AA UU.
Desculpem, eu estava apenas testando os microfones. É um bom jeito de começar a conversa dessa semana – na qual eu não ia escrever sobre os Titãs, mas fiquei inspirado depois da coletiva de imprensa que o grupo deu, anunciando um retorno aos palcos com a volta de Paulo Miklos, Charles Gavin, Nando Reis e Arnaldo Antunes (!) à formação, engrandecida ainda pela presença de Liminha na guitarra que era de Marcelo Fromer. E por mais que eu adore usar o Titãs de sparring, devo confessar que eu fiquei estranhamente empolgado para vê-los juntos. Mais que isso: me deu vontade de ir lá e ouvir aqueles discos todos de novo – dos incríveis aos mais temerários, e talvez nenhuma das grandes bandas dos anos 1980 nos tenha dado tantos discos dos dois exemplares.
Cabeça Dinossauro, felizmente, está no primeiro grupo – e reescutá-lo num ônibus às 18h de uma quarta-feira quente e poluída em São Paulo me deu vontade de escrever sobre ele aqui, pareando com um drink que fizesse sentido. Alguma pesquisa depois e voilá, estamos aqui com um Negroni Sour – provavelmente, o primeiro drink derivado de outro drink do qual já bebemos aqui. Quer dizer que o Cabeça Dinossauro é Beleléu, Leléu, Eu com xarope de açúcar e limão? Calma, jovem padawan: nem sempre a matemática é a ciência que faz mais sentido – e quando digito isso penso no artista da capa de Cabeça Dinossauro, baseada em gravuras de Leonardo da Vinci, um homem renascentista que se dedicou da arte à biologia, passando pela física e outras tantas áreas do saber. Bobagens, meu bem, bobagens.
O que sei de verdade é que o Titãs é uma daquelas bandas que aparentemente sempre estiveram ali. É uma banda que lembro de cantar já na primeira infância – e sei que alguns de vocês vão me chamar de jovem quando eu disser que minha primeira infância se situa entre Titanomaquia e os dois discos acústicos que a banda fez. Sei também que muita gente odeia o Acústico MTV dos Titãs, mas para mim foi um verdadeiro manual do que poderia ser esse tal de rock’n’roll enquanto eu tinha cinco anos de idade. Eu era uma criança, não entendia nada, mas músicas como “Go Back”, “Flores”, “Nem 5 Minutos Guardados” ou “Comida” ficaram guardadas na memória – especialmente quando escutadas em noites de chuva, no velho Gol vermelho (grená?) do meu pai.
Mais velho, já no colegial, lembro de fazer todas as minhas redações do terceiro colegial citando alguma música da banda – afinal, com uma banda com tantas músicas “substantivo-instituição”, não é exatamente difícil fazer isso. “Polícia”, “Igreja”, “Família”… a lista é imensa. Para quem queria passar na USP, usar a fina flor do rock paulistano me parecia uma boa estratégia. Deu certo pelo jeito errado: acho que só passei no vestibular porque eu era bom em matemática e física mesmo.
O que sei também é que, nessa época, Cabeça Dinossauro me parecia um disco muito forte. Muito raivoso, cheio de verdades contundentes. Mais que isso: até um pouco extremo, com sua forte influência do punk e do pós-punk. Até hoje, “O Que” é uma canção meio incompreensível pra mim. Ao mesmo tempo, me impressionava um pouco a facilidade que eu tinha para deglutir algumas de suas músicas – e o reggae divertido de “Família” ou o balanço inescapável de “Homem Primata” são dois exemplos rápidos disso.
Com o tempo, eu fui entendendo que havia muito mais do que aquelas guitarras angulares – ouvir Entertainment!, do Gang of Four, foi um divisor de águas na forma como eu entendia o Titãs (e outra meia dúzia de bandas do rock brasileiro dos anos 1980, importante dizer). Isso foi mais ou menos na mesma época em que todos os integrantes do Titãs começaram a sair em debandada do grupo – o que gerou minhas inúmeras piadas sobre o fim da banda. Até mesmo quando eles cometeram um disco bom nos últimos anos, Nheengatu, eu achei que estava traindo o movimento de falar mal do Titãs. Enfim…
Verdade é que Cabeça Dinossauro foi um divisor de águas para o Titãs no meio dos anos 1980. Até aquele momento, o grupo paulistano chamava mais a atenção por suas coreografias malucas, presenças no Chacrinha, pelo nome engraçadinho (lembra que eles eram Titãs do Iê-Iê?) e pelo fato de serem oito caras em cima do palco. Ok, havia hits também – e até hoje “Sonífera Ilha” é uma pop song perfeita, ainda que seja divertido lembrar que foram necessárias dez mãos para compô-la.
Ah, claro: e pelas drogas: no final de 1985, às margens das gravações de Cabeça, Arnaldo Antunes e Tony Belloto foram presos com heroína, o que marcou não só a aura pública da banda, mas também agravou suas percepções no que diz respeito a certas instituições. Não é de se estranhar que a banda tenha buscado um registro mais cru, mais esporrento – o que pode ter feito muita gente se assustar na época, mas não chega a surpreender os ouvintes mais atentos de Televisão, o disco anterior do grupo, que fracassou em vendas.
Ouvido hoje, Cabeça Dinossauro chega a espantar, mas por outro lado: ele tem tantos hits que até parece uma coletânea. “Família”, “Polícia”, “Bichos Escrotos”, “AA UU”, “Homem Primata” e a faixa-título são canções que não só eu, você e alguns malucos em música conhecem, mas quase todo mundo que viveu entre os 1980 e os 2000. São músicas que a gente ouviu tanto que elas até soam meio diluídas, especialmente porque sua força poética se dá muito mais pelo caráter direto do que por algum rebuscamento.
Por outro lado, algumas das canções menos escutadas de Cabeça Dinossauro são aquelas que têm a maior força até hoje – eu sou um particular fã de “Porrada” e de “Igreja”, esta última com lá uma certa culpa no cartório pelo meu processo de descatolicalização. É como se Cabeça sofresse do mesmo mal do qual padecem músicas como “Hey Jude”, “Pais e Filhos”, “Como É Grande o Meu Amor Por Você”. Pior: este é um disco cujas letras são quase sempre invocadas em momentos difíceis da realidade brasileira – como se isso não fosse uma redundância. E o fato de, apesar de tudo, os Titãs não terem acabado, continuando a executar essas canções num palco apenas por executar, para sobreviver, talvez deixe essas canções ainda mais esmaecidas. (Eu já vi os Titãs umas três ou quatro vezes ao vivo, e a pior de todas foi numa Virada Cultural em que eles justamente tocaram este Cabeça na íntegra de forma muito apagada).
O que me leva ao porquê de falar do Titãs hoje: certas canções, certos discos, para serem escutados, precisam de uma certa intencionalidade. Para você conseguir curti-los, é preciso querer escutá-los – quase como quem tira a poeira de algo para conseguir enxergar melhor o que é aquilo. Um certo lustro. E talvez seja por isso que eu estou tão interessado em ver os Titãs no ano que vem: além da oportunidade de assistir Nando e Arnaldo na banda (algo que eu só teria conseguido se tivesse visto os Titãs com nove meses de idade), há uma energia nova por trás disso tudo. E não é só o Titãs, eu acho, mas também o tempo que vivemos – e claro, certo sabor de nostalgia, afinal, essa newsletter falou mais de memórias que de qualquer coisa.
O que me leva também à bebida desta semana. Um Negroni Sour é uma variação de um Negroni com adição de limão, xarope de açúcar e clara de ovo (ainda que eu tenha desprezado essa última parte, como explicarei a seguir). Aliás, fica a dica: a princípio, qualquer drink com “Sour” no final deverá ter a adição de limão, xarope e clara a um destilado (ou combinação de destilados). É preciso uma certa intencionalidade para querer beber um Negroni Sour – normalmente, você vai pensar ou num Negroni, ou então num Pisco Sour, Whisky Sour ou até, sei lá, num Tom Collins. Mas para homenagear o Titãs, precisava ser um Negroni Sour, e não é só por conta dessa intenção.
Um Negroni, já falei aqui, junta o gim inglês a duas bebidas italianas – o Campari e o vermute rosso. Vou soar bairrista aqui, mas pra mim essa combinação de Campari e vermute tem cheirinho de Mooca, tem cheirinho de São Paulo, e enquanto o Ira! seja mais declaradamente paulistano, o Titãs é uma banda paulistana por excelência. (É até engraçado comparar seu jeito “mêo” com a malemolência dos Paralamas, por exemplo, que tem matrizes muito parecidas). O gim inglês, por sua vez, se explica diretamente pela influência do pós-punk no som do grupo, mas não só – muito do reggae que o Titãs toca não veio só da Jamaica (e a versão de “The Harder They Come” transformada em “Querem Meu Sangue” não deixa mentir”), mas também da leitura inglesa sobre o reggae.
Esses elementos, porém, sozinhos, não explicam o Titãs, como talvez o Negroni não seja o drink mais palatável do mundo para qualquer paladar – até hoje me surpreende como esse coquetel não só virou hit como também fez muita gente começar a tomar Campari e vermute. Seja como for, é preciso de algo que deixe os Titãs mais palatáveis: e aí está tanto a função do açúcar, que faz uma música como “Família” parecer… bem, família, quanto a do limão, que dá certa refrescância às porradas desferidas pelo grupo neste disco. E taí uma piada: o Sour é mais macio que o Negroni, uma acusação que muita gente pode fazer aos Titãs, ainda que passe longe de ser pop macio chiclete.
E essa talvez seja também outra piada: um Negroni Sour é um coquetel incomum, pouco apreciado, mesmo sendo mais fácil de beber que o drink que lhe deu origem. Assim como hoje tem muito mais gente homenageando Itamar Assumpção do que os Titãs – duas faces diferentes de uma mesma época da mesma cidade, da mesma cultura. Duas visões que parecem próximas e distantes, mas que fazem parte do que a gente é nessa cidade cheia de fumaça. Se tudo der certo, outras tantas virão. Saúde – e espero que a gente se veja ano que vem, no estádio do Parmêra.
A Receita
22,5 ml de gim
22,5 ml de Campari
22,5 ml de vermute rosso
30 ml de suco de limão siciliano (equivalente ao suco de meio limão)
15 ml de xarope de açúcar
Eu tomei como base a receita de Negroni Sour que encontrei no Difford’s Guide, possivelmente o melhor endereço da internet para se pesquisar drinks de maneira ampla. Digo apenas possivelmente pois como é um site gringo, certas instruções que eles dão simplesmente não se adequam à realidade brasileira – sei lá quantos coquetéis que pareciam legais eu já evitei porque eles tinham toranja na receita, uma fruta chatinha de achar por aqui. No caso desta receita aqui, porém, fiz duas adaptações importantes.
A primeira é que eu tirei a clara de ovo. Pode chamar de preguiça, e é verdade: separar gema e clara é um negócio que já fez a alegria de muita gente (sabia que o Pastel de Nata e o Quindim existem por causa disso?), mas não a minha. Além disso, a chance de dar errado é alta. E eu não bebo o suficiente (apesar de parecer) para justificar ter clara de ovo pasteurizada na geladeira – a saída mais usada por bares profissionais para não ficar quebrando ovos toda hora. A outra adaptação foi que eu bati só uma vez, com gelo – afinal de contas, “faz calor em São Paulo e pra mim tá sempre bom” assim.
No mais, acho que é simples: fazer este Negroni Sour é basicamente colocar todos os ingredientes de uma vez só na coqueteleira e bater com gelo. Aqui em casa, usei gim Beefeater, Campari e vermute rosso Martini. Por incrível que pareça, não foi díficil obter limão siciliano – no mercado aqui perto de casa, o quilo dele tá mais barato que o do limão taiti, um daqueles sinais de que tem algo bem errado com a nossa economia (mas cê jura, Bruno?). Já o xarope de açúcar é aquele mesmo que eu tenho na geladeira em casa sempre (e se você precisa da receita, segue o link lá no final do texto do Macunaíma). Depois de bater, é só coar e servir numa taça de Martini. (O Difford’s usa Coupé, mas achei que era chiqueza demais para um disco de rrrock, mêo).
Vamos aos reclames da semana? Bora lá:
No Programa de Indie, eu e o Igor falamos do nosso tema favorito há algumas semanas: O Brasil Feliz de Novo, numa playlist que juntou Daniela Mercury com Cartola, Revelação com Planet Hemp, Cascadura com Djonga e muito mais.
Por falar em Programa de Indie, deixo aqui um convite: semana que vem, na terça (22), enquanto a TV mostra França e Austrália, eu e Igor estaremos ao lado de Emanuel Bomfim e Leandro Cacossi no Fim de Tarde para bater um papo e ouvir as canções da Dingo, banda gaúcha que acaba de soltar o ótimo A Vida é Uma Granada. Você pode acompanhar ao vivo na rádio 107.3 FM, no site da Eldorado ou no seu aplicativo de rádios favorito. E prometo que chega em breve a versão no streaming. Enquanto isso, vai aquecendo com o disco.
Outro convite é que semana que vem tem Bailindie de Copa do Mundo aqui em São Paulo – e tem promoção rolando lá na página do Programa de Indie no Instagram caso você queira ir com a gente na nossa caravana. (Aliás, cê já segue o programa? Não? Ô cacete…)
Além disso, tem um papo meu bem bacana sobre liderança e gestão, impacto e saúde mental com o chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, lá em Cajuína. Sei que não é o tipo de coisa que eu compartilho aqui, mas acho que pode ser bem legal.
Por fim, vou reprisar aqui a indicação para você ler a cobertura especial que eu, Renan Guerra, Marcelo Costa, Manoel Magalhães e Janaina Azevedo fizemos do Primavera Sound lá no Scream & Yell.
Pra fechar, deixo vocês com outra grande canção de Cabeça Dinossauro, talvez a que melhor previu a era do burnout: “Tô Cansado”.
“Tô cansado de trabalhar
Tô cansado de me ferrar
Tô cansado de me cansar
Tô cansado de descansar”.
Nada não, foi só uma semana corrida. Mas lá vem outra e outra, até que a gente ache que pode parar – e não para não. Nos vemos na semana que vem.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Cabeça Dinossauro, do Titãs, entre uma viagem de ônibus da rua Cenno Sbrighi até a Santa Cecília, e também na madrugada de quarta para quinta-feira. Eu juro que queria retomar o ritmo de escrever esta newsletter sem ser na véspera, mas não tá rolando. Quem sabe… bem, sei lá.
PS2: Não quero criar expectativas, mas meu plano para semana que vem é trazer outro guia de compras, tipo o que eu fiz com itens de bar. A ideia? Ajudar a você a gastar a primeira parcela do 13º salário e aproveitar as promoções da Black Friday para equipar seu bar. Para quem quiser já ir fuçando algumas coisas, eu fiz uma thread no Twitter com algumas ofertas que andei vendo por aí.
PS3: Torçam para eu conseguir o ingresso para ver o Titãs. E para eu conseguir entregar todos os textos que eu preciso entregar nesta semana. São pelo menos oito (e seis já foram), mas ainda falta. Espero que meus dedos ainda saibam digitar até o fim de semana.