#49: “Amoroso”, João Gilberto + Amaretto Sour
Das coisas que aprendi com o fim dos verões na minha vida, com a obra-prima de um João Gilberto maduro e com um drink amendoado e refrescante.
“Na dúvida, fale sobre o tempo” – é assim que se encerra o primeiro capítulo de uma das histórias que mais marcaram a minha adolescência: a série Um Adolescente Nos Anos 80, do
, em que cada capítulo é embalado por uma canção daquela década específica. Nos anos 2000, as estações eram bem demarcadas em São Paulo, com calendário e termômetro funcionando juntos tal qual queijo com goiabada. Talvez em 2024 falar das estações já não tenha tanto sentido assim, ainda mais com o calor intenso dos últimos dias, mas… não pude evitar a chance de usar o fim do verão e o começo do outono como gancho. Ainda mais quando o assunto é um dos meus discos favoritos da vida, que embala romances e corações partidos desde meus 13 ou 14 anos: Amoroso, de João Gilberto. Para combinar, escolhi um coquetel que traz em sua essência a refrescância do verão, ao lado de sabores castanhos que já pedem um casaquinho, por favor – talvez um wishful thinking?É também a primeira vez que decido repetir um artista aqui na Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Mas consigo enxergar poucos nomes que mereçam tanto a honraria quanto João Gilberto, um homem sobre cuja importância eu já me derramei no começo de 2023, em um texto que mixava o álbum de estreia Chega de Saudade com um chopinho Brahma. Quase duas décadas – e muitas histórias maravilhosas – separam aquele novato João Gilberto com um suéter e um muxoxo do homem que gravou Amoroso, lançado em 1976.
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Àquela altura, João Gilberto já era um artista consolidado internacionalmente, com alguns Grammy nas costas, dois casamentos, dois filhos e pelo menos três fases diferentes em sua carreira. A saber:
a primeira contempla os três primeiros discos, gravados ainda no Brasil pela EMI-Odeon, com muita proximidade do maestro Tom Jobim;
a segunda passa invariavelmente pela parceria com o americano Stan Getz;
e a terceira, já mais “filosófica”, inclui os discos En México e o mítico “álbum branco”, o autointitulado João Gilberto, de 1973, em que o violão de João é mais do que nunca um protagonista absoluto.
Gravado nos estúdios Rosebud, em Nova York, Amoroso parte para uma direção completamente diferente. Basta escutar os primeiros segundos de “S’Wonderful”, a faixa de abertura do álbum, para entender do que estou falando: o violão de João está lá, bem como seu canto, mas ele divide muito espaço com os arranjos orquestrais tramados pelo alemão Claus Ogerman, que já havia trabalhado com Tom Jobim em discos de diferentes orientações estéticas – do songbook com Frank Sinatra (Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, de 1967) ao majestral Urubu, de 1976. Não é um demérito: os arranjos de Claus Ogerman dão justamente a cama para que João brilhe de uma forma inédita, tão expressiva quanto comercialmente palatável – tanto que Amoroso também marca a volta de JG às paradas de sucesso brasileiras depois de um bocado de tempo.
Antes de falar do repertório, vale a pena também direcionar seus ouvidos para dois elementos marcantes do disco. O primeiro é a percussão, dividida pelos bateristas Grady Tate e Joe Correro e pelo percussionista Paulinho da Costa – repare, por exemplo, no balanço de “‘S Wonderful”, um clássico dos irmãos Gershwin, ou na forma como a bateria tocada com vassourinha marca o tempo na italiana “Estate”. O outro é a voz de João Gilberto, que se divide magicamente entre canções em língua estrangeira (além das duas já citadas, há ainda “Besame Mucho”, em espanhol) e músicas em português, quase todas elas da lavra do maestro soberano. Não importa muito o idioma, João domina tudo e lhe dá novas características – e em vez de discorrer sobre isso, vou aqui recorrer ao clássico texto de Nelson Motta na Discoteca Básica da revista Bizz.
“Quando canta ‘‘S Wonderful’ e se ouve, pela primeira vez, o sotaque baiano de João, é quase engraçado. Mas logo se descobre que nada ali é acaso ou limitação. Ou alguém é capaz de imaginar que, sofisticado como é, com o mitológico ouvido que tem, João não seria capaz de reproduzir com precisão absoluta as sonoridades da letra original? Mas não: ele preferiu uma maneira de dizer a letra onde as palavras inglesas soassem como se brasileiras fossem - em rigorosa harmonia com o ritmo e o clima sinteticamente brasileiros que ele criou com sua voz, violão e gênio. Uma das expressões máximas das práticas (teorias) de antropofagia cultural de Oswald de Andrade. E da ‘universalidade do regional’ de Mário de Andrade. Assim, um clássico do melhor jazz americano, uma canção já mil vezes cantada de mil formas, não só resulta e soa como nova na interpretação de João como indiscutivelmente brasileira, inclusive a letra em inglês.”
Bonito, né? Tão bonito é olhar para o que João está cantando – e seria muito simples dividir este repertório apenas entre canções de coração partido e exaltações do amor. Por que elas são mais que isso: são um tratado de como o tempo é uma das forças motrizes do romance. De um lado, há “Estate”, canção popular italiana dos anos 1950, em que o personagem principal pragueja contra os dias quentes, hoje já distantes, em que ele tinha um amor. Do outro, há “Besame Mucho”, bolero da mexicana Consuelo Velásquez cuja urgência parte justamente da noite de despedida, do impasse do amor que pode não existir amanhã – como o amor de verão que todo mundo já deixou junto ao mar ao menos uma vez.
Já “‘S Wonderful” vai para outro lado: a alegria em perceber que o amor existe (e talvez, mais que isso, sua resistência ao tempo fugaz) – e que deleite é ouvir João cantar a frase “you make my life so glamorous”. No meio delas, há também “Caminhos Cruzados”, talvez o melhor argumento para a complicada tese de que “só um novo amor pode a saudade apagar”, numa das melhores composições da parceria Jobim-Newton Mendonça – e olha que a briga é dura com “Meditação”, “Desafinado” e “Samba de Uma Nota Só”. O mesmo otimismo está lá também em “Wave” e o indefectível verso “é impossível ser feliz sozinho”, mas não dá para dizer o mesmo quanto a “Triste”, por motivos óbvios. E muito menos quanto à incomparável versão de “Retrato em Branco e Preto”, aqui chamada pelo nome de “Zingaro” – e se você não se comover com a performance vocal de João Gilberto nestes seis minutos de canção, eu autorizo você a parar de assinar essa newsletter.
Durante os pouco mais de 40 minutos em que Amoroso roda na vitrola, quase sempre sou teletransportado para um lugar diferente de onde estou: um quarto aconchegante, com janela pro mar, em que dá pra ver o vento e a chuva influenciando as ondas batendo nas pedras. Pode ser apenas o final de um dia abafado após calor extremo, pode ser o fim de uma estação, ou mesmo uma memória na cabeça enquanto o carro passeia pelas curvas da Anchieta de volta pra casa (no meu imaginário, praia é quase sempre na Baixada Santista). Perceba você que esse local de imaginação pode ser triste ou feliz, otimista ou solitário, romântico ou pessimista, a depender do que lhe acompanha. Talvez o que mais me chame a atenção no conteúdo dos sulcos de Amoroso é a forma como João Gilberto exibe que cada sentimento não é único em si, mas sim múltiplo e interdependente do que está ao redor. É educação sentimental na veia, mas com rara elegância.
Talvez seja justamente esse o fator que mais aproxime Amoroso do Amaretto Sour que decidi aqui dividir com os convivas: essa capacidade de conter, dentro de um copo ou de um disco, sensações que não são apenas múltiplas, mas que ao se contrastarem, também se tornam mais intensas. Um drink só amendoado ou só ácido talvez fizesse pouco sentido para um disco tão emocionalmente variado, mas a combinação do limão com a doçura do Amaretto muda as coisas de patamar, realçando sabores.
Quiçá apareça aqui o mesmo desafio sinestésico que faz tanta gente gostar de um dia frio, mas com sol aberto, ou de uma noite de temperaturas amenas para aconchegar os corpos após horas de calor intenso. É na graça da alternância das coisas que está a beleza – e se talvez as mudanças climáticas já não nos deixem mais perceber isso pela temperatura lá fora, que bom que ainda há João Gilberto pra ensinar esse tipo de lição pra gente. Mais uma vez, obrigado, mestre – e não só por me salvar mais uma vez quando eu não sei o que dizer.
A Receita
40 ml de bourbon
20 ml de Amaretto
20 ml de suco de limão
um jato de Angostura (bitter aromático)
15 ml de clara de ovo (opcional)
Antes de explicar a receita, um pouquinho de história. Em sua versão original, criada ali no meio dos anos 1970, o Amaretto Sour continha apenas três ingredientes: Amaretto, suco de laranja e sour mix (uma mistura pré-pronta de suco de limão com xarope de açúcar). Era um coquetel da era das Discotecas, extravagante como os passinhos de Tony Manero ao som dos Bee Gees.
Com o tempo, o suco de laranja caiu em desuso e o Amaretto Sour chegou à sua primeira fórmula, com 60 ml de Amaretto, mais limão e xarope de açúcar batidos com gelo. A mudança de receita, porém, não foi suficiente para tirar do coquetel a fama de decadente nos anos 1990 e 2000, até que o bartender Jeffrey Morgenthaler resolveu fazer ”o melhor Amaretto Sour do mundo”, inserindo clara de ovo, xarope de açúcar, bourbon e angostura na mistura. Se você fala inglês (ou lê, ao menos), vale demais ver o vídeo dele contando a história (e explicando porque ainda é a mesma receita mesmo com tanta mudança).
Mas a versão de Morgenthaler é um bocado complicada de seguir aqui no Brasil – especialmente porque ele usa uísque de altíssimo nível alcóolico, em torno dos 70%, o que é meio que proibido por lei de ser vendido em território nacional, além de ser algo inacessível pelo preço. Por isso, fiz duas adaptações. A primeira é que inverti as proporções de Amaretto e bourbon e excluí o xarope de açúcar, tentando equilibrar a doçura do coquetel. A segunda é que excluí a clara de ovo, por uma questão de acessibilidade: nem todo mundo tem paciência ou vontade para lidar com o ingrediente, que tem um papel importante para adicionar cremosidade e corpo ao coquetel, mas não extremamente indispensável. Além de evitar quebrar ovos na cozinha, a exclusão da clara também facilita o preparo do coquetel. Vamos a ele?
Coloque todos os ingredientes numa coqueteleira com gelo e bata vigorosamente por cerca de dez segundos. Depois, coe o que está lá dentro para um copo rocks (o baixinho, de tomar uísque), com uma pedra de gelo grauda lá dentro. Se quiser, pode ainda acrescentar um jato de Angostura e uma cereja ou casca de limão para decorar – aqui em casa, só usei a gracinha de ter uma pedra de gelo redonda. Na composição, usei Amaretto dall Orso e Jack Daniel’s (que é um Tennessee e não um bourbon, mas dá quase no mesmo para coquetéis), além da Angostura da marca Angostura.
Ah, e não menos importante: decidi pela versão de Morgenthaler não só porque ela é mais gostosa e equilibrada, mas também porque ela presta uma canhestra homenagem às três canções estrangeiras que João Gilberto canta em Amoroso, numa combinação EUA-Itália-América Latina. Mereço um like pela metáfora, vai?
Reclames da Semana
Os reclames dessa semana começam com uma novidade diferente: desde o começo de março, o Programa de Indie está sendo publicado apenas nas plataformas digitais. Depois de quatro anos em uma parceria incrível com a Eldorado, chegou a hora de alçar novos voos – e que altitude a gente já alcançou nessa nova fase, com dois programas especiais com o fundamental grupo punk Bikini Kill, que acabou de passar pelo Brasil pra dois shows históricos…
E com o produtor mais requisitado da atualidade, Jack Antonoff, falando não só do seu projeto solo Bleachers, mas também sobre rituais de produção e composição e as parcerias com gente como Taylor Swift, Lorde, Lana del Rey e muito mais. Chique, né? Não só aproveita pra ouvir como também segue a gente no Spotify e no Instagram, espalhe a palavra!
Na Cajuína, publiquei dois textos bem bacanas nos últimos dias, com destaque para uma entrevista com a Roberta Valezio, CHRO do Neon, contando como foi assumir a maior cadeira do RH da fintech.
No Scream & Yell, tô lá esquentando os tamborins pro C6 Fest, festival que rola em maio aqui em São Paulo, com direito a shows de Pavement, Squid, Cat Power e muito mais. Pra começar, separei uma playlist especial pra quem quiser mergulhar nos sons do mestre Cassiano, que será homenageado com um baile comandado por Daniel Ganjaman. Cola lá que ficou preza.
Enquanto isso, lá no YouTube tem uma boa dose de vídeos dos shows que vi nos últimos dias – uma seleção bastante heterogênea que vai de Bikini Kill a Alaíde Costa, de Mercenárias a Amaro Freitas. Mas foi tudo muito bonito, viu?
E se alguém reclamar que eu tô repetindo artista, se prepara: eu vou repetir de novo em breve. E não acharia ruim escrever sobre toda a discografia de João Gilberto aqui não, viu.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito, obviamente, ao som de Amoroso. Mas é curioso para mim ouvi-lo sozinho: nas primeiras vezes que escutei esse disco, numa edição em CD que meu pai comprou nos EUA em 2000 e bolinha, ele vinha acompanhado de seu irmão mais novo Brasil – outro álbum mítico que JG gravou ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Amoroso e Brasil, escutados juntos, são dois lados de uma deliciosa mesma moeda, mas ouvi-los separadamente foi um exercício tão interessante quanto.
PS2: Eu recomendo demais que você vá ler o texto completo do Nelson Motta falando do Amoroso na Bizz, por maiores que sejam as reservas que você possa ter com o Nelson Motta ou com a revista Bizz.
Ouvi a entrevista com o Jack Antonoff esses dias e não sabia que você era do Programa de Indie! Ficou incrível! Parabéns!
que delícia