#56: “São Paulo 1554-Hoje”, Joelho de Porco + Cocoricó
Inventar um coquetel novo é difícil, mas a gente tenta – até porque tem que comemorar dois anos de newsletter!
Ao longo destes quase dois anos de newsletter – a data oficial de aniversário é o próximo dia 7, domingo –, inventei muitos coquetéis. Não é exatamente uma tarefa fácil: envolve um tanto de criatividade, outro de química e um bocado de paciência. E nem sempre também dá certo. Não à toa, nos últimos tempos eu me afastei um pouco dessa vertente e preferi focar em coquetéis clássicos, ou, ao menos, em receitas que já tinham sido testadas em outras paragens. Mas pra comemorar esses dois anos, meu lado Professor Pardal voltou pra cozinha e resolveu inventar uma brincadeira com um daqueles discos de estimação da minha coleção: São Paulo 1554-Hoje, do Joelho de Porco. É um dos meus melhores argumentos pra refutar quem quer dizer que “não teve rock no Brasil antes dos anos 1980”. É ainda um disco divertidíssimo pra qualquer pessoa que tenha um mínimo de senso de humor. E uma ótima desculpa para inventar moda em cima de um coquetel clássico: o Rabo de Galo.
Este ano, ao comemorar o 470º aniversário da cidade de São Paulo, quase pareei o Rabo de Galo com o disco do Joelho, mas percebi que São Paulo 1554-Hoje era um bocado elétrico para o aveludado macio do nosso cocktail original tão defendido por Mestre Derivan. E fiquei matutando por meses que a banda de Tico Terpins e o Doutor Próspero Albanese merecia algo mais potente, mais enérgico, pra fazer jus ao seu rock tão delicioso. Passei um tempão pensando em como colocar café na fórmula mágica do Rabo de Galo – até me deparar com uma inusitada técnica de infusionar vermute com café numa cafeteira italiana.
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Sim, é isso mesmo o que você tá lendo: em vez de passar um simples cafezinho na imitação de Bialetti que tem aqui em casa, eu fervi vermute rosso e fui ser feliz. Juro que dá certo – e que tem tudo a ver com a graça avant la lettre do Joelho, uma banda que sempre esteve no meu imaginário graças à coleção de discos de Seu Capelas. A minha história com o Joelho de Porco começa em noites de sábado na minha infância, quando meu pai trabalhava a semana toda em São Paulo e aproveitava as poucas horas que a gente podia passar junto para rodar uns discos de vinil.
O Joelho de Porco também faz parte de um primeiro imaginário que eu tive da capital paulista – e se por um lado chega a ser quase inocente pensar em “trombadinhas” no Viaduto do Chá, por outro já estava ali a ideia de que era bom tocar cuidado quando eu fosse andar nas ruas do centro, algo que aconteceria pouco mais de uma década daquelas audições precoces. Por mais que a cidade tenha mudado muito em meio século, há muito no Joelho que ainda resume a experiência de viver por aqui. Além de “São Paulo By Day”, esse hino às avessas que eu já citei no último parágrafo, vale ainda conferir a poluição de “Boeing 723897” ou a “triste comédia da família paulistana que não tem praia nem montanha” em “Aeroporto de Congonhas”. Mas não é só no retrato de São Paulo que o Joelho justifica um lugar na história da música brasileira com São Paulo 1554-Hoje. Antes, vamos com um pouquinho de história.
Ou quase. Isso porque, usando as palavras do mestre Marcelo Dolabela no clássico ABZ do Rock Brasileiro, “é impossível contar a história do Joelho de Porco como uma simples história de um grupo paulistano surgido no início da década de 1970. Mais que um grupo, é uma das ideias mais fecundas do rock brasileiro. De Araci de Almeida, madrinha do grupo, ao contato com Zé Rodrix, o grupo abre-fecha seu leque de criação. A criatividade paulistana de um Juó Bananere e de um Oswald de Andrade sai eletrificada dos smokings pretos. Nada de Pós-Tropicália, Proto-Punk, Pós. Apenas Joelho de Porco”.
De qualquer maneira, vale o esforço: filho de uma família judia e egresso d’Os Baobás – que também chegou a contar em suas fileiras com Arnolpho Lima Filho, o Liminha – o baixista Tico Terpins montou o Joelho de Porco em 1972, ao lado do baterista Próspero Albanese. Os dois, além de dividirem os vocais, também são os principais responsáveis pelas composições de São Paulo 1554-Hoje, lançado apenas três anos depois. Na época, a banda tinha ainda Walter Baillot na guitarra, Flávio Pimenta na bateria (deixando Próspero livre nos vocais), Sérgio Sá no teco e Dudi Guper na percussão.
Gravado e mixado no estúdio Vice-Versa, do maestro Rogério Duprat, São Paulo 1554-Hoje era um disco bem diferente do que o rock brasileiro estava produzindo na época. De um lado, havia uma turma prog-bicho-grilo-folk, que se levava bastante a sério – e nessa turma dá até pra incluir os Mutantes, já na fase sob o comando de Sérgio Dias e muitas lisergias. Do outro, havia a turma mais roqueira pesada, como o Made in Brazil, que também se levava bastante a sério. Rita Lee e Raul Seixas, por sua vez, tinham lá seu humor, mas já estavam em outro patamar da brincadeira – e até por estarem no esquema das gravadoras, também se levavam a sério. Já o Joelho não, e se precisa de mais alguma dica vale olhar o nome da gravadora que soltou o disco dos caras: Crazy.
A verdade é que, olhando hoje, o Joelho faz parte de uma linhagem sacana do rock brasileiro, que tem antecedentes nos Mutantes e bate em gente como Língua de Trapo, Premê, Mamonas Assassinas e muito mais – sim, estou evitando falar daquela banda que começa com U, mas que era boa sim. Ah, por falar em Mutantes, vale dizer que Arnaldo Batista estava nos agradecimentos do disco, do ladinho de Araci de Almeida, numa época em que a melhor intérprete de Noel Rosa já era mais conhecida por ser jurada nos programas do Silvio Santos.
É preciso considerar que, em alguns casos, o humor do Joelho de Porco é meio bestalhão. Mas não deixa de ser extremamente divertido cantar um cacófato como “México Lindo” ou berrar “DENTISTA!” na sofrida saga de “Mardito Fiapo de Manga”. Em outros momentos, porém, a ironia fina do Joelho é uma delícia, como no paralelo das culturas traçado nas excelentes “Debaixo das Palmeiras” e “A Lâmpada de Edison” – esta, com uma das linhas de guitarras mais bonitas já feitas no Brasil até então. Isso pra não falar na forma caótica como o grupo passeia por temas como família tradicional (“Meus 26 Anos”), tédio social (“Cruzei Meus Braços, Fui Um Palhaço”) ou a almejada alimentação saudável (“Hey Gordão”).
Outra coisa que passeia pelo disco de maneira caótica são as referências, que seja em forma de paródia, colagem, metalinguagem ou citação, vão compondo uma paisagem sonora que vai muito além de uma banda de rock “farofa” ou “proto-punk”, como muita gente já tentou vender o Joelho por aí. Seja incorporando viola caipira ou mesmo modos da música rural, seja subvertendo os Beatles ou brincando com boleros, ou ainda compondo belas melodias, tem muito no aspecto musical pra quem quiser se debruçar sobre este disco do Joelho de Porco, em um equilíbrio fino, mas ao mesmo tempo um bocado maluco. E se eu ainda puder dizer mais uma coisa, preste atenção na expressividade dos vocais do Doutor e de Tico, dois vocalistas muito conscientes do poder que têm no gogó – e que eu já imitei muito debaixo do chuveiro.
Criar um bom coquetel tem um pouco disso: é preciso conhecer os clássicos e usar as referências, mas, ao mesmo tempo, não ter muito medo de subverter os cânones e inventar algo que é seu, que é próprio. É saber usar a sua expressão e às vezes dar asas a umas ideias malucas. É o que eu tentei fazer neste Cocoricó, um Rabo de Galo que, graças ao seu cheirinho de café, poderia acordar qualquer um com seu canto potente e estridente. E de uma releitura, pode virar algo completamente novo – como o próprio Joelho acaba fazendo ao pegar o humor de gente como Juó Bananere e Adoniran e botar umas guitarras bacanas na cabeça. É com essa energia que eu sigo tentando, também, descobrir novas bebidas nesta newsletter e contando pra vocês aqui no balcão. Que venham mais aniversários da Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais.
A Receita
50 ml de cachaça branca
15 ml de vermute rosso infusionado com café na cafeteira italiana
15 ml de Cynar
Assim como muitas outras invenções que eu cometi aqui na newsletter ao longo desses dois anos, o Cocoricó também utiliza uma técnica simples para modificar uma bebida: a infusão. A diferença é que, em vez de deixar o tempo destilar os sabores de erva-mate ou erva-cidreira numa cachaça, por exemplo, eu quis descobrir como funcionaria uma infusão a quente – mais rápida e potente. Afinal, como diz o Grupo Rumo, “é que São Paulo não pode parar”. E aí descobri essa técnica maluca de ferver o vermute na cafeteira italiana, que foi criada por Salvatore Calabrese pra fazer um negroni maluco, o Negroni Svegliato (não confunda com o “Sbagliato”, que virou meme faz um tempo e propõe a troca do gim por espumante).
Era tudo que eu procurava pra fazer minha receita alternativa de Rabo de Galo – e deu certo demais, com o café ajudando a realçar o dulçor do vermute e acrescentando camadas de caramelo e nuts na brincadeira. No primeiro teste, eu usei apenas cachaça e o vermute infusionado, como na receita original do Rabo de Galo. O resultado ficou desbalanceado, com muito gosto de café e bastante alcóolico. Aí voltei à proporção que muita gente adotou hoje em dia, incluindo o Cynar, e tudo ficou equilibrado.
Pra fazer o vermute, é fácil se você tem uma cafeteira italiana por aí. Encha a parte onde vai a água com vermute até a marca do bico; coloque café no meio e ferva, lembrando de apagar o fogo quando o líquido parar de subir. Transfira o vermute-café para um copo e deixe esfriar por algum tempo. Daí, você pode colocar todas as bebidas num copo com bastante gelo, num Mixing Glass ou numa coqueteleira, e mexer com uma colher bailarina. Coe duplamente para um copo Rocks, com uma pedra grande de gelo, e seja feliz com seu Cocoricó. Se quiser, pode ainda adicionar uma ou duas gotinhas de bitter de laranja, mas particularmente acho que não é necessário. Saúde!
Ah: o vermute que eu usei foi aquele Carpano que eu trouxe da Argentina, mas pode fazer com Cinzano ou Martini Rosso que vai dar bom também. Até melhor, talvez. Já o Cynar é o nosso velho de guerra, e a cachaça foi mesmo a 51 de sempre.
Reclames da Semana
No Programa de Indie da última semana, eu e o chapa Igor Muller homenageamos um disco que é favorito da casa de qualquer indie 90 que se preze: Bee Thousand, a obra-prima de Robert Pollard e seus amigos do Guided by Voices. Foi feito com muito carinho, viu?
Enquanto isso, lá no canal do YouTube tem vários vídeos do show do Ecos Falsos, banda que marcou o indie paulista no começo dos anos 2000. E tem até single novo, a deliciosa (pero triste) “Vai Virar Prédio”, que acabou de sair pela Monstro.
Nesta quinta-feira, também saiu a lista dos 25 melhores discos do primeiro semestre escolhida pelo corpo de jurados da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), do qual eu muito orgulhosamente faço parte desde o começo do ano. Fiquei bem feliz com o resultado, confere aí!
Eu vou escrever no muro que “hoje é o passado do futuro”. Espero que essa ideia maluca de escrever sobre discos e drinks me dê orgulho lá na frente.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi pensado ao som de muitas, mas muitas audições de São Paulo 1554-Hoje, a obra-prima do Joelho de Porco. Mas foi escrito em silêncio, com uma cerveja sem álcool na taça mais próxima, por ordens médicas. Ah, fica o aviso: no Spotify, São Paulo… tá como “Hey Gordão”, e com os nomes das faixas 4 e 10 invertidos. Mas tá lá pra quem quiser ouvir.
PS2: Para quem quiser saber mais sobre a história do Joelho de Porco, recomendo demais o documentário Meu Tio e o Joelho de Porco, que conta a história de Tico Terpins pelo olhar de seu sobrinho, Rafael. É não só um belo filme, mas também um ótimo apanhado sobre as diferentes fases do Joelho, que chegou a contar em temporadas futuras com o argentino Billy Bond e o mestre Zé Rodrix em sua formação, além de ter colocado Renato Aragão pra “cheirar rapé”. Dá pra ver no YouTube, mas a qualidade infelizmente não é das melhores. Torcendo que este texto chegue a algum dono de plataforma de streaming, negocie com o Rafael e a gente possa ver o maravilhoso boneco do Tico em alta qualidade.
PS3: Eu abri esse tópico só pra reprisar o quanto eu amo duas coisas. A primeira é a letra de “A Lâmpada de Edison”, talvez a minha música favorita do Joelho. A segunda é o ABZ do Rock Brasileiro, esse livro fundamental editado lá em 1986 pelo Marcelo Dolabela, que se você gosta de roque enrow, deveria ter na sua biblioteca – nem que seja pelas belas fotos e pelo maravilhoso texto de introdução do Zé Rodrix, de quem já falei aqui.
PS4: Eu espero veementemente que você faça o vermute infusionado na cafeteira italiana. Eu tô louco pra poder voltar a beber e testá-lo num Negroni. E num Adonis. E em diversas outras receitas. Acho que, com exceção da cachaça em erva-cidreira, é a infusão mais legal que eu já fiz na newsletter. Em breve virão outras.
Esta semana irei tentar essa versão do nosso "cocktail", nunca imaginei que seria possível. Belo texto. Um abraço!