#11: “Bloco do Eu Sozinho”, Los Hermanos + Larangin
"Eu que controlo o meu guidom, com ou sem suín!"
Dois nomes que marcaram época. Dois símbolos que marcaram a juventude de pelo menos geração. Duas ideias que foram elementos formativos de muita gente para o bem e para o mal, como se a euforia de uma grande noite e a ressaca do dia seguinte andassem de mãos dadas. É assim que chega à sua caixa de entrada mais uma harmonização desta newsletter. Por essa abertura, pode até parecer que vamos falar de um drink doce, mas há também espaço para o cítrico e o amargo nessa parceria muito bem untada (#spoiler). Sim, é hora de falar do disco mais importante dos Los Hermanos (não necessariamente meu favorito, que fique claro) e de um drink que, se você não bebeu nos últimos anos, provavelmente é porque não bebia ou estava em outra galáxia: um gim tônica saborizado. A gente gosta é do gasto.
Lançado em 2001, Bloco do Eu Sozinho é o que a gente pode chamar de um divisor de águas na história da música brasileira. Sei que hoje pode parecer exagero dizer isso, mas é verrrrdade. Vamos a um pouquinho de história: antes da virada do milênio, Camelo e Amarante já tinham estourado a banca das paradas de sucesso com uma pop song tão perfeita que até mesmo George Harrison regravou: sim, ela mesma, a musa “Anna Júlia”. Era a ponta de lança do primeiro disco da banda carioca, fruto de um cenário underground cheio de nomes interessantes – o principal deles era o Acabou La Tequila, que por si só já renderia uma harmonização curiosas. Além de “Anna Júlia”, também tocou muito por aí “Primavera”, outra balada pop que, apesar da boa execução, ajudou a esconder de vez o vigor samba-hardcore da estreia Los Hermanos, um disco que até hoje vem sendo redescoberto.
Muita gente comprou o disco por conta de “Anna Júlia”, achou o resto esquisito e guardou o disco no fundo do armário. (Ah, a indústria fonográfica dos anos 1990). No entanto, a superexposição com “Anna Júlia”, as longas turnês e até regravações não-autorizadas como a de Frank Aguiar (!) fez o grupo perceber que havia algo de errado e era preciso mudar.
O resultado, dois anos depois, quase não veio à tona: Bloco do Eu Sozinho era tão esquisito, tão fora do cenário pop, tão torto que quase fez os Los Hermanos serem despedidos da Abril Music. Após muitos vais e véns, mixagens e remixagens, o disco acabou sendo lançado em julho de 2001. Apesar do sucesso de “Anna Júlia”, o disco passou quase em brancas nuvens – muita gente achou esquisita aquela mistura não tão direta de samba e MPB com rock e… polca? música em francês? “dixieland de branco”? Epa, tem até uma música faltando sílaba, bicho.
Era demais pra quem queria um refrão feliz para dar sequência às desventuras de Mariana Ximenes num baile de formatura. A questão, porém, é que nem tudo que é bom faz sentido rápido. Aos poucos, os sozinhos que foram além da concentração deste bloco perceberam que havia algo ali. Se parecia que o carnaval ia ter seu fim, foi na verdade o começo da festa, transformando os Los Hermanos em um sucesso até meio difícil de explicar.
Seja pelo lado romântico, seja pelas referências espertas, seja por escapar dos chavões do rock juvenil que dominava as paradas (vale lembrar que os cariocas até chegarm a se aproximar de Rick Bonadio), Bloco do Eu Sozinho fez a cabeça de muita gente. Fez roqueiro descobrir que música brasileira era legal, que Chico Buarque e Noel Rosa poderiam conviver ao lado de Kurt Cobain e, vá lá, Picassos Falsos (Supercarioca é uma espécie de avô de Bloco e precisa ser redescoberto).
É um disco que fez muito indie que só cantava em inglês perceber que dava para rimar “paz” com “tristeza nunca mais” embaixo de uma cama de guitarras distorcidas à moda do Weezer – aliás, nada me tira da cabeça que “Casa Pré-Fabricada” é um outtake do Pinkerton. Só pra ficar em três exemplos de São Paulo, bandas como Ludov, Gram e Pullovers entenderam mais ou menos ali que poderiam escrever na última flor do Lácio.
E, por fim, fez muita gente entender que dava para escrever letra falando de samba, iaiá, roda, flor e uma série de outros símbolos das brasilidades sem parecer que, caham, estava saindo direto de um disco do Edu Lobo em 1965. Aliás, talvez faça sentido pensar que, sem esse disco, a gente não teria metade das festas de brasilidades da Vila Madalena. Se tinham ficado à margem, os Los Hermanos acabaram virando o mainstream, de fora para dentro – e hoje, parece até esquisito pensar que músicas como “Sentimental”, “A Flor”, “Todo Carnaval Tem Seu Fim” ou “Retrato Pra Iaiá” não foram hits.
Quando a banda foi gravar seu disco seguinte, o mundo já tinha mudado. O presidente era Lula, não FHC. A gravadora era a BMG, depois da derrocada da Abril Music (que, reza a lenda, faliu de tanto gastar com jabá). O produtor deixou de ser Chico Neves e virou Alexandre Kassin, o ex-guitarrista do Acabou La Tequila que acabou sendo alçado ao all-star-team por conta justamente desse trabalho. O nome do disco? Ventura, talvez mais bem acabado e cheio de hits que seu antecessor. Mas ali o jogo já estava ganho – e começava a pintar uma goleada, algo que fez os Hermanos serem o maior fenômeno de culto do rock brasileiro desde a Legião Urbana. Durante um tempo, vale até dizer, foi difícil achar uma banda brasileira que tentasse soar adulta sem parecer Los Hermanos.
O curioso aspecto biográfico sobre os Los Hermanos é que eu demorei muito tempo para gostar deles. Sério mesmo: eu achava tudo meio difícil demais, até um pouco forçado, tipo aquele amigo que passa a dizer que só gosta de filme francês. Eu tinha um pouco de birra com quem se recusava a continuar compondo refrães pop irresistíveis. Ok, ok, eu era só um pré-adolescente – e em muitos casos, preferia os seguidores dos Los Hermanos a eles mesmos. A verdade é que demorei pra gostar deles, precisei treinar o ouvido. Foi tudo com o tempo (embora eu ainda ache Tudo Que Eu Sempre Sonhei, do Pullovers, ou a estreia Vanguart melhor que qualquer um dos discos de Camelo & Amarante).
Da mesma forma que eu demorei a gostar de gim tônica, um drink tão clássico que nem sei. Lembro que sempre roubava um gole dele quando uma ex-namorada pedia, mas fazia careta e achava tudo amargo. Afinal de contas, eu tinha o Tom Collins, então para quê complicar? Curioso: bastou ir na primeira festa após terminar o namoro para me esbaldar num gim tônica ruim, feito com Seagers e Tônica Antarctica, e entender tudo. Era um problema de contexto, eu acho.
Isso foi mais ou menos na época que todo mundo começou a beber gim tônica em São Paulo. De bebida que parecia distante e refinada (#rainhaelizabeth) ou então, coisa de roqueiro inglês meio junkie (oi, Pete Doherty), o gim virou moeda corrente em qualquer bar paulistano. E a combinação mais fácil estava só a uma latinha de distância, uma bebida também desprezada por ser um refrigerante esquisito. (“Sabia que a água tônica é o refrigerante que mais tem açúcar?”, dizia sempre meu pai quando alguém aprecia com uma latinha azul da Antarctica, ao que meu-eu-criança sempre replicava com uma careta). De bate pronto, não se bebia mais cerveja em festa. Era gim tônica. Quer chamar alguém pra sair, mas não dar a impressão de ser um troglodita? Bora de gim tônica. Uma bebida pra refrescar e ao mesmo tempo, ficar mais doido na balada rápido, sem querer ir tanto ao banheiro? Sim, gim tônica.
Acho que nenhum bar em São Paulo soube captar tão bem essa moda quanto o Boteco Paramount, um ícone da rua dos Pinheiros. Ali por 2016-2017, bater ponto no Paramount era o fino – e o rolê saía barato, meeeo. Também, pudera: uma taça quase do tamanho da cabeça custava em torno de R$ 15. Com duas, provavelmente dava para ficar umas duas ou três horas bebendo com os amigos. E os bartenders liderados por Netinho ainda iam além do convencional, fazendo pequenas graças com o gim tônica ao adicionar chás, geleias, ervas e outros sabores.
A mais célebre dessas misturas era o Larangin, com nome autoexplicativo: além do gim e da tônica, levava geleia de laranja untada nas bordas do copo – que na minha cabeça até hoje chama “taça do Paramount”. Duas taças dessas e uma porção de coxinha (com a receita meeeeeeio roubada do Veloso, outro bar-ícone paulistano) e pronto: sua noite tinha sucesso garantido, mesmo que o seu crush tivesse mau hálito. Por sorte, os meus não tinham. Por azar, era a época que eu fazia fechamento no jornal, então era raridade conseguir chegar no Paramount em um horário razoável.
Hoje, eu não estou mais no jornal, já troquei de emprego e hoje trabalho da mesa de casa. A bebida da moda não é mais o gim tônica – já foi o Negroni, o Moscow Mule (ah, as canequinhas de metal!) e parece que agora vai ser o Fitzgerald (mais sobre isso, já já). E Los Hermanos é algo que o jovem não gosta mesmo, acha brega demais. Devo dizer que conheço de perto membros da geração Z que até escondem dos amigos que a banda está nas suas mais ouvidas do Spotify.
Mas, a bem da verdade, não foi nem o drink nem a banda que mudaram. Foi a gente: as receitas e os discos estão aí há tempos, e tem muito valor, obrigado. Botar geléia de laranja no copo é uma ideia legal: dá um sabor cítrico e um charme à coisa toda, sem aguar o drink como um suco. Botar guitarra distorcida no samba também, fazer letra falando de iaiá idem. A casca de laranja fica bonita na taça, dá um saborzinho tropical, um bronzeado para quem passou um tempão trancado no quarto ouvindo hardcore. A tônica é amarga sim, mas misturada com o gim desce direitinho – tal qual as dores de amor e desilusões cantadas pelos Los Hermanos.
E misturar gim com uma bebida carbonatada e um cítrico é uma receita de tanto sucesso quanto uma balada de amor que todo mundo canta com o coraçãozinho na mão, chorando pelo amor perdido (oi, “Sentimental”, é com você que eu tô falando). No meu mundo ideal, aliás, eu adoraria ver Roberto Carlos cantando “Sentimental”, só para provar que “viva o Amarante!”, como diria a Bidê ou Balde.
Talvez seja nostalgia barata da minha parte querer juntar esse disco com esse drink – ainda mais após ver um show chatíssimo de Rodrigo Amarante no último final de semana. Mas se a vida vem em ondas como o mar, talvez valha a pena voltar atrás e ver por onde a gente passou. Ver que talvez nem seja tão chocante a diferença entre Los Hermanos e Bloco do Eu Sozinho – hoje, o segundo parece uma continuação mais ou menos natural do primeiro. Nesse processo, também dá pra entender que nem todo mundo está pronto para uma carta-degustação de dez drinks ou todo o songbook de um Hermeto Pascoal. E que sempre há tempo para alguém chegar no bar buscando um som ou um drink novo, uma coisa assim meio diferente – e que às vezes pode até ser uma música com sílaba faltando, com ou sem suín.
Foi mais ou menos isso que eu pensei quando tive um diálogo recente com um amigo que é “meu amigo mais fã de Los Hermanos”. Ele começa:
– Pô, estão dizendo agora que o Fitzgerald agora vai ser o novo drink da moda
– Sério? Lá vamos nós, eu gostava tanto de tomar Fitzgerald em paz…
– Ah, relaxa! Minha mãe ainda tá chegando no gim tônica com chazinho e temperinho, sabe?
Que as mães e os filhos e os filhos dos nossos filhos tenham tempo para tomar seu gim tônica em paz. E os hermanos de todos eles também. Quer me mandar pra guilhotina? Eu que controlo a minha coqueteleira!
A Receita
1 dose (50 ml) de gim
1 lata de água tônica
Geléia de laranja a gosto
Grãos de café ou ervas da horta (opcional)
Gelo para completar
Acho que um dos motivos para a popularidade do gim tônica por aí é que ele é um drink bem fácil de se fazer. Mesmo uma receita um pouco mais rebuscada como a do Larangin pode ser feita de maneira bem tranquila, não envolvendo grandes instrumentos ou preparos. Aqui, recomendo que você use uma taça de gim tônica (duh) – aquela bem bojudona, como explico aqui no nosso Guia de Compras. Mas se não tiver, vai com a taça que você tiver por aí. O importante mesmo é que você unte esse recipiente com geléia de laranja. Pode usar uma colher mesmo para espalhar, como se a taça fosse uma crocante torrada (só não vai morder o vidro pelo amor de deus!).
Daí, é só seguir os passos clássicos de um gim tônica: primeiro, o gim, depois o gelo a gosto – de preferência, bastante. Em termos de marca de gim, gosto muito do Beefeater, mas nem sempre ele tá barato. Gordon’s e Apogee são bons gins de batalha lá em casa, especialmente que a situação não anda boa pra investir no Tanqueray. Fez isso? Abre a lata de gim tônica e ponha a gosto; no caso da taçona de gim tônica, a lata vai caber inteira. Pra fechar, você pode usar o descascador para colocar uma casca de laranja, tirar umas ervas da sua horta ou até outro tempero que você preferir. A receita original do Larangin usa grãos de café, mas aqui em casa eu fui de alecrim mesmo. Cada um com o seu sabor. No mais, é beber e se divertir.
Uma semana curta de reclames por aqui:
No Programa de Indie, a gente bateu um papo na última semana com o Ombu, banda surpresa deste 2022 que lançou um disco bem legal chamado Certas Idades. Chega mais – e aproveita pra seguir a gente em várias redes sociais que as próximas semanas estarão cheias de entrevistas legais. Muy ricas, yo diría…
E pra você que ainda acha que “Anna Júlia” é a única música que presta do Los Hermanos, eu digo: não, porque nem sempre. Até a semana que vem!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Esse texto foi escrito ao som de Bloco do Eu Sozinho e de seu antecessor, a estreia Los Hermanos. E juro que acho os dois discos bem “próximos”, mas talvez seja fácil ser engenheiro de obra pronta.
PS2: Eu posso estar enganado, mas acho que o crédito dessa harmonização não deveria ser exatamente meu, mas sim da namorada – que vocês, inclusive, deveriam seguir no Twitter só para pressioná-la a voltar com a sua newsletter, a No Recreio. Deve ter sido em algum domingo besta que ela sugeriu o Larangin para juntar com o Los Hermanos. Mas o disco era o Ventura, eu acho. Pelo sim pelo não, crédito mais que concedido – até porque quando nessa newsletter sair, estarei em Uberlândia e não quero dormir na casinha do cachorro bem na semana que a gente faz um ano do nosso primeiro beijo. (Sem ofensas, Francisco!)
PS3: Prometo que não vou dar o golpe de fazer infinitas harmonizações com diferentes tipos de gim tônica. Mas pode esperar que ainda não acabou não, vem cá, vem.
PS4: Se você só lê essa newsletter e não está inscrito, faço um apelo: se inscreva. O número de assinantes é a métrica mais importante pra quem, como eu, está começando. Além de me dar um boost de serotonina a cada vez que alguém novo chega no bar, é um sinal de que eu tô indo no caminho certo.
PS5: Sim, eu sei, você quer saber: Camelo ou Amarante? Acho que Amarante, por uma vantagem razoável – ele tem “Sentimental”, “O Vento”, “Condicional” e o disco do Little Joy na conta. Aliás, ninguém quer bancar uma volta do Little Joy? Ia ser bonito, vai.
Grande Capelas! Excelente texto! Que baita nostalgia ler isso tudo… Sou suspeito pra falar de Los Hermanos, pois gosto desde o primeiro disco. E eu era desses fãs que não gostavam de Ana Júlia. Fui em muitos shows deles, inclusive nos famigerados mais recentes em estádios, que tinham cara de caça níquel e tals, mas só queria adicionar que eu estava presente em dois shows que eles fizeram no Cazebre, extremo da ZL, em 2004, com abertura do Cansei de Ser Sexy. Pensando sobre isso recentemente, era um lugar tão improvável, que eu não faço ideia de como eles foram parar lá
Acabei lendo o texto ao som de Picassos Falsos e Acabou la Tequila (confesso que não conhecia quase nada das duas bandas).