#36: “Coisas”, Moacir Santos + Cafezinho
Cachaça, café e as coisas do maestro que não é um só: um compêndio das coisas bonitas pelas quais eu vou torcer
Da mesma forma que “quem conhece a gaita sabe quem tá chegando”, quem conhece um pouco de música brasileira sabe que, mais hora, menos hora, eu ia acabar chegando aqui. Coisas, álbum de estreia do maestro Moacir Santos, é um daqueles álbuns que frequentam sempre o topo das listas de melhores discos já feitos no Brasil, mesmo que muita gente não saiba bem o porquê. É um daqueles discos meio míticos, que a gente mais respeita do que exatamente entende porque gosta, até que uma hora ele acaba entrando na nossa cabeça para não sair mais. Comigo, aconteceu faz algumas semanas, numa daquelas histórias que misturam um pouco de predisposição com sorte, vontade e serendipidade – uma palavra que mora no meu vocabulário e no de Seu Capelas muito antes de ser capturada pelos gurus de LinkedIn. (Seu Capelas, aliás, é o dono do vinil que aparece na foto deste texto, então agradeçam a ele pelo empréstimo. Ou melhor, eu agradeço: valeu, pai!).
Antes de falar de Moacir, eu quero falar do drink da semana: o Cafezinho. Ele é ao mesmo tempo uma releitura e um drink próprio, uma descoberta e uma homenagem. Vamos por partes. Há alguns meses, quando comecei essa newsletter, cismei de chamar alguns amigos para me ajudar com sugestões. O
, da , me pediu para harmonizar um disco com o drink favorito dele, o Negroni. Já o , da , me apareceu com um pedido reverso para um disco dos mais importantes da música brasileira. Vou guardar a surpresa, mas é um daqueles álbuns tão gigantes quanto inclassificáveis, difíceis de resumir em poucos ingredientes simples. Estou há quase um ano tentando achar uma receita pra ele, e parece que finalmente cheguei ao resultado final, mas ainda preciso de alguns testes para ter certeza. No meio dessa floresta, perdido, porém, achei algo que vale a pena.🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
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Testando receitas com ingredientes como cachaça, café, gim, licor de café, bourbon, bitters variados e uma série de outros ingredientes tropicais, encontrei uma receita simpática no Difford’s Guide: o Revolver, uma variação elegante e divertida do clássico Manhattan criada neste século em San Francisco. No lugar do rye whiskey, ele leva bourbon – uma adaptação mais que comum aqui no Brasil, onde o uísque de centeio é artigo meio chato de se achar. Em vez de angostura, bitter de laranja. E no lugar do vermute rosso, um elegante licor de café – uma bebida controversa, do tipo ame ou odeie. Como bom jornalista, eu sou do time do café: todo dia faço um jarro enorme de café pra tomar ao longo do dia em casa, durante as minhas tarefas, inclusive até de noite. Resquícios da vida de redação, eu sei, mas se dá para ter café até no meu coquetel, “por quê não?”.
Criado por Jon Santer, bartender do Bourbon & Branch – um dos vários bares que surgiram nos EUA dos anos 2000 inspirados pelo Milk & Honey de Sasha Petraske, de quem já falei aqui no texto do Gold Rush –, o Revolver é um coquetel bem charmoso. Ele é doce, mas tem lá sua acidez por conta do bitter de laranja, ao mesmo tempo em que não perde o charme e a classe de um drink bem alcóolico. Se for servido numa taça coupé, como eu cometi aqui em casa, então, aí a pose fica elegantérrima. Adorei, mas passei semanas pensando que a mistura de bourbon, café e laranja era gringa demais para funcionar em algum disco – e olha que tentei encaixá-lo com seu homônimo Revolver, de Walter Franco, mas achei que uma bebida de porte tão clássico não ornaria bem com um disco incrível, mas cheio de arestas.
Daí, parti para uma adaptação óbvia: trocar o bourbon por cachaça – se possível, de carvalho. Era uma ideia bem frequente no começo dessa newsletter, vocês lembram: rolou Old Fashioned com cachaça, Daiquiri com cachaça, Fitzgerald com cachaça… de maneira que eu achei que insistir nessa ideia naquela época não ia fazer sentido. Exagerei na dose, como disse um amigo atento. Mas cheguei a registrar que o Revolver com cachaça de carvalho tinha ficado bem gostoso e até cheguei a dar nome para ele: Cafezinho.
Meses depois, fui visitar o Pina (um dos meus bares favoritos de São Paulo) e tava lá na carta nova deles não só a mesma adaptação, mas até mesmo o mesmo nome. Juro que não é storytelling para me promover, mas apenas a serendipidade de uma boa ideia. O que sei mesmo é que, tal como um bom café, o Cafezinho vale tanto para quem quer acordar como para embalar um fim de noite – é aquele famoso drink pra pedir antes de fazer o sinal da régua ou da “assinatura”.
Desde aquela época, eu meio que soube qual era o disco que funcionaria com o Cafezinho – e não podia ser outro que não este Coisas. Faltava só saber o que realmente eu teria a dizer sobre ele. Até que veio o estalo, há algumas semanas, com Moacir Santos aparecendo em momentos cruciais. O primeiro surgiu durante a cobertura do C6 Fest, na qual tive a sorte ou prudência de pedir credenciamento não só para os shows indies, mas também para os espetáculos de jazz que iam acontecer no Auditório Ibirapuera.
Naquela noite, eu estava particularmente interessado no show da inglesa Nubya Garcia (dona do excelente Source, que rodou muito aqui em casa em 2020/2021). Mas antes dela, havia a Orquestra Ouro Negro, grupo capitaneado por Mário Adnet e Zé Nogueira justamente para homenagear a obra de Moacir Santos, ali no começo dos anos 2000, num trabalho que resultou na gravação de Ouro Negro, espécie de tributo em vida ao maestro.
Na primeira noite do C6 Fest, a missão da Orquestra Ouro Negro era prestar tributo a outro nome que é um monstro sagrado aqui em casa: o jornalista, escritor, crítico musical e “eterno técnico de som da TV Record nos anos 1960” Zuza Homem de Mello. Mais do que só um bonito espetáculo, o show da Ouro Negro me serviu como um bálsamo: sentado ali no Auditório Ibirapuera, eu recuperei as energias depois de um dia inteiro em pé em meio a um palco com árvores (?) e certa confusão. Mais: me reconectei com uma ideia de beleza meio abstrata, em uma paz de espírito muito particular para conseguir prestar atenção na música instrumental com amplitude. Quer uma prova de como esse momento foi bonito? Então vem cá ouvir “Bluishmen”, faixa do disco seguinte de Moacir, Maestro, que têm alugado um duplex na minha cabeça desde aquele show de maio.
Semanas se passaram após o show da Ouro Negro e a ideia de ouvir Moacir com calma me voltava frequentemente à cabeça. Até que um dia, por força das circunstâncias e do humor, me vi sem querer ouvir nada do que normalmente ouço – um bocado de música brasileira, outro tanto de rock alternativo e das novidades que sempre divulgamos no Programa de Indie. Nesses dias estranhos em que a poeira fica se escondendo pelos cantos, não há nada melhor que jazz para limpar não só a mente, mas também os ouvidos. Ainda que “jazz”, por si só, seja uma parada muito pequena para definir o que é a música de Moacir Santos – a quem eu conheci pela primeira vez pelo verso “não é um só, és tantos”, escrito por Vinicius de Moraes em uma das músicas mais importantes da minha vida, “Samba da Bênção”.
No texto da contracapa de Coisas, o dono da gravadora Forma, Roberto Quartin, tenta traçar no ar uma linha para a música de Moacir, chamando o disco de “um documento histórico autêntico”, de “um músico negro escrevendo música negra”. “Histórico, em primeiro lugar, por conter uma síntese completa e expressiva do formidável papel que o negro desempenhou em toda a fôrmação de nossa música popular. Êste disco é negro desde a capa até o vinilite, do músico ao som que se ouve”, escreve Quartin, em texto que reproduzi até os acentos da época. É uma discussão que encontra ecos até hoje: Nubya Garcia, que se apresentou logo depois da Orquestra Ouro Negro, disse recentemente que não gosta do termo jazz, preferindo acepções como “música negra americana” ou “música negra erudita americana”. Faz sentido.
Sei mesmo que ouvindo Moacir Santos, eu penso num Brasil grande. Dê o play aí em Coisas e você vai entender do que eu tô falando: “Coisa Nº4”, que abre o disco, é ao mesmo tempo um manifesto e um mojo, uma visão do futuro e um balanço – talvez mostrando que de forma alguma é possível essa terra ir para a frente sem considerar a força dos corpos. (Para os mais iniciados, sei que essa ideia pode parecer um tanto quanto besta, mas estou com a cabeça meio virada desde que comecei a ler Umbandas, do grande Luiz Antonio Simas, e ele desfaz tão bem a lógica eurocêntrica de dominância da cabeça sobre o corpo que acho que esse trecho tem requebrado no meu cérebro-e-corpo há alguns dias. Cada hora é um pensamento diferente que explode, e um deles acaba de fazer “pop!” bem na frente de vocês, leitores).
Mas se dá para ir além, vai lá e ouve “Nanã”, também conhecida como “Coisa Nº5” – a faixa ganhou esse título depois de receber letra de Mário Telles e ser gravada por gente como Wilson Simonal. Para mim, “Nanã” é um negócio: ouvi-la é imaginar Pelé, Garrincha e outros gênios entrando no gramado como o mais bonito exército que esse país já teve. É pensar ao mesmo tempo nas curvas de uma cidade bonita, de uma mata fechada e no pôr do sol em uma praia deserta. Com seu balanço e seus metais insinuantes, “Nanã” é o tipo de música que antecipa um grande futuro, ao mesmo tempo que se coloca no presente para quem quiser apreciar a beleza de simplesmente poder escutar uma melodia e um arranjo foras-de-série. Felizmente, ela não está só: são dez faixas em 32 minutos, e todas elas me permitem me dizer a seguinte frase: com as coisas de Moacir Santos, as coisas do Brasil são mais bonitas e ninguém pode negar.
Sei que falar bem do Brasil foi um grande tema dessa newsletter nos últimos meses, talvez mais por visão de futuro do que realidade de presente. Foram tempos duros, e ainda são, é verdade, mas aos poucos é possível caminhar. Ou mesmo andar adiante com os ritmos envolventes das coisas de Moacir, numa nação que cabe dentro dos sulcos de um disco de vinil.
Sei ainda que falar de café enquanto “cultura brasileira” e “passado imemorial” é uma ideia doida e cheia de problemas – a começar pelos muitos elitismos paulistas, só para uma primeira conversa. Mas não posso deixar de notar a justaposição de ideias presentes em “ouro negro” – apelido dado tanto ao café, no começo do século XX, bem como à orquestra e ao disco que homenagearam a obra de Moacir Santos no início deste nosso século. (Aviso: Ouro Negro, o disco, é o melhor jeito de ouvir Coisas, uma vez que o álbum original encontra-se fora dos serviços de streaming.) É por essa justaposição que eu decidi justamente que Coisas teria sim de se conectar com um drink com gostinho de café.
Durante um tempo, confesso que fiquei na dúvida se Coisas seria Cafezinho ou Revolver. Até faria sentido optar pela bebida original: após gravar Coisas por aqui, Moacir se mudou para a Califórnia e lá gravou uma porção de coisas. Há até um mito, desmentido por Moacir e por pesquisadores sérios, de que ele (e não o argentino Lalo Schifrin) teria sido o verdadeiro autor do tema de Missão Impossível. Lenda, mas que imprima-se. Mas a verdade é que, mesmo em seus momentos mais americanos, Moacir nunca deixou de ser brasileiro, nunca perdeu essa veia sincopada que tanto ensinou em suas apostilas Ritmos MS, esse mojo latino que é muito nosso.
Assim sendo, cachaça – mas envelhecida em carvalho, como também é envelhecido o bourbon. E nessa mistura toda, o bitter de laranja dá aquele toque tropical que faz a gente balançar. A vida não está fácil, é verdade, mas é só lembrar do alívio de se livrar de alguns pesos na cabeça e nas costas que o ritmo já vai ficando mais leve, mais fácil de seguir – e para encerrar numa rima, vou aqui bebendo meu Cafezinho e dizendo “viva Moacir!”.
A Receita
60 ml de cachaça envelhecida em carvalho
15 ml de licor de café
3 jatos de bitter de laranja
2,5 ml de xarope de açúcar (opcional)
Fazer um Cafezinho é quase tão simples quanto passar aquele cafezinho gostoso no meio da tarde. Para as proporções, simplesmente peguei a receita do Revolver e troquei bourbon por cachaça na mesma medida. No Pina, eles usam Weber Haus 7 Madeiras, uma cachaça bem elaborada, mas você pode só apostar numa boa cachaça envelhecida em carvalho – até para manter algumas das mesmas notas do bourbon. A minha eu comprei numa viagem a Penedo no ano passado, quando passei um frio do cão. Já o licor de café eu uso o da Stock mesmo, ainda que esteja ansioso para testar o Tia Maria que comprei em Buenos Aires. E no bitter de laranja, usei o que o pessoal da Enraízes me mandou.
Ah: no meu drink, usei 3 jatos de bitter de laranja para compensar uma coisa específica: o Revolver original contém uma “moeda de casca de laranja” flambada, mas sinceramente… eu fiquei com preguiça de fazer, então decidi compensar com um dash a mais. Dito tudo isso, fazer o coquetel é simples: coloca tudo numa coqueteleira com gelo, bate bem e coa o líquido para uma taça de Martini ou Coupé – a menos se você estiver no Pina, onde eles vão te servir com um charmoso copinho de vidro digno de casa de vó. Mas aqui a gente é fresco, então vamos de Coupé mesmo. Eta cafezinho bom!
Reclames da Semana
No Programa de Indie da semana, um dos papos mais incríveis que a gente teve nessas quatro temporadas: a entrevista com Marcelo Aliche, diretor do festival In Edit Brasil, que acontece na internet e em São Paulo até o dia 25 de junho. Além do papo, aqui tem algumas indicações de filmes que eu e Igor Muller queremos muito ver no festival nos próximos dias. Quem sabe a gente não se tromba em alguma sessão?
A ideia de finalmente escrever essa semana sobre Coisas também veio após o show do maestro Arthur Verocai no Memorial da América Latina. Foi bonito ver essa celebração do disco Arthur Verocai, de 1972 – e lá no canal do YouTube tem uma playlist com seis vídeos do espetáculo, que teve participações de Mano Brown, Céu, Ivan Lins e Carlos Dafé.
Vou aproveitar aqui e falar de novo da minha entrevista com o Alexandre Kumpinski, ex-Apanhador Só, agora em carreira solo, lá no Scream & Yell. Sem preconceitos nem pré-juízos: vai lá ler.
Trabalhar menos, ganhar igualmente, ter mais tempo para viver – essa é uma ideia que parece revolucionária, mas tem começado a ser colocada em prática na semana de trabalho de quatro dias. Investiguei as origens dessa ideia e como algumas empresas estão funcionando desse novo jeito pra uma pauta crocante na edição de junho da GQ Brasil, com ilustrações da Liu Anno – que além de designer da revista também é uma amiga de quase duas décadas, hehe.
Pra fechar, em Cajuína, tem um feedback bacana da Gabriela Onofre, CMO da Unico, que tem uma palavra gentil pra ajudar quem está duvidando de si mesmo. Vai lá.
Pã-pã-pã-pã!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Coisas, mas também de outros discos do maestro Moacir Santos, como Maestro e Ouro Negro. Além disso, também acompanharam a idealização desse texto outros discos brasileiros maravilhosos, como Sonho 70, de Egberto Gismonti, Feito em Casa, de Antonio Adolfo, e Brasil: Flauta, Cavaquinho e Violão, coletânea de choros lindos da mítica gravadora Discos Marcus Pereira.
PS2: Sei que tô devendo para vocês uma lista de bares legais em São Paulo. Preciso voltar a ter uns cascalhos sobrando no bolso pra completar minha pesquisa e já volto. Aliás, preciso de tanta coisa ultimamente que minha vida anda parecendo a letra de uma das músicas mais bonitas do Jorge Ben, “Porque é Proibido Pisar na Grama”. Segue o jogo e até semana que vem!
Ahhh, que leitura gostosa... Alias, tudo gostoso, leitura, música e o café, claro!
Eu a-meiii esse drink com o bitter de laranja Enraízes! rsrsrs já queremos testar aqui em casa!! obrigada demais pela menção. sempre arrasando demais!
PS: sobre bares em SP quero depois dar minha humilde contribuição hehe
abração!!