Digo mais: é justamente por gostar de misturar as coisas que a ciência por trás dos coquetéis se chama… mixologia. Então, vamos à coqueteleira… ou até ao liquidificador?
A Receita
50 ml de rum
15 ml de suco de limão
10 ml de xarope de açúcar
Como em muitos coquetéis, a proporção é a rainha para se fazer um bom daiquiri. Aqui, decidi seguir a sugestão do Difford’s Guide para o daiquiri perfeito, que é 10:3:2 (ou seja, 10 partes de rum para 3 de limão e 2 de açúcar, sendo que esse xarope de açúcar é de proporção 2 para 1). Até aí, é fácil: escolha um bom rum branco, separe seu limão e o xarope de açúcar e bata tudo numa coqueteleira com gelo. Coe bem e sirva numa taça de martini – ou, se preferir, num copo rocks com um gelão daqueles. Aqui em casa, fui de Havana Club, mas um bom Bacardí Carta Blanca fabricado em São Bernardo já faz um verão. (Inconformado como o Havana Club passou a custar mais de R$ 100 por garrafa, bicho…)
Mas dá pra complicar? Claro que dá: enquanto escrevia essa newsletter, tentei fazer meus daiquiris no liquidificador. O resultado foi um pouco aquém do que eu imaginava – é preciso dosar a quantidade de gelo a ser batido com a proporção do coquetel. Meus drinks ficaram menos raspadinha do que eu gostaria, mais líquidos – e de quebra eu ainda tive a moral de quebrar meu botão de velocidade do liquidificador no processo. Felizmente, só precisei de uma chave Philips para consertá-lo, o que me deu uma enorme alegria de resolver problemas numa segunda-feira às 23h50 da noite. A vida é besta. Prometo que seguirei tentando fazer um bom frozen daiquiri. Quando eu achar a receita certa, atualizo esse texto.
E claro, como a proporção é rainha, tudo depende de gosto dentro do seu coquetel. Há quem vá preferir mais açúcar, ou mais limão, ou um pouquinho menos de rum. Sabe qual é a magia disso tudo? É você, caro ou cara conviva, que vai descobrir sua proporção favorita – a parte boa é que dá para ir bebendo no meio da pesquisa, não é mesmo?
Reclames da Quinzena
No final de setembro, fui a um festival muito especial no Norte do Paraná: o Paraíso do Rock, que em sua 13ª edição, teve shows de bandas da Argentina, do Paraguai, do Uruguai e de vários cantos do Brasil. Um festival muito singular, cuja história eu conto lá no Scream & Yell. De quebra, lá na “firma” também tem uma entrevista com o Congadar, banda de Minas Gerais que mistura rock e congado e foi o grande destaque do festival.
Enquanto isso, no Programa de Indie, eu e o chapa Igor Muller tivemos três episódios bem especiais: um programa inteiro dedicado ao clássico In Utero, do Nirvana; um papo incrível com o Lucas Gonçalves, da Maglore, falando sobre o disco solo novo dele, Câmara Escura, e dois capítulos do nosso Túnel do Tempo inteiramente dedicados a 1998. Chega mais!
Pra fechar, não deixa de passar lá no canal do YouTube, que tem não só os vídeos do Paraíso do Rock, mas também gravações recentes de shows da Maglore, do FBC lançando o ótimo O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta, e da histórica Evinha com o Trio Esperança.
Óigame Compay: não deixe o caminho certo para correr por um atalho. Mas eu vou sempre pela praia, que é muito mais divertido.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Buena Vista Social Club, mas também de A Meeting by the River, o já citado disco de Ry Cooder. E muito pensado durante semanas de calor em Uberlândia e São Paulo, usando também aquele outro meme clássico do aquecimento global.
PS2: Essa newsletter deveria ter sido escrita na semana passada, é verdade. Mas fui acometido por uma virose enquanto estive em Uberlândia, que me deixou de molho na semana passada toda. Na verdade, até agora eu ainda não estou 100% – mas quem é que tá bem, né, gente?
PS3: Quero tentar compensar esse “pulo” de uma semana com outra newsletter pra semana que vem. Mas não prometo nada – até porque estou bem envolvido com uma matéria bem especial sobre cervejas… torcendo pra poder contar logo pra vocês.
PS4: Lembrando que nesse final de semana tem Conociendo Rusia em SP e em Porto Alegre… e que ele foi o tema da última edição dessa newsletter, viu?