#31: "Kamikaze", Luis Alberto Spinetta + Kamikaze
Uma tabelinha de homônimos entre um argentino genial e um coquetel que é o pai do Cosmopolitan e também pode virar shot.
Quando foi a última vez que você comprou um disco numa loja sem escutar antes? Eu sei, eu sei, para quem tem mais de 35 anos essa já foi uma experiência bastante corriqueira. Não é o meu caso: eu nasci em 1992 e antes de fechar minha primeira década, já tava lá baixando música na internet. Minha experiência como fã de música é quase sempre a de conseguir escutar primeiro e consumir depois. Mas, às vezes, acontece o contrário: o fato mágico de confiar em um vendedor de discos e desembolsar de surpresa ricos e suados tostões. Já contei aqui sobre como isso aconteceu há algumas semanas com o Nando Reis, mas era algo mais previsível: afinal de contas, quem é que não conhece “All Star” e “No Recreio”? De maneira que acho que a última vez que gastei um bom dinheiro comprando um disco sem nem conhecer foi lá em Buenos Aires, em 2016. Alguns diriam que é uma atitude meio kamikaze… o que até combina com o nome do disco (e do drink!) dessa semana.
Eu estava de férias na capital argentina, com o objetivo de comer empanadas, ver o Wilco, abraçar a Mafalda e, se possível, trazer para casa a maior quantidade de discos possível do Soda Stereo. Achava que seria como ir em qualquer feirinha de vinil em São Paulo e rapar a coleção do Legião Urbana. Ledo engano: camelei por 10 dias e só trouxe mesmo para cá uma edição em vinil do Canción Animal, o disco que tem “De Musica Ligera” (e muito mais). Mas nessa caminhada, acabei passando uma tarde especial na Miles Discos (hoje Smile Discos), em Palermo.
Eu buscava Soda Stereo ou Pescado Rabioso (uma das primeiras bandas de Luis Alberto Spinetta), mas os dois vendedores da loja – um moço e um tiozinho, ambos empolgadíssimos – me fizeram ouvir uma meia dúzia de álbuns do Charly García. A obra do bigode bicolor estava toda em CD, mas eu queria vinil, e aí eles rasgaram o plástico deste Kamikaze só para me mostrar a beleza das canções de Spinetta muito além do clássico Artaud. Lembro de ficar meio impressionado com “Barro Tal Vez” e “Ella También”, e meio na pressão, decidi levar o vinil pra casa.
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
❓Aqui você pode responder um questionário para contar um pouco de você e ajudar a Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais a crescer!
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
Antes de avançar, talvez seja bom explicar um pouco: ao lado de Charly García e Gustavo Cerati (do Soda Stereo), Spinetta talvez componha a espinha dorsal do rock argentino. Tendo iniciado sua carreira nos anos 1960, com a banda Almendra, ele passeou por um sem número de bandas (Pescado Rabioso, Spinetta Jade, Invisible e Spinetta y Los Socios del Deserto), além de ter feito uma excelente carreira solo. Como tantos artistas da época, começou influenciado pelos Beatles, mas avançou misturando sua música à canção de seu país, ao folk e muitos experimentos.
Minha paixão por sua obra começou ali por 2015, eu imagino, quando caiu na minha mão o petardo Artaud. O famoso disco da capa verde esquisita leva o nome do Pescado Rabioso apenas por questões contratuais; a banda já havia acabado mas Spinetta ainda “devia” um disco para a gravadora… e tinha um repertório incrível nas mãos. Com pouco auxílio, Spinetta fez ali um clássico irreparável, trafegando entre o rock, o folk, o pop, a psicodelia, surrealismo e compondo algumas das canções mais inesquecíveis da América Latina, como “Todas las hojas son del viento” e “Bajan” – e eu gosto tanto de Artaud que até já transformei meu quarto na capa do disco.
Era atrás desse disco que eu estava indo. Acabei comprando-o dias depois, em outra loja. Mas o encontro com Kamikaze foi quase tão importante quanto, exibindo um Spinetta diferente do que eu esperava. No lugar das guitarras e da potência rock, Kamikaze é um disco de canções acústicas, embaladas por violões Ovation, alguns teclados & pianos elétricos e, paradoxalmente, um pioneiro uso de baterias eletrônicas dentro do rock argentino. A princípio, o disco é uma colcha de retalhos, reunindo canções que ele fez entre 1965 e 1978, mas que não couberam em outros trabalhos. No entanto, seja pela unidade sonora dos arranjos ou pelo espírito criador de Spinetta, esse é um disco que acaba soando extremamente coeso. E parte disso se deve a uma infeliz coincidência da época: gravado em fevereiro de 1982, Kamikaze chegou às lojas dois meses depois, justo quando a Argentina se enfiava numa das maiores confusões de sua história recente: a Guerra das Malvinas.
Como uma boa obra de arte (e aqui eu lembro das discussões de “o que é arte?” das aulas de qualquer faculdade de Humanas), Kamikaze remete ao conflito de maneira ambivalente: de um lado, como bom pacifista formado na escola de John Lennon, ele não consegue compreender a natureza da guerra – e nem mesmo entender as razões de um kamikaze, o guerreiro japonês que decide sacrificar sua vida em prol da pátria, como fica claro na bela faixa-título. Por outro lado, em canções como “Aguila de trueno” (e suas partes I e II, que homenageiam o líder peruano Tupac Amaru II), ele entende a complexidade do conflito e a nobreza deste mesmo sacrifício de indivíduos comuns, frente aos poderosos.
Pesado, né? O resto do disco não facilita muito: apesar das belas melodias e da voz melíflua de El Flaco (“o magro”, em espanhol, coisa que Spinetta era muito), Kamikaze está repleto de canções soco-no-estômago. “Ella También”, a música aparentemente romântica que me conquistou na loja de Palermo, é uma canção de desilusão e isolamento que deixa até o ar rarefeito. Composta por Spinetta aos 14 anos e inspirada por Beatles for Sale, “Barro Tal Vez” é uma baita declaração de amor à música, ao mesmo tempo em que também mostra um artista extremamente desapegado às coisas terrenas. E o que dizer do título de “Y tu amor es una vieja medalla”? Ouch. Mas para quem quer algo leve, vale o aviso: presta atenção no tema instrumental “Almendra”, homenagem de Spinetta à sua antiga banda, e diz se dá pra não ficar emocionado?
À época que foi lançado, Kamikaze foi bem recebido, a despeito de nadar contra várias marés. Primeiro, a do próprio Spinetta, que se notabilizara por ser um grande guitarrista ao longo de duas décadas de carreira. Segundo, a do rock argentino de então, que tal como aqui no Brasil, recebeu uma descarga elétrica do punk e da new-wave e, com poucos recursos, fazia grandes coisas. Foi algo que nem o próprio artista esperava: parte do que o fez dar esse nome ao disco foi ter a sensação de que estava cometendo um suicídio criativo, em meio a uma época em que o mercado da música estava cada vez mais previsível. Mas tanto o disco quanto a história lhe deram razão: não só a Guerra das Malvinas levou à queda da ditadura argentina de Jorge Videla, como também o disco acabaria se provando um de seus ápices criativos, abrindo caminho para sua carreira nos anos 1980.
Quando comecei essa newsletter, confesso que já sabia que eu teria de passar por esse disco. E não é só porque Spinetta é um craque da canção pop, mas também porque eu não poderia deixar batido o fato de que o álbum divide seu nome com um drink clássico, hoje ofuscado: o Kamikaze. É uma história curiosa: o coquetel foi criado em algum momento entre os anos 1960 e 1970, quando a coquetelaria americana mergulhava em vodka. Pode parecer estranho, dado que no auge do anticomunismo, a bebida “russa” por excelência é que fazia sucesso.
Mas três fatores ajudam a explicar isso: um contrato de exportação para os EUA da Smirnoff; o fato de que a vodka tem pouco cheiro, sendo uma base ótima para a mixologia; e um certo agente especial chamado Bond, James Bond. Inspirados no vodka martini de 007, bartenders americanos fizeram a festa por décadas criando bebidas com o destilado de batatas. E uma dessas foi o Kamikaze, uma bebida que pode ser tanto servida como shot quanto em uma taça bonitona – que é o que faremos aqui. Há até quem afirme que o coquetel nasceu em uma base da marinha americana, em alusão à Segunda Guerra Mundial, mas confesso que acho que abusaram da lenda nesse caso.
Seja como for, o que sei é que o Kamikaze é um coquetel que fez muito sucesso nessa época, mas acabou perdendo popularidade. Quem lê a Meus Discos, Meus Drinks desde o primeiro texto talvez saiba o porquê: aos poucos, a mistura de vodka, triple sec e suco de limão começou a ganhar a adição de suco de cranberry. E o que era só um “kamikaze de cranberry” passou a ter nome e fama próprios: Cosmpolitan.
Tal como seu “sucessor espiritual”, o Kamikaze só parece ser um drink leve: cítrico e doce na medida certa, ele é conhecido por ser um coquetel bastante alcóolico – dependendo da diluição, normalmente passa dos 25% de nível etílico, quando a maioria das misturas gira em torno de 10% a 20%. Culpa justamente do aspecto mais “insípido” da vodca, deixando o licor de laranja e o limão passarem à frente no sabor. Quem toma um golinho pode se enganar, da mesma forma que o ouvinte incauto (ou que não sabe niente de español) ao escutar o Kamikaze de Spinetta.
Quem toma dois goles ou beberica um shot, porém, pode sentir os efeitos na cabeça ou no coração. E quem se arriscar a bebê-lo de balde ou enfileirar vários shots talvez descubra só amanhã, seja numa ressaca física ou moral, os resultados do impacto aós o choque. Qual é a medida certa? Isso depende de você, caro leitor, mas algo é certo: seja pelo disco ou pelo drink, essa é uma queda livre que vale a pena. Comprar discos no escuro? Às vezes, também.
A Receita
30 ml de vodca
22,5 ml de suco de limão (aprox. meio limão)
22,5 ml de triple sec (licor de laranja)
gelo
Assim como vários outros drinks, o Kamikaze é um típico coquetel cujas proporções podem variar ao gosto do freguês. Buscando a receita para escrever este texto, encontrei de tudo: desde essa 4:3:3, até 1:1:1 (ou seja, uma parte de cada líquido), até 2:1:1 (duas partes de vodca para uma de suco e outra de triple sec). Acabei ficando com a 4:3:3 por dois motivos: não só ela é mais balanceada para o meu paladar, como também foi a primeira proporção que eu bebi, graças ao Booze and Vinyl – no livro americano, o Kamikaze é um dos drinks de Apetitte for Destruction, do Guns and Roses.
Fazer o Kamikaze é fácil: junte todos os ingredientes numa coqueteleira com gelo e chacoalhe bem. Coe a mistura ao servir numa taça de martini ou coupé, caso queira tomar o drink no formato de coquetel. Se preferir, também dá pra colocar num copo de shot (mas tem que ser um copo ligeiramente maior que o clássico-brasileiro de 50 ml). Como eu não tenho mais 20 anos (e nem muitos de vocês), prefiro a versão coquetel mesmo. “Melhor que isso? Só dois isso”, como diria seu Capelas. Ah: aqui em casa, usei vodka Absolut e triple sec da Stock, na melhor combinação custo-benefício dos últimos tempos.
Nos reclames da semana também tem uma dobradinha de limão. Ou quase:
Para fechar o mês de aniversário do Programa de Indie, eu e Igor Muller recebemos um convidado mais que especial: Evan Dando, o vocalista e líder dos Lemonheads, que está passando uma temporada especial aqui no Brasil. Evan não só bateu um papo com a gente como também tocou algumas músicas com exclusividade nos estúdios da Eldorado, fazendo arrepiar o Capelas de 15 anos que pegava ônibus pra escola ouvindo “Rudderless”.
No último sábado, Evan Dando também deu o ar de sua graça no palco do Sesc Avenida Paulista. O Marcelo Costa escreveu sobre para o Scream & Yell e eu filmei altos vídeos do show, que você pode conferir aqui. Tem até uma versão muito especial de… “Romaria”, com o atual cunhado de Evan, Chico Teixeira.
E na Cajuína, tem dicas para quem precisa lidar no trabalho com jovens talentos, com o aval da Ana Paula Franzoti, da Unilever.
¡Spinetta vive! Saúde, senhoras e senhores, e até semana que vem.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de duas audições seguidas de Kamikaze, de Luis Alberto Spinetta. Não cronometrei, mas talvez seja o texto mais rápido que eu já escrevi para a newsletter.
PS2: Outro motivo para eu ter querido escrever sobre Spinetta nessa semana é o fato de que vou passar um mês entre Argentina e Uruguai nas próximas semanas ao lado da namorada, então a empolgação já bateu. Aproveitando: ei, você aí, você tem alguma dica de Buenos Aires ou do Uruguai? Algum rolê que eu não posso perder? Vou adorar saber nos comentários!
PS3: Falar do drink Kamikaze e de seu irmão mais novo, o Cosmpolitan, também é uma forma de mostrar para muita gente alguns dos textos mais antigos da newsletter, como o que eu fiz misturando o coquetel favorito de Carrie Bradshaw com o clássico Fruto Proibido, de Rita Lee. É também uma homenagem à nossa roqueira número-0, que está se recuperando após uma internação. Força, Rita!
PS4: Eu prometo que ainda vou parar para escrever sobre Artaud aqui. Mas não sei quando – e acho que a visita a Buenos Aires será importantíssima para descobrir novos sabores. Talvez por conta disso a newsletter entre em férias nas próximas semanas. Ou não, ainda não decidi – mas já deixo o aviso aqui para ninguém se preocupar demais.