#20: “Vivendo e Não Aprendendo”, Ira! + Americano
"Se hoje eu canto essa canção, o que eu cantarei depois?"
Houve um tempo na minha vida em que eu posso jurar pra vocês que “a minha banda favorita do rock brasileiro dos anos 1980” era o Ira!, com ponto de exclamação e tudo. Eu sei, talvez seja uma bobagem rotular as coisas desse jeito, mas eu me formei na escola Rob Fleming de ouvir música, de maneira que é assim que eu funciono. No começo da adolescência, o título pertenceu ao Legião Urbana, mas quando comecei a andar em São Paulo por conta do ensino médio, foi difícil não ceder à paixão pelo Ira! – e talvez nenhum disco seja melhor para representar o que foi aquela época do que o clássico Vivendo e Não Aprendendo, que rolou demais nos meus fones de ouvido Phillips de R$ 10 quando eu tinha 15, 16, 17 anos. Eu gostava tanto do Ira! que tinha até uma peita com a gravura representando o baterista André Jung na capa – ela deve existir em algum canto do meu armário, esperando o dia que eu volte a vestir tamanho M. Risos.
Havia uma série de razões para gostar demais desse disco naquela época. Para começar, Vivendo e Não Aprendendo, segundo trabalho do grupo capitaneado por Nasi & Edgard Scandurra, tem os dois maiores hits da banda: “Envelheço na Cidade” e “Flores em Você”. Mas não é só: Vivendo tem ainda o hino do adolescente que se percebe aos poucos adulto, “Dias de Luta”. Há também “Nas Ruas”, “Tanto Quanto Eu’, “Gritos na Multidão”, todas grandes canções sobre viver nas ruas de São Paulo, aquele lugar “onde vagabundo guarda o sentimento na sola do pé”, como diria Mano Brown.
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Isso para não falar nas grandes guitarras de Scandurra, um cara que era capaz de citar clássicos (The Who, Jimi Hendrix) e contemporâneos (a nata do pós-punk) com seu instrumento de seis cordas, sem sair de cima. E para além do clima de hit parade que perpassa quase todos os discos clássicos daquela época, o segundo disco do Ira! tinha toda uma cama pós-punk que ajuda a preparar qualquer ouvido para sons mais difíceis (e pernas bem mais grossas, certo Daniel?).
Há quem goste de dizer que o Ira! era a melhor das bandas da época a copiar os sons dos gringos, mas eu prefiro falar em adaptação local e contextualização. Sou prova disso: foi só depois de muito tempo ouvindo Vivendo e Não Aprendendo e outros discos da época que eu tive cabeça para entender bandas respeitadíssimas como o The Jam (“Flores em Você” é a “Smithers Jones” brasileira, até pela brincadeira dos dois arranjos, com cordas e com guitarras) e o Gang of Four – e se você nunca teve saco para entender Entertainment, o discaço dos ingleses, talvez valha ouvir “Vitrine Viva” umas dez vezes antes de avançar.
Já falei aqui sobre a importância de “portas de entrada” – aquelas experiências que te ajudam a abrir caminhos e pegar atalhos para outras experiências, um pouco mais sofisticadas, mas difíceis de entender. Também já falei aqui sobre a forma como vejo Campari e vermute como uma combinação difícil de ser dissociada de São Paulo – talvez seja o sotaque meio da Mooca, mêo, ou talvez seja só o fato de que as duas bebidas se tornaram populares na cidade lá pelos anos 1950 e é difícil achar um boteco de esquina que não as sirva.
Talvez por isso, quando fui pensar num drink que fizesse sentido para esse disco do Ira!, foi difícil não recorrer a um coquetel que tem cara de “porta de entrada”. Daí para chegar ao Americano, foi um pulo. Afinal de contas, ele mesmo é o drink que, numa árvore genealógica da mixologia, é considerado por especialistas o precursor do Negroni, aquele coquetel clássico que leva partes iguais de gim, vermute e Campari e virou moda em São Paulo faz uns anos, como você pode saber.
Vamos a um pouco de história e geografia, de uma vez só: no final do século XIX, com a unificação da Itália, a industrialização e a eclosão de centros urbanos, bebidas industrializadas se tornaram um grande negócio na região do Norte italiano. Cada cidade, a certo modo, tinha sua bebida: enquanto em Milão o negócio era o Campari, em Turim a coqueluche era o vermute.
Aos poucos, as duas bebidas começaram a funcionar bem misturadas – a ponto de surgir um coquetel famoso na época, o Milano-Torino, que combinava Campari e vermute tinto. A mistura dava tão certo que começou a receber variações. Uma delas, mais suave por receber água com gás, caiu no gosto de inúmeros americanos que passeavam pela região na época.
O nome da bebida? Americano – o que faz muita gente achar que o Americano é uma criação estadunidense, e não italiana. É um daqueles equívocos meio malucos – do mesmo jeito que achar que o Nasi é nazista. A origem do apelido, o próprio vocalista conta, tem a ver com nazistas: adolescente brigão, Marcos Valadão recebeu a alcunha numa época em que a série Holocausto passava na TV toda hora. Pra evitar problemas, o filiado ao Partido Comunista do Brasil (sim, o PC do B!) trocou o Z por S. Agora, caso você esteja se perguntando, o Ira! é mesmo uma homenagem ao Exército Republicano Irlandês, o IRA. Enfim, divago.
O que eu ia dizer mesmo é que o Americano devia entrar na vida de qualquer um que quer se iniciar no universo dos drinks, da mesma forma que o Ira! me apareceu quando eu estava descobrindo o rock alternativo. A água com gás e o gelo dão uma cara refrescante à dupla Campari e vermute, que pode ser intragável para paladares pouco acostumados. Além disso, esse frescor trazido pela água com gás ajuda também a deixar o coquetel mais leve, da mesma forma que um dos maiores talentos do Ira! foi decodificar em canções mais ou menos pop algumas sonoridades complexas de sua época. Claro, Campari e vermute são um pouco caóticos em termos de amargor e dulçor, mas não é exatamente isso que é a adolescência? – e quando me sinto assim, volto a ter quinze anos, começando tudo de novo…
Além disso, o Americano também é uma ótima porta de entrada para o Negroni. Uma das teorias mais aceitas para o surgimento do clássico coquetel é a de que um bebedor picareta buscava “um Americano mais forte”, e pediu a troca da água com gás por gim. Se eu tivesse bebido Americano antes, talvez não estranhasse tanto o Negroni de partida. Por outro lado, fica o aviso: um Americano precisa de bastante gelo e boa água com gás – caso contrário, o coquetel fica bastante diluído, parece remédio e soa bem como formações de reunião de bandas dos anos 1980. (Felizmente, esse é só mais ou menos o caso do Ira!, que depois de encerrar atividades em 2007, voltou só com a dupla dinâmica Nasi-Scandurra em 2014, num ótimo show na Virada Cultural, e vem excursionando por aí há bastante tempo. Mas o disco deles de 2020 é bem chatinho, devo dizer).
Por fim, é importante ressaltar que fazer um Americano não é só para beber um Americano. É também uma forma de você entender como cada bebida funciona. Dar uma bicada no Campari ou no vermute puros pode ser um ótimo jeito de compreender o que cada um deles vai fazer dentro do coquetel, ou como eles podem ser diluídos diferentemente. Afinal de contas, existe aqui uma proporção, mas em prol da ciência, vale mexer com essa proporção para aprender um pouco mais – da mesma forma que é uma delícia poder ouvir versões demo de músicas como “Flores em Você” e entender como uma canção pode se transformar. Ou, de novo, sacar como as guitarras angulares de caras como Andy Gill, do Gang of Four, ajudaram o rock brasileiro de toda uma geração a se estabelecer, em um perfeito exemplo de engenharia reversa sonora. Certo, bello?
A Receita
45 ml de Campari
45 ml de vermute tinto
75 ml de água com gás
gelo
Tal como seu sucessor espiritual, o Negroni, o Americano é um coquetel bem fácil de se fazer. Pegue um copo alto (o famoso highball) e coloque gelo. Depois, é só colocar o Campari e o vermute tinto. Aqui em casa, fui de Martini Rosso, numa garrafa que tem me acompanhado nas últimas semanas e não, não vai sumir dessa newsletter por enquanto – afinal de contas, vermute não dura muito se ficar aberto, mesmo na geladeira, então é preciso gastar enquanto tem. Com os spirits já no copo, basta adicionar a água com gás com carinho, para as bolhas não estourarem, e mexer suavemente com uma bailarina. Saúde!
Atenção para os reclames da semana, que desta vez abundam:
No Programa de Indie, o programa de rádio que tenho na Eldorado FM ao lado do parceiro Igor Muller, entrevistamos a dupla Rafael Farah e Fernando Dotta, do selo independente paulistano Balaclava Records. No papo, falamos do festival Balaclava Fest, que rola em SP nesse domingo, bem como do novíssimo Bar Alto e da nova banda do Dotta, a instrumental e intrigante Dozaj.
Voltei ao Estadão para escrever sobre startups pela primeira vez em dois anos na minha velha firma com um tema divertido demais: startups de saúde, beleza e bem-estar voltadas para o público masculino, como a Omens, a The Men’s, a Manual e a Dr. Jones.
O pessoal da Intrínseca me convidou há algumas semanas para escrever sobre Surrender, a recém-lançada autobiografia de Bono, o vocalista do U2. Foi um rolê doido, porque o livro é um catatau de 600 páginas, mas deu certo explorar esse personagem cheio de contradições – e o texto saiu essa semana no blog da editora.
Para fechar, queria aproveitar para dar as boas vindas a quem chegou por aqui na última semana, e imagino que muita gente veio por conta da indicação da
, da. É uma newsletter da qual sou fã – é cheia de referências legais e já me ajudou muito a pensar e resolver problemas no universo do branding, no qual me aventurei recentemente. E também porque a Bia é uma das pessoas mais engajadas no rolê “comunidade de newsletter” no Brasil, aproveito pra retribuir a indicação pra ela e dar início aqui a um tipo de reclame semanal: a indicação de uma newsletter nova.
“Juventude se abraça e se une pra esquecer, um feliz aniversário para mim e para você” (mas o meu é só em março mesmo, viu?).
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Essa newsletter foi escrita ao som de Vivendo e Não Aprendendo, com direito às faixas bônus que só saíram na segunda edição do disco em CD. A minha é a primeira, mas não troco nem vendo porque, como vocês podem ver, ela foi autografada pelo Edgard Scandurra em 2007 (!).
PS2: Caso alguém pergunte qual é minha banda favorita do rock nacional dos anos 1980 hoje, a resposta volta ao ponto de partida: é a Legião Urbana mesmo. Mas em dias mais solares, o Paralamas do Sucesso ganha, e com alguma sobra.
PS3: A partir de agora, toda vez o trecho inicial do texto vai ter aquela abertura rápida, com links e tudo mais. É uma forma de ajudar quem chegou com o bonde andando a se situar rapidinho no balcão – que aqui eu não gosto de ver ninguém perdido não.