#57: “Realidade: Ao Vivo em Manaus”, Marília Mendonça + Pinga com Mel
Uma carta de amor para uma das cantoras que mais ouvi nos últimos anos – e um pedido pra que você também abra um espaço no seu coração para a Rainha da Sofrência
Onde você estava quando Marília Mendonça morreu?
Não franza o cenho, caro leitor. Se você não gosta da Rainha da Sofrência, eu tenho uma missão hoje: te convencer a pelo menos dar uma chance para uma das minhas cantoras brasileiras favoritas dos últimos anos – pra quem duvidar, puxo minha cédula de votação no Prêmio Scream & Yell de 2019, colocando “Todo Mundo Vai Sofrer” entre as minhas favoritas daquela temporada.
Por isso, repito: onde você estava quando Marília Mendonça morreu, no dia 5 de novembro de 2021? Eu lembro bem. Era uma sexta-feira e eu estava trabalhando remotamente num Airbnb alugado no bairro de Santa Mônica, em Uberlândia, esperando a
chegar para passarmos a noite juntos. Isso pode parecer trivial hoje, em que ela mora a dois quarteirões de casa, mas na época não era.Estávamos apenas nos vendo pela segunda vez naquele final de semana prolongado, depois de uma correspondência romântica via Twitter de meses e um “eu te amo” dito entre máscaras na minha primeira ida ao Triângulo Mineiro, no final de setembro (e com apenas uma dose de vacina no braço). O prognóstico era bom: fazia calor, tínhamos um final de semana todo pela frente e apenas uma enorme vontade de, digamos assim, nos conhecermos melhor.
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Vale dizer aqui que aquele fim de semana era um oásis em meio a tempos complicados. A Anna se aproximava dos meses finais para escrever sua dissertação de mestrado. Já eu começava a entender que, trabalhando em um fundo de investimentos de startups, estava vivendo meu segundo burnout em dois anos, depois de largar o jornalismo de redação. Poucos dias, aliás, me separavam da tarefa mais difícil daquele período: liderar a divulgação de um novo fundo da gestora, com entrevistas para veículos brasileiros e gringos. Se alguém me perguntar porque eu não trabalho com assessoria de imprensa hoje, a resposta “é que me ataca a ansiedade” começou a surgir naquela semana.
A notícia da morte de Marília caiu como uma bomba, em meio a intermináveis reuniões de ajustes dos comunicados que faríamos na semana seguinte. Meu primeiro pensamento instantâneo foi de choque. O segundo foi de pensar que nunca ia conseguir me fazer cumprir uma promessa feita durante a pandemia – ver um show dela assim que os shows voltassem a existir. O terceiro veio na forma de acolhimento, tentando lidar não só com os meus sentimentos, mas também com os da Anna, outra fã renitente da Rainha da Sofrência. O que era para ser uma noite animada virou algo maior, que nos uniu de uma forma que não sei explicar até hoje. Ou melhor, sei: entre abraços e carinhos vendo “Crepúsculo” (o tipo de filme idiota que se pode assistir num dia como esses), criamos um elo diferente – e que permanece conosco até hoje, prestes a completar três anos de namoro.
Pensei muito em Marília Mendonça nas últimas semanas não só por conta da coincidência da data, mas também por um outro acaso. Em meio à vida de freelancer, surgiu uma oportunidade inesperada de entrevistar a diretora do Spotify na América Latina acerca dos 10 anos da empresa no Brasil para a Exame – a pauta sai em breve, promete a editora. Depois de um papo de uma hora, acabei recebendo o convite para o “show do sábado”.
Aceitei, mesmo só descobrindo horas depois que se tratava de This is Marília Mendonça, não só o maior evento do Spotify no ano, mas também um tributo à cantora que mais recebeu execuções na história do serviço de streaming nesta Terra de Santa Cruz. Anna infelizmente estava em Uberlândia para votar no dia seguinte, de maneira que fui sozinho ao Allianz Parque conferir gente que nunca imaginei testemunhar num palco na frente – sim, estou falando de Alok, Luísa Sonza, Jão ou um sem-número de artistas sertanejos, alguns até então desconhecidos pra mim.
Não vou me estender aqui sobre o show em si, porque fiz minha parte na crítica para o Scream & Yell e também registrando lá no canal do YouTube. Mas ele me fez pensar em algumas coisas. A primeira surpresa que tive no estádio da Pompéia foi a quantidade de canções que eu, mesmo sem saber o nome, sabia cantar – talvez fruto do inconsciente ligado no rádio dos motoristas do jornal, obedecendo a uma regra pessoal de nunca mudar a estação do trabalhador ao meu lado. A segunda foi perceber que era possível aprender a cantar rapidamente os refrãos que eu não sabia até aquele instante em poucos segundos. E a terceira foi entender que, a despeito da popularidade ou da qualidade A ou B das releituras, ninguém que subiu naquele palco naquele dia entendeu o que Marília tinha entendido.
“Capaz de colocar invenção na linha de montagem”, como bem definiu Maurício Pereira, Marília é uma artista de nível raro no Brasil: aquela capaz de se comunicar com seu público em uma sintonia muito fina. Vejo nela uma semelhança muito grande com outro monarca da música brasileira – o rei Roberto Carlos. Seja compondo ou escolhendo canções de outros artistas, muitos deles desconhecidos em meio à engrenagem do pop, Marília e Roberto foram capazes de traduzir sentimentos universais para o coração dos brasileiros.
Mais que isso: ambos compartilham uma certa timidez, uma beleza não óbvia, um charme que precisou se descobrir. É claro que você pode dizer que ambos também devem seu sucesso à indústria da época – e entre programas de TV, truques de rádios, playlists, discos de inéditas ao vivo e agrojabá, sou forçado a concordar. Mas nem todo cantor da Jovem Guarda é o Rei, nem toda cantora do feminejo (um rótulo lá meio besta, mas que o valha) se provou tão longeva quanto Marília.
Gosto muito ainda de entender que, em meio a uma estrutura tão calculada, Marília foi uma artista capaz de gestos fora do desvio-padrão. O exemplo mais óbvio é sua postura nas eleições de 2018, um raro nome do sertanejo ao aderir ao “Ele Não”. Mas gosto mais ainda de outras ideias, como o projeto Todos os Cantos, registrando canções em shows em diversas capitais, muitos deles surpresa e gratuitos, ou da capa do single “Foi por Conveniência”, inspirado no clássico Night Hawks, do pintor americano Edward Hopper.
Depois do show do Allianz, mergulhei em seus discos – e talvez daí tenha pinçado a ideia de escrever uma newsletter sobre ela, algo que me pareceu diferente da receita de quase todo balcão. Foi uma tarefa caótica: assim como os primeiros discos de Roberto, os álbuns de Marília carecem da estrutura “álbum”, sendo muito mais um veículo para diferentes canções tentarem chegar às paradas de sucesso. Ainda assim, tomei a decisão de escolher este Realidade: Ao Vivo em Manaus, um disco que já tinha rodado muito no meu streaming há algum tempo.
Ele não contém minha música favorita de Marília (“Todo Mundo Vai Sofrer”, com sua ciranda elegante e um refrão digno de canção dos Smiths), mas contém algumas das músicas que mais cantei ao longo dos últimos anos. “Eu Sei de Cor”, por exemplo, foi uma faixa que me acalentou o coração meses depois do pedido de namoro pra Anna, quando cada um no seu canto, sofríamos que nem doidos sem saber pedir ajuda nem dar apoio – ela com um burnout por causa do mestrado, eu tentando segurar as pontas até conseguir pedir demissão para me cuidar. Da minha ignorância, eu achava que a falta de resposta era desimportância, e berrava “vai deixando a gente pra outra hora” no meu apartamento aqui na Santa Cecília. (Calma, gente, tá tudo bem agora, já passou).
Realidade também tem “De Quem É A Culpa”, que tem o matador verso “me apaixonei pelo que eu inventei de você”. Tem “Saudade do Meu Ex”, talvez o melhor slogan político que tivemos em 2022 – e, curiosamente, ausência sentida no show do Allianz, realizado às vésperas do primeiro turno das eleições de 2024. Tem “Amante Não Tem Lar”, um excelente storytelling da mulher que decide contar tudo para a “corna”, com outro verso arrasador (“amante nunca vai ser fiel/amante não usa aliança e véu”). Tem a deliciosa “A Gente Não Se Aguenta”, pra justificar aquele romance microondas que tanta gente adora viver. E se precisar de mais outro verso incrível, tem “Eu Não Sou Novela” (“é que eu não sou novela/por favor não me acompanha”). Para ser quase perfeito, só faltou ter outro hit da fase inicial de Marília, “Infiel” (completa aí: “eu quero ver você morar no…”) – embora a versão portuguesa do CD tenha saído com essa faixa extra lá na terrinha.
Tem muita coisa incrível ainda na discografia de Marília – “Supera” e seu refrão #sororidade, a sensual “Como Faz Com Ela”, a balançada “Apaixonadinha”, “Abandono de Incapaz”, “Presepada”. Até cogitei fazer uma playlist pros neófitos, mas não me julguei competente à altura. A despeito de ter ouvido bastante, ouvi quase sempre as mesmas faixas (que citei acima). Sinto que ainda há mais o que descobrir em Marília, mas precisava vir aqui contar pra vocês no balcão e compartilhar a continuidade dessa nova-velha paixão. Até porque sei que vai ter gente aqui nos comentários com mais bagagem que eu.
E pra ornar com essa conversa toda, precisava pensar numa bebida que encarnasse a sofrência de todos os cantos. Acho que não encontrei nada melhor que a boa e velha combinação de Pinga com Mel e Limão. Algo que na juventude eu chamava de PML e era fácil de achar em qualquer boteco a preços módicos. É uma receita tão clássica que está em todos os cantos, acessível a todos os bolsos e pronta para ajudar qualquer tipo de coração partido – não à toa, suas propriedades “medicinais” são citadas como um dos antecedentes da Caipirinha. Tal como um chifre, a Pinga com Mel é também algo que se você ainda não descobriu, talvez descubra um dia. E se você nunca sofreu ouvindo um modão bebendo algumas doses de Pinga com Mel, talvez ouso dizer que você não tenha sofrido. (Pode até dizer que já tomou a versão gourmet da brincadeira, a Busca Vida, que tem a vantagem de ser já vendida engarrafada e pronta pra ficar no congelador esperando a próxima decepção amorosa).
Não que eu possa falar sobre isso recentemente: não só estou prestes a completar três anos de namoro, como até me sinto confortável em dizer publicamente que nunca foi tão gostoso namorar. Mas quando ouço as canções de Marília, parece que essa realidade deliciosa se esvai – e por dois ou três minutos, me transporto para um universo paralelo de traições, romances perdidos, desencontros e caos. É esse o poder das grandes canções – e por conta delas vale a pena continuar escrevendo e bebendo com vocês. Vamos em frente.
A Receita
25 ml de cachaça
15 ml de suco de limão (meio limão espremido)
7,5 ml de xarope de mel (3 partes de mel para 1 de água)
Vou confessar que louvei a pinga com mel e limão do boteco, mas na hora da receita recorri mesmo ao bom e velho Difford’s Guide, que recomendou a proporção acima. A sugestão é tomar como um shot, mas seguindo minhas próprias guias de beber menos, degustei apenas uma receita para escrever esse texto ao longo de quase duas horas. Deu bem certo.
Fazer o xarope com mel em grandes quantidades pode ser uma boa ideia se você estiver planejando receber amigos, sofrer em demasia ou testar outros drinks com o mesmo ingrediente – caso do Gold Rush, que também leva mel e é uma delícia. Agora, se você vai fazer apenas uma ou duas receitas por vez, pode fazer a diluição na própria coqueteleira: adicione uma colher de sopa de mel, mais 2,5 ml de água e corre pro abraço. Quer dizer, calma: adiciona também a cachaça (aqui fui de 51, mas Kariri também é sucesso) e o limão, com duas ou três pedras de gelo. Bate tudo bem e coloque num copo baixo. Minha intenção era estrear meus copinhos marajoaras por aqui, mas me dei conta que eles não são transparentes, por isso adaptei o copo de licor da minha adega para o drink de hoje.
Ah, e fica a dica: se você tiver preguiça disso tudo, também vale a pena comprar Busca Vida. Não é só uma bebida que eu adoro, como também tem um sabor especial ao me lembrar de Bragança Paulista. Pena que a garrafa inflacionou bastante nos últimos anos (mas se achar por uns 40-50 reais, pode comprar que é garantia de sucesso na sua festa ou churrasco).
Reclames da Semana
No Programa de Indie da última semana, eu e o Igor Muller reeditamos uma bem sucedida parceria com a Balaclava Records: desta vez, mergulhamos a fundo na jornada do Dinosaur Jr., estrela do Balaclava Fest que acontece no próximo dia 10 de novembro. Ah: e se você ainda não comprou seu ingresso, anota aí o cupom: PROGRAMADEINDIE, com 20% de desconto pra curtir o festival – que tem ainda Ana Frango Elétrico, Badbadnotgood, Water From Your Eyes e muito mais!
Lá no canal do YouTube, tem vários vídeos do show do Paul McCartney, que eu vi deliciosamente na última semana no estádio do Parmêra. Cola lá.
No último final de semana, o lugar em que eu mais trabalhei na vida – o Link, editoria de tecnologia & cultura digital do Estadão – completou 20 anos. Fiz parte de oito temporadas ininteruptas, além de diversas participações especiais recentes. E a mais recente delas foi uma colaboração afetiva em que analisei os anos em que fui editor do Link, num texto construído a oito mãos ao lado dos chefes Camilo Rocha e Claudia Tozetto, e também do Alexandre Matias, que editou o caderno antes de eu chegar por lá. Confere aí.
No Scream & Yell, tem uma entrevista minha com as Fin del Mundo, banda argentina charmosíssima que acaba de lançar o excelente Hicimos Crecer un Bosque, um dos discos ruidosos mais legais do ano.
E pra quem vota em São Paulo, não preciso nem dizer: domingão é BOULOS CINQUENTA.
Daqui a duas semanas eu volto ao balcão. Cuidem-se bem, viu?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Realidade – Ao Vivo em Manaus, de Marília Mendonça, bem como de Todos os Cantos. Também escutei algumas vezes os vídeos do show que fiz no canal do YouTube (recomendo muito as versões do Péricles para “Presepada” e da Ludmilla para “Todo Mundo Menos Você”).
PS2: Posso deixar aqui um spoiler? Na próxima edição da newsletter, vou trazer o primeiro disco anglófono da nossa história. Mas prometo que é por uma boa causa.
PS3: Queria ainda agradecer muito aos comentários da newsletter da semana passada. Se eu já queria retornar ao balcão, receber o carinho e o cuidado de vocês, a identificação de muita gente, foi algo ainda mais bacana para querer voltar a escrever por aqui. É o “salário” mais bonito deste bartender e espero que a gente possa dividir tempos menos sombrios em breve.
Cara, pasmem, eu estava na repartição quando chegou a notícia, que a primeiro momento não causou nada além do impacto já existente em um acidente desses. Essa foi a hora zero da minha admiração pela Marilia Mendonça, que antes disso era mais um meio a tantos outros nomes sertanejos que acabava ouvindo nos churrascos da vida.
Já em algum jornal vi alguns fãs chorando e cantando Flor e o Beija-flor e me encantei por essa canção tão forte. Depois a cada nova música que eu gosto, detalhe das histórias dela, mais fico triste de não ter vivido e acompanhado esse fenômeno.
Fun fact: se foi proposital ou se foi so coincidência nao sei mas o texto veio no dia do aniversario de manaus (24/10), 355 anos.
Ainda lembro até hoje do dia que ela fez o show gratuito aqui por conta do projeto de Todos os Cantos, eu nao fui porque bem sincera só conheço uma musica ou outra mas tenho amigos que foram e ainda lembro bem do alvoroço do dia. Da mesma forma, ainda tenho muito bem marcado, infelizmente, o dia do falecimento dela.