#10:“O Passo do Lui”, Os Paralamas do Sucesso + Mojito
"Se eu queria enlouquecer, essa é a minha chance"
Nessa semana, decidi que não estou para brincadeira. Para a décima harmonização dessa newsletter, sabia que era preciso escalar dois verdadeiros camisas 10. Afinal, como diria o filósofo popular Jardel, “clássico é clássico e vice-versa”. Talvez eu esteja inspirado pelo frio que abate São Paulo e esteja buscando sons e bebidas mais refrescantes, como uma forma de atrair o calor. Ou só me deu vontade de ouvir algumas das melhores canções pop da história do Brasil ao som de um drink que costumo fazer para conquistar corações e mentes – meu sogro, que ganhou de Natal deste que vos fala uma garrafa de Havana Club, que o diga. É por isso que a dupla de hoje é o cubaníssimo Mojito e o segundo álbum d’Os Paralamas do Sucesso, O Passo do Lui, direto de 1984 para a sua vitrola.
Assim como o Daiquiri, o Hot Toddy e alguns outros drinks classudos, o Mojito tem séculos e séculos de história. A lenda reza que ele é o sucessor espiritual de um coquetel ancestral, o Draque, inventado por ninguém menos que o corsário inglês Francis Drake (sacou?). Um pirata a serviço de Elizabeth I, ele navegou os mares do Caribe no final do século XVI. Entre muitos tesouros e invasões sangrentas a locais como Havana, teve tempo de criar uma mistura de aguardente (que, sabemos bem, é feita de cana), limão, açúcar e hortelã. A mistura tinha lá seu caráter medicinal: transportada a bordo dos navios, parecia ajudar a evitar o escorbuto, uma doença que acometia os marinheiros por falta de vitamina C, entre outros males.
Por séculos, o Draque foi consumido de forma rústica, da mesma forma que a junção de rum, açúcar e limão fazia um ancestral do daiquiri no outro lado de Cuba. No entanto, ao final do século XIX, quando Don Facundo Bacardí começava a erguer seu imperio do rum, ele trocou a aguardente pela bebida de sua empresa, estabelecendo o Mojito. Há ainda quem aponte que o Mojito é uma variação cubana do americaníssimo Mint Julep, criada quando a ilha do Caribe era um playground do Tio Sam, mas sinceramente? Prefiro não acreditar nisso.
A origem da palavra é também controversa: pode ser tanto uma menção a “mojar”, verbo espanhol que tem a ver com coisas… bem, molhadas, quanto a “mojo”, termo africano que tem a ver com “feitiço”, mas que há muito faz parte do vocabulário do rock – “Mr. Mojo Risin’”, dos The Doors, que o diga. Em se tratando de Cuba, chutaria eu que as duas versões são mais que plausíveis.
Quase quatro séculos depois da invasão de Francis Drake a Havana, outra trupe de piratas ingleses saqueou o Caribe em busca de tesouros. Mas não estamos falando de ouro, prata e pedras preciosas. Sim, de música: entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980, uma série de bandas inglesas – do The Clash ao Police, passando por Madness, The Specials e até mesmo Elvis Costello – navegou por aqueles mares buscando sons que dessem nova vida à explosão punk, talvez então já um pouco desgastada àquela altura. Foram sons que rodaram muito nas vitrolinhas de três garotos que cresceram entre Brasília e Rio de Janeiro naquela época: Herbert Vianna, Felipe Ribeiro, o Bi, e João Barone.
Filhos de brigadeiro e diplomata, os dois primeiros se conheceram no cursinho pré-vestibular – Herbert tocava guitarra e foi fazer Arquitetura na UFRJ, enquanto o baixista Bi passou em Zootecnia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica. Os dois montaram uma banda com o amigo Vital Dias, fazendo pequenos shows. Num deles, em Seropédica, o baterista sumiu. No susto, para substitui-lo, apareceu João Barone, que fazia Licenciatura em Ciências Biológicas na mesma UFRRJ. A Vital, coube apenas a eterna homenagem como o herói de “Vital e Sua Moto”, hit maior de Cinema Mudo, álbum de estreia que o trio lançaria pela EMI dois anos depois daquele concerto, em 1983.
E ainda que muita gente acuse Os Paralamas do Sucesso de ser um decalque do Police e outras bandas inglesas, havia neles certa marra, certo molho que Sting e seus companheiros não tinham, algo que vinha de anos e anos conquistando as meninas do Leblon. Tal como o mojito, uma adaptação ligeira do som que saía do Caribe e passava pela terra da Rainha (opa!), mas com um sabor que é só seu.
O maior culpado pela acusação de que Os Paralamas copiam o Police chegaria ao mercado um ano após Cinema Mudo. Produzido por Marcelo Sussekind, guitarrista do Herva Doce, O Passo do Lui até parece uma coletânea de tantos hits que possui – e se você nunca se deu ao trabalho de conferir o disco, vou só dizer que é o álbum que tem “Óculos”, “Meu Erro”, “Mensagem de Amor”, “Ska” e “Romance Ideal”.
Ficar nos sucessos, porém, é pouco: é um disco que tem uma unidade quase perfeita, sendo rara a canção que dá vontade de pular na sequência. (A exceção, talvez, fica por conta da charmosa faixa instrumental que dá nome ao disco, mas como ela encerra o álbum, não há nada para se pular, só deixar a agulha rodando mesmo…a quem pergunta, aliás, vale dizer: o tal Lui é um amigo dos Paralamas). Não acho que seja à toa a história que seu Capelas sempre conta quando falamos dos Paralamas lá em São Caetano: louco para comprar O Passo do Lui, ele passou semanas almoçando cachorro quente pra juntar uns tostões de seu salário de estagiário de engenharia e levar o LP pra casa.
Não era só a sequência de hits que fazia de O Passo do Lui um disco diferente. Pode parecer esquisito hoje um disco começar com quarenta e poucos segundos de introdução instrumental, como acontece em “Óculos”, mas são justamente esses segundos que explicam o salto que o Paralamas deu. Direto da cozinha, Bi e Barone estavam ali entrosadíssimos, fazendo a banda ter um molho todo particular, um mojito.
Bem captados, baixo e bateria apareciam na cara do ouvinte, chacoalhando-o pela cabeça – sem notar que no fundo, havia ali algo diferente. Um ingrediente especial, que aos poucos ia se fazendo notar: o talento de Herbert Vianna como guitarrista, seja compondo riffs espertos, solando ou compondo ambiências. É o peso de sua guitarra, filha de um cruzamento entre Sting, Jimmy Page, Santana e Paul Weller, por exemplo, que faz de “Mensagem de Amor” uma canção que soa fresca quase quarenta anos depois da estreia.
O baixo e bateria aqui são uma receita tão manjada quanto limão, açúcar e hortelã juntos num coquetel. A guitarra de Herbert, com seu peso e esperteza, parece escondida como o álcool do rum, mas uma vez que se faz perceber, é impossível não notar. E para refrescar, se o mojito traz o gelo e a água com gás, o Paralamas traz os versos de Herbert, um letrista ao mesmo tempo sofisticado e pop, delicado e raivoso. O que dizer de um verso como “a vida não é filme, você não entendeu?”, que abre “Ska” como um soco na cara? O que é “Óculos” se não o maior hino nerd que Rivers Cuomo um dia sonhou em fazer?
Mais: John Hughes faria miséria se morasse no Leblon e pudesse colocar “Me Liga” numa cena com Molly Ringwald chorando vendo um por do sol no Arpoador. Ou Anthony Michael Hall dando um rolê de bicicleta ouvindo “Romance Ideal”. Se a vida precisa de um certo nonsense, “Assaltaram a Gramática” (com letra do incrível Waly Salomão!) está sempre à mão. E se hoje parece um saco ouvir “Meu Erro”, atire a primeira palheta quem nunca se identificou com esse refrão.
O resultado de O Passo do Lui é um disco tão fresquinho, tão redondo, que é díficil não querer ouvi-lo de novo e de novo, como é difícil recusar mais um copo de mojito em um dia de calor. (No dia que escrevi esta newsletter, ouvi o álbum quatro vezes em sequência sem reclamar). Mais que isso, há outras duas semelhanças grandes entre the second coming of Paralamas e o coquetel que Ernest Hemingway sempre bebia no La Bodeguita. (Se um dia você for a Havana, decore a frase: “mi mojito en La Bodeguita, mi daiquri en la Floridita”).
A primeira semelhança é que tanto o mojito quanto O Passo do Lui são coisas fáceis de serem mal imitadas – que o digam as rodas de violão tocando “Meu Erro” e os infinitos mojitos com Sprite que eu já tomei na noite paulistana. A segunda é que, assim como o Gin and Coke e o primeiro disco da Legião Urbana, é muito fácil se apaixonar pela canção pop e pelos coquetéis com essa dupla. É a porta de entrada para outras drogas. No caso do Paralamas, uma banda subestimadíssima, isso com certeza é assunto para outra coluna, algum dia desses. Já sobre o mojito, vale aqui a receita para se divertir sozinho em casa – ou não, dado que um mojito de jarra é, há muito tempo, o meu melhor amigo de um churrasco entre amigos. Pelo sim, pelo não, seguem aqui indicações para as duas ocasiões. Recomendo moderação, para ninguém aqui depois vir dizer que não soube o que houve de errado.
A Receita
1 dose (50 ml) de rum
25 ml de suco de limão (aproximadamente 1 limão inteiro)
15 ml de xarope de açúcar
Um ramo de hortelã
Água com gás, a gosto
Gelo para completar
Lembra quando eu falei que drinks com cítricos deveriam ir na coqueteleira? Pois é: toda regra tem sua exceção. Durante muito tempo, fiz meus mojitos batidos na coqueteleira, até ir a Cuba e ver que lá não é bem assim. No La Bodeguita, nem daria tempo: eles enfileiram tantos copos no balcão pra fazer uma linha de montagem de coquetéis que o único jeito é mexido mesmo. Claro que se você quiser fazer na coqueteleira pode, mas aqui vale o contrário do princípio de James Bond.
Para fazer um mojito, siga os passos: pegue um ramo de hortelã, tire folha por folha e junte-as na palma da mão. Dê um tapa nas folhas antes de colocá-la no fundo do copo – isso vai liberar o óleo da hortelã, deixando seu coquetel bem perfumado e gostoso. Depois, coloque o rum, o limão e o açúcar. Em termos de marcas, eu gosto muito do Havana Club 3 Años, um gosto adquirido na viagem a Cuba em 2017, quando eu e uma ex-namorada de quem já falei aqui passamos mais de duas semanas provando todos os mojitos possíveis.
No começo, eu estranhei o Havana Club, porque ele tem um gosto mais marcado, mas depois que você se entende com ele, é difícil. Se você não quiser pagar (ou estiver difícil de achá-lo por aí), tem crise não: o Bacardi Carta Blanca velho de guerra, fabricado em São Bernardo do Campo, dá certo demais (e acho simbólico um drink cubano com matéria-prima do ABC, mas talvez seja meu bairrismo). Só não me venha com Montilla porque aí é puxado, papai.
Após colocar o rum, o limão e o açúcar, vale jogar uns cubos de gelo no copo – muitas receitas pedem gelo moído, mas acho que isso deixa o mojito aguado. Depois disso, é a hora de dar uma mexidinha no copo com a bailarina. Se não tiver, tudo bem: vai de colher de sopa mesmo, que a vida é assim. E aí é só completar com água com gás, ao gosto do freguês – só tome cuidado para não usar um copo muito grande e deixar seu coquetel diluído demais.
Para quem for fazer mojito na jarra, o processo é ainda mais interessante – até porque pode seguir a proporção de uma maneira mais livre. Eu costumo temperar tudo no olho, provando até chegar no resultado certo. Os passos, em tese, são os mesmos: primeiro a hortelã, depois, rum, limão e açúcar. Às vezes, pra evitar que o drink fique muito quente, coloco o gelo junto com a hortelã para já ir gelando – até porque a jarra não costuma durar muito depois de servida.
Costumo contar até 10 para despejar 50 ml de rum – e para cada 50 ml de rum, um limão. Normalmente, para um bom churrasco na piscina, conto até 100 e espremo 10 limões. A hortelã costuma depender da paciência e da disponibilidade, enquanto o açúcar vai do gosto dos presentes, assim como a diluição da água com gás. Meu segredo aqui é ir com jeitinho, colocando a maior quantidade de rum possível, sem deixar o coquetel pesado demais, nem doce demais.
Ainda sobre mojito, uma última coisa. Eu sei, você quer saber qual é o meu mojito favorito na viagem a Cuba. Eu te respondo: foi o da Fábrica de Arte Cubano, uma espécie de Sesc Pompeia com balada – tem peça, show, exposição de fotografia, bar e lanchonete, tudo apenas por uma entrada equivalente a US$ 2 (e uma fila gigantesca pra entrar). Há vários motivos para isso: o primeiro é o tamanho: esse mojito da FAC tinha nada menos que 1 litro, custando US$ 10, mas sendo suficiente para uma noite inteira.
O segredo, porém, é que além da quantidade, o mojito da FAC era “fechado” com uma dose de rum envelhecido por cima de tudo, o que dava um tchans especial ao drink. Eu cheguei até a comprar uma garrafa desse rum velho (7 anos, normalmente) pra fazer drinks, mas não sei onde ela foi parar. Para matar a saudade desse efeito, às vezes jogo umas gotinhas de angostura no meu mojito – mas é bom tomar cuidado: afinal, desse jeito o drink corre o risco de ficar parecendo um Fitzgerald. E não há nada mais diferente que O Velho e o Mar e O Grande Gatsby…
Nos reclames da semana (isto é, as coisas que eu faço em outros lugares e acho que vocês podem se interessar), tem bastante coisa:
Nesse final de semana, tem Coala Festival em São Paulo, juntando medalhões (Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil) e “novos” nomes (Rodrigo Amarante, Marina Sena, Black Alien) em uma escalação massa. Por trás disso, uma das cabeças pensantes é o Marcus Preto, que há uma década largou a carreira de jornalista (Rolling Stone, Folha de S.Paulo) para ser um dos mais atuantes produtores da música brasileira, trabalhando com gente como Gal, Tom Zé, Erasmo, Nando Reis, até mesmo o hypado Bala Desejo. E eu e o Marcelo Costa batemos um papo loooongo com ele no Scream & Yell: pra quem gosta de música, um banquetaço de 30 páginas de Word, para se degustar com calma.
Além disso, tem um texto curto meu sobre o show de lançamento de Ofuscante a Beleza Que Vejo, disco novo do grande Jair Naves, junto de textos do Mac sobre os shows do Bruno Morais e da banda Sunday.
E pra fechar, o Programa de Indie da semana passada estava recheado de novidades – com carinho especial para “Lágrimas Brancas”, da Pelos, banda do meu querido amigo Thiago “Animal” Pereira.
Por hoje é só, pessoal. Espero que tenham gostado desse papo nessa semana – e fica a dica: se você queria enlouquecer, o mojito é o coquetel ideal. Sacou?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: A coluna dessa semana foi obviamente escrita ao som de O Passo do Lui, no repeat; mas também contou com a gentil colaboração do primeiro episódio de Masterchef Profissionais rolando no mudo, na TV. Aqui a gente não tem guilty pleasure não.
PS2: Além das versões de estúdio deste O Passo do Lui, os Paralamas tem trocentos álbuns ao vivo em que as canções desse disco aparecem. D é um registro urgente, enquanto Vamo Batê Lata talvez seja o melhor registro da banda no auge, cascuda por anos de turnê na América Latina e com Herbert tocando o fino. Mas tenho um carinho especial por Uns Dias ao Vivo, cheio de participações especiais – o DVD do show é incrível, incrível, e me fez apaixonar pelos Paralamas com consciência lá pelos 12, 13 anos de idade.
PS3: Se posso ainda indicar mais uma coisa paralâmica, vai aí: o documentário Os Quatro Paralamas, que tem na Netflix, me salvou várias vezes durante a pandemia – e até hoje contém uma das melhores respostas à pergunta “você quer ser pai?”.
PS4: E se você por acaso pretende ir a Cuba, recomendo muito que anote aí outros lugares legais pra beber mojito: o La Bodeguita é um clássico, mas meu outro favorito, um pouco exótico, era o Mojito Frozen do Esto no es un cafe, um café artsy em Habana Vieja. O melhor coquetel da viagem, porém, disparado, foi um daiquiri no Hotel Nacional, com vista pro mar. Fiquei hospedado ali perto e aquele daiquiri se tornou um segredo para encerrar bem quase todos os dias de viagem. Ainda volto pra tomar de novo. “Regresaré, ojalá algún día a la ciudad”, como diria Chico Buarque.
Pô, viajei de volta à Cuba com seu texto. E como são tristes esses mojitos com sprite.