#66: “Nana Caymmi (1975)”, Nana Caymmi + Dirty Martini
Direto de um piano bar à meia luz, um brinde a todas as vezes que a gente descobre que está errado.
Às vésperas de completar três anos escrevendo esta newsletter, preciso fazer uma confissão: às vezes, sinto que já escrevi sobre todos os discos que gostaria de discorrer e que já sorvi todos os coquetéis que gostaria de beber. Se eu tivesse sido rigoroso na meta que me impus lá no começo – a de escrever semanalmente –, estaríamos falando de uns 150 álbuns e drinks diferentes. Como pode verificar o conviva no título desta missiva, não cheguei nem na metade. Dia desses, ganhei de um grande amigo um conjunto de cartões com mais de 100 receitas de coquetéis. E minha coleção de LPs e CDs está na casa das 900 unidades, como verifiquei esses dias no Discogs. Ou seja, o que não me falta é material para seguir adiante. Ainda assim, convivo com certa sensação que me remete ao Efeito Dunning-Kruger.
Se você anda pela internet há duas décadas, talvez já tenha ouvido falar dele. Ou até mesmo já tenha sido vítima dessa sensação descrita em 1999 pelos psicólogos David Dunning e Justin Kruger. A ideia é simples: pessoas que conhecem pouco de um determinado campo tendem a supervalorizar seus conhecimentos; já os especialistas no assunto costumam subestimar o que entendem da área. É um fenômeno muito interessante do comportamento humano, demonstrado na prática diariamente nas redes sociais.
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Meu afã intelectual, porém, acha que o buraco é um pouco mais embaixo. Quando o tema é a mixologia, reconheço que meus conhecimentos são limitados. Mas há algo mais além: depois de beber um bocado de maneira informada, convivo frequentemente com a sensação de que já descobri do que gosto, do que não gosto, e que às vezes o custo de experimentar algo novo pode ser muito alto. É uma besteira, claro, mas é com esse tipo de besteira que muita gente convive – e passa um bom tempo sentado em divãs e sofás de terapia.
Já quanto à música, depois de escrever regularmente sobre o tema há uns 20 anos e ter entrevistado um bocado de gente bacana, acho que posso me dar ao luxo de me considerar um especialista. Especialmente se o tema for música brasileira. Mas também convivo com duas sensações engraçadas. A primeira é de achar que certas coisas (artistas, discos, gêneros) “não são para mim”. A segunda, tal como acontece nos coquetéis, é de achar que conforme minha coleção de discos cresce, há cada vez menos vinis bacanas para se comprar por aí. (Não é à toa, por exemplo, que minhas sacolas na feirinha de Santo André se tornaram cada vez menores, menos frequentes e, ao mesmo tempo, mais caras).
São sentimentos meio bobos, eu sei. Afinal, o mundo está cada vez mais cheio de problemas sérios, conflitos geopolíticos e eu aqui falando de discos e coquetéis. Mas eu preciso dizer que é feliz demais o dia em que descubro estar errado. E é disso que trata esta cartinha. Peço perdão ao leitor, mas tomo aqui a liberdade de falar de uma artista e de um drink que nunca me imaginei gostando, que dirá escrevendo com certa paixão sobre os dois assuntos.
Começo pelo drink, só para variar um pouco. Preciso lembrar aqui ao leitor que comecei minha carreira nos balcões bebendo Tom Collins, Cosmopolitans e Sidecars. Três drinks bem diferentes entre si, mas que compartilham uma característica: a acidez e a dulçura disputando espaço em igual medida. Na época, um coquetel que já tivesse uma dose de amargor – como o Negroni – já me parecia suficientemente intragável. O que dizer, então, do Dry Martini, um drink quase salgado, bastante alcoólico e que ainda vinha com azeitonas espetadas? Definitivamente, não era para mim.
Antes de beber o Martini, eu tive de entender o Martini.
Aproveito para dividir meus conhecimentos numa pequena aula: Martini, em si, é a mistura de gim e vermute branco/seco. Ele pode existir em diferentes proporções, ao gosto do freguês. Dá-se o nome de Dry Martini às receitas que têm uma proporção maior de gim para vermute (a partir de 5:1); já um Wet Martini é aquele que equilibra mais os dois líquidos. O Dirty Martini, por sua vez, recebe esse nome por conter não apenas as azeitonas como enfeite no palito, mas também incluir uma pequena quantidade (de 5 ml a 15 ml) da salmoura da azeitona. Por fim, mas não menos importante, não se sabe ao certo como surgiu o Martini. Muitos pesquisadores dão conta de que ele é um derivado do Martinez, que também deu origem ao Manhattan em algum momento entre o final do século XIX e o começo do século XX. Seja como for, há muito tempo tem gente bebendo Martini e deglutindo azeitonas alcóolicas.
Unir-me a esse grupo não foi uma jornada simples. Primeiro, veio o vermute, uma paixão que me arrebatou numa visita à Espanha, como já contei aqui. Depois, veio a azeitona, cujo gosto passou do tolerável para o divertido após algumas doses de jerez no La Venencia. Por fim, a união desses dois elementos com o gim, em um copo só, aos poucos foi ganhando seu lugar nas minhas taças. Já não era sem tempo – afinal de contas, o Martini talvez seja o mais clássico dos coquetéis. Ele é tão icônico que dá nome a uma taça. Ele é o favorito de James Bond (embora, a rigor, o que o 007 goste mesmo não seja um Martini puro-sangue, mas explico depois). E é o coquetel mais piano-bar, samba-canção e fossa que consigo imaginar – uma experiência que até acho chique, mas que nem sempre combina com o meu estado de espírito.
Quem também nunca combinou muito com meu estado de espírito é Nana Caymmi. É estranho: desde criança, sempre gostei muito de Dorival Caymmi. É um compositor que tem muito a oferecer para os pequenos: as histórias fantasiosas do mar, a voz grave, os sambas balançados como “Maracangalha”. Mas nunca me conectei com Nana: no disco de Dorival da coleção da Abril Cultural, responsável pela minha primeira formação com a música brasileira, o “Acalanto” cantado por ela era justamente a faixa que eu sempre pedia pro meu pai pular na agulha da vitrola.
Um pouco mais velho, nem mesmo a trívia de que ela era casada com Gilberto Gil na época de “Domingo no Parque” (simplesmente uma das cinco maiores canções já feitas na história do Brasil, não me perguntem as outras) me fez ter vontade de ouvi-la. E na última década, não teve jeito mesmo: as inúmeras bobagens ditas sobre Caetano, João Gilberto e Gil, além do apoio a Bolsonaro, me afastaram de qualquer chance de apreciar sua voz. Até que Nana morreu, há pouco mais de um mês. O fato teria me passado quase batido, não fosse a quantidade de amigos que lamentaram a partida.
Naquela mesma semana, fui ver Wagner Tiso ao vivo no Sesc Belenzinho. Logo na primeira música, o maestro do Clube da Esquina se debulhou em lágrimas pela lembrança da antiga parceira – fato que eu ignorava até então. Naquela mesma noite, depois de jantar na gloriosa Pizzaria Ideal, voltei pra casa e mergulhei naquele mar. O mar de um Dirty Martini bem feito, o mar que tantas vezes Dorival cantou, o mar que Nana navegou e que estampa a capa de seu disco de 1975.
Para quem se acostumou a ouvir Nana nas trilhas de novelas cantando boleros e sambas-canção de rachar os cotovelos, Nana Caymmi é um disco curioso. Não que as canções tristes não estejam lá – pelo contrário, elas predominam no álbum. Mas há nele uma modernidade que não combina com a pecha de cantora tradicional que por muito tempo se grudou à filha de Caymmi.
São vários os vetores de futuro: primeiro, pela adesão de Nana ao Clube da Esquina, interpretando dois dos maiores standards dos mineiros – “Ponta de Areia”, com direito a vocalise de Milton e piano de Tom Jobim, e “Beijo Partido”, naquela que talvez seja a melhor interpretação do tema de Toninho Horta. Segundo, por conter dois balançados sambas de Carlos Dafé, fazendo uma conexão entre o samba e o soul. Terceiro, mas não menos importante, porque sua interpretação sensível e melancólica de canções como “Saudade” (do pai e de Fernando Lobo) ou “Tens (Calmaria)” (de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza) parecem antecipar o estouro que outra cantora de voz grave (e que amo de paixão) faria pouco tempo depois: Ângela Rô Rô.
Primeiro, ouvi. Depois, entendi. Entendi que era um disco importantíssimo na carreira de Nana, seu primeiro em oito anos no mercado brasileiro. Foi preciso também entender a mulher por trás da voz. Antes de Gilberto Gil, Nana se casou com um médico venezuelano e foi viver em Caracas no início dos anos 1960. Quando o casamento ruiu (sintoma: machismo latino), ela voltou ao Brasil com duas filhas nos braços, um terceiro na barriga e gravou seu primeiro disco pela Elenco. O fim do casamento com Gil aconteceu na época do exílio do baiano. Pouco depois, ela começou a namorar outro gênio: João Donato, com quem ficou até 1974.
A ressaca de tantos relacionamentos difíceis e com personalidades complexas deixou uma marca que se pode sentir na sua voz neste e nos discos seguintes – e que dá à sua obra justamente esse clima de desilusão, de fumaça de cigarros em um piano bar que tanto combina com um Dry Martini. Duvida? Então deposite a agulha na faixa 5 do lado A. Qual? “Só Louco”.
Como toda boa crooner, Nana é aqui acompanhada por excelentes músicos. A ficha impressiona: no piano, além de Tom Jobim, há Ivan Lins e Tenório Jr. – o mesmo que, pouco tempo depois, seria torturado e morto pela ditadura argentina, enquanto acompanhava uma turnê de Vinícius e Toquinho. Na bateria, Robertinho Silva. No baixo, o indefectível Novelli. O irmão Danilo Caymmi acompanha na flauta, enquanto há violinos de Nelson Ângelo e Toninho Horta, que também aparece nos violões e nas guitarras. Tá bom ou quer mais?
Claro que dá para querer mais: além deste disco de 1975, é mais que recomendada a audição dos discos que a cantora gravou até 1980, seja pela CID ou pela EMI. Neles, há grandes interpretações para canções como “Milagre” (do pai), “Pois É” (de Chico e Tom), “Cais” (de Milton e Ronaldo Bastos), “Clube da Esquina nº2” (de Lô e Márcio Borges), “Meu Bem Querer” (de Djavan) ou “Mistérios” (de Joyce e Maurício Maestro). São todos mares para se navegar, variações do mesmo tema – da mesma forma em que o Dry Martini tem várias proporções para atender ao gosto de diferentes fregueses, mas partindo basicamente de uma mesma receita.
E antes que eu fale da receita, preciso dizer: descobrir Nana Caymmi me deixou feliz. Não só porque ganhei novos discos para caçar por aí e adicionar à minha coleção. Mas também porque é bom se dar conta do tamanho da nossa ignorância e do que se pode perder ao deixar de lado um ou outro nome por um preconceito banal. Assim como passar a apreciar o Martini, seja ele seco ou sujo, também me deixa feliz: é uma amostra de que assim como o mistério, a surpresa também sempre há de pintar por aí. Que seja assim por toda a vida.
A Receita
80 ml de gim
20 ml de vermute seco
10 ml de salmoura de azeitona
3 azeitonas para enfeitar
Fazer um bom Martini – seja ele dry, wet ou dirty – não é exatamente difícil. Mas demanda algumas habilidades especiais. A primeira é saber que você não deve seguir o James Bond: ao contrário do que diz nosso querido 007 (especialmente se for o Sean Connery), um bom martini é “mexido, não batido”. Ou seja, nada de sair batucando sua coqueteleira por aí querendo imitar o Robertinho Silva.
A segunda é descobrir a sua proporção favorita. Aqui em casa, descobri que a minha predileção para um Martini é a de 4:1 (80 ml de gim, 20 ml de vermute). Ou melhor, é um Dirty Martini em 8:2:1, com uma generosa porção de salmoura de azeitona e uma porção de azeitonas para enfeitar. Dito isso, o terceiro passo é simples. Você deve dispor todas as bebidas em um mixing glass com gelo, mexê-las com uma colher bailarina e depois coar o líquido (sem as pedras de gelo!) para uma taça Martini previamente gelada. Importante: aqui, usei um gim da Geest e o vermute foi o Extra Dry da Martini.
“Ah, Capelas, mas eu não tenho nenhuma dessas ferramentas”.
Ok: segundo o nosso querido guia de coquetelaria do improviso, você pode usar até mesmo o copo de sua coqueteleira ou um copo alto como mixing glass. Já a bailarina pode ser uma colher de suco, com cabo comprido, ou em último caso uma colher de sopa. E o coador pode ser qualquer coador, sabe? A taça de Martini, aqui, talvez seja o item mais importante – embora, na pior das hipóteses, você possa improvisar com uma taça de vinho. Pra fechar a conta, espete as azeitonas num palito de dente e corra para o abraço. Ou melhor: repita a receita até achar sua medida ideal.
Depois, quero saber: qual é a sua proporção favorita para o Martini?
Reclames da Quinzena
Nas últimas semanas no Programa de Indie, eu e o parceiro Igor Muller fizemos de tudo um pouco: falamos da maratona de festivais com C6 Fest, Popload Festival e Virada Cultural, lembramos os 30 anos do maravilhoso Grand Prix, do Teenage Fanclub, e prestamos nosso tributo a um dos maiores gênios da música popular: Brian Wilson. Só coisa fina.
Dias também de alta atividade no Scream & Yell: tem entrevista com o Lemon Twigs e resenha do show deles no Cine Joia; tem também resenha do Deep Purple no Best of Blues, Richard Ashcroft falando que queria ser brasileiro e jogar bola e uma das coisas mais legais que eu fiz na minha carreira: bater um papo com o Wilco. Para fechar, tem ainda minha cobertura especial do Festival Casarão em Porto Velho, em quatro dias de grandes shows de Mombojó, Maglore, O Tronxo, 43duo, Daniel Groove e muito mais!
Em Cajuína, tem uma matéria bacana falando sobre como a gestão de benefícios tem mudado para as empresas.
Pra fechar a conta, no YouTube tem uma porção de vídeos dos muitos shows dos últimos dias: do já citado Deep Purple à cobertura do Festival Casarão em Porto Velho e também em Manaus.
Só louco… para não dar uma chance a Nana Caymmi depois desse texto, né? Nos vemos na semana que vem.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto, como já dito, foi escrito não só ao som de Nana Caymmi, de 1975, mas também dos vários e belos discos que a cantora lançou dali até o começo dos anos 1980. É um mergulho que merece e muito ser feito numa madrugada qualquer, quando o som da cidade já está mais baixo que o de costume.
PS2: Confesso que o texto da semana já estava pronto para ser enviado na última quinta-feira. Mas o fato de ser uma quinta-feira de feriado e de eu estar em Rondônia para cobrir pela terceira vez o Festival Casarão fez com que eu decidisse poupar esforços. Para compensar, vou tentar escrever algo bacana pra semana que vem. Desejem-me sorte :)
PS3: Ansioso demais para ver o show que Alice Caymmi, sobrinha de Nana e neta de Dorival, está fazendo para homenagear a tia. Em tempo: o espetáculo existe desde 2018, mas voltou “à baila” nas últimas semanas. Que venha logo para São Paulo. Por falar em Alice, ela acaba de lançar um single bacanudo com o grande Lucas Gonçalves. Ouve aí.
Maravilha de texto, Bruno. Vencer preconceitos pode trazer uns bônus bacanas. Corri para ouvir Nana! :)