O que é um bar?
Uma pequena reflexão sobre bares estrelados, rankings de coquetelaria e lugares onde a gente se sente à vontade de verdade, com um abraço para aquela crônica do Antonio Prata
Meu bar favorito no mundo fechou há alguns meses. Ou melhor: ele fechou do jeito que existia antes, no lugar em que eu o frequentei por muitos anos, e reabriu em outro lugar. Ainda não fui visitar a sede nova (para matar a saudade dos ótimos pastéis e pudins que ele servia), mas confesso que me dá um aperto no coração toda vez que passo pela Avenida Celestino Bourroul e vejo que aquele cantinho especial do mundo, o antigo Jhoony's Bar, não existe mais. É especialmente triste ver que o charmoso puxadinho, onde tantas vezes chorei as mágoas ou comemorei o fim de mais um pescoção, foi demolido e agora abriga um espaço para que três ou quatro carros fiquem estacionados.
Enquanto trabalhei por anos e anos no Estadão, o Jhoony's (também grafado como Jhonny’s, Jhony’s, Johny’s e uma série de outras variações nunca exatamente fixadas) era uma espécie de segunda casa – não só minha, mas da própria redação. Ali eu sofri, chorei, flertei, tive crises de ansiedade, fiz amigos e inventei planos de pautas malucas. Tempos depois, quando passei a escrever sobre o mundo do trabalho, entendi que o bar era parte de uma cultura própria do jornal. Um lugar que, caso você o frequentasse, passava a fazer parte de um grupo nem-tão-secreto, em que as pessoas se reconheciam não só pelo local de trabalho, mas também por uma espécie de camaradagem. Um companheirismo que dividia não só o cotidiano de um ambiente de trabalho complicado, mas também a capacidade de abstrair aquela carga pesada num copo de cerveja e numa porção de torresmo ou panceta.
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
Gosto muito dessa ideia (e dessa rima) que vê o bar como um lar fora do nosso lar, um pouco na extensão da ideia de que um restaurante (onde vamos para comer) tem esse nome porque ali se restaura um bocado do nosso espírito. Pode parecer místico, mas pensei bastante nesse tipo de coisa enquanto viajava por Buenos Aires, num périplo que tinha como um de seus objetivos verificar um bocado da cultura boêmia da capital dos nossos vizinhos. Mais que isso: depois de passar algumas noites en la barra de estabelecimentos listados como os melhores bares da América Latina, me pus a pensar no que de fato fazia um bar ser um bom bar – ou, se me permitem o exagero, um “bar foda”.
Há algumas semanas, listei aqui alguns desses endereços e nobres estabelecimentos – caso do CoChinChina, do Presidente e da Floreria Atlantico. Em quase todos eles, bebi excelentemente bem, pagando um preço razoavelmente justo (ainda que o câmbio na Argentina ajude demais) e aproveitando novos sabores. (A combinação de Fernet com abacaxi alugou um departamento na minha cabeça e vai demorar para desocupar o imóvel). Mas em todos eles, de alguma forma, eu me senti desconfortável, longe daquela sensação de quem senta na poltrona de casa para desafogar as mágoas.
Talvez porque para decifrar as cartas e cardápios de cada um deles seja necessário um curso avançado de mixologia. Ou porque em todos eles precisei entrar com reserva, longe daquela espontaneidade de quem termina um dia difícil de trabalho e precisa de um trago. O atendimento não ajudou muito, indo do mal educado (a recepção da Floreria Atlantico na primeira tentativa) ao atencioso, porém distante (no CoChinChina).
Sei muito bem que isso faz parte do processo industrial – e metódico – que um bar profissional precisa, ainda mais quando se dedica a servir convivas com misturas que demandam ousadia. Percebi isso de maneira ainda mais extrema no dia em que eu e a namorada Anna Vitória sentamos à barra do El Preferido de Palermo, um boteco de bar no bairro homônimo, transformado em gastrobar e restaurante de alta fidelidade gastronômica por seus novos donos. Ver uma cozinha de precisão funcionando é um negócio tão bonito quanto exasperante: é necessária uma concentração extrema, uma força na repetição de movimentos – algo que eu, que uso a pia da minha cozinha como ponto de partida para aplacar nervosismos fatiando cebolas e tomates, nunca seria capaz de fazer. Mas divago, pois falei de restaurantes – ainda que o processo de repetição & variação seja bastante parecido num bar.
Por outro lado, em poucos lugares me senti tão confortável na capital argentina quanto no Varela Varelita – um bar de bairro, em que senhores de idade liam jornal ou preenchiam uma planilha no notebook enquanto tomavam um Cynar, um Campari ou um Fernet. Não foi só a clientela, porém, que me fez ficar à vontade: desde o primeiro momento, o garçom (de quem indesculpavelmente não perguntei o nome) conversou comigo, me fez rir, me mostrando um jeito próprio de servir a bebida e usando humor ao ver nossos sorrisos na primeira mordida numa deliciosa empanada de queijo e cebola.
A amigos que já foram a Buenos Aires depois que regressei, fiz uma lista muito particular de dicas – além das que já coloquei aqui. E claro que Floreria, CoChinChina ou Presidente apareceram, mas a ênfase, sempre ela, a ênfase era que os amigos não deixassem de ir ao Varela Varelita. Que, aposto eu, nunca vai aparecer em lista nenhuma de 50 Best Bars, nem ser lembrado por seus coquetéis. Mas é o que eu chamaria sem pestanejar de “bar foda”.
Eu sei, eu sei, que o que mede um bar bom nesse tipo de ranking é justamente a qualidade da mixologia, da coquetelaria, dos ingredientes e processos envolvidos. Nada que o Varela Varelita tenha de especial – é o próprio conviva que decide a mistura de um Cynar Pomelo, a partir de uma dose de Cynar e uma garrafinha do refrigerante Schweppes Pomelo, não o bartender ou o garçom. Assim como nada que o Jhoony também tenha – lá, o máximo de mixologia que se podia alcançar era uma limonada ou um Campari servido com casca de laranja.
E sei que para quem está entre os 25 e os 50, é difícil falar em “bar bom” sem pensar no seu oposto, o “bar ruim”, numa expressão que já se complementa automaticamente com a sequência “é lindo, bicho”. “Bar ruim é lindo, bicho” é o nome de uma das crônicas mais felizes do Antônio Prata, escrita ali no meio dos anos 2000 e símbolo para toda uma geração que se diz “meio intelectual, meio de esquerda”. Lá pelo meio da crônica, ele define a parada mais ou menos assim:
“Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte do Brasil, por isso vamos a bares ruins,que tem mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gateau e não tem frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira que são os pratos tradicionais de nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma Europazinha bem que ajuda.”
A crônica do Antonio Prata, eu sei também, tem lá um tanto de autogozação e de carapuça a se vestir – afinal de contas, é fácil demais pra gente como eu recorrer ao petit gateau ou a um Tanqueray Ten se necessário. Carapuça vestida à parte, fato é que é fácil pensar no Jhoony’s como um arquetípico bar ruim – o pastel, o pudim, o torresmo, o churrasco que era servido às sextas-feiras, o parmegiana e o glorioso X-Saldaña (pão, filé de frango à milanesa, queijo e tomate) são apenas outros substantivos onde cabem ali o frango à passarinho e a carne de sol com macaxeira. Ou no Varela Varelita, onde as empanadas são das melhores que já comi, embora as cadeiras de madeira possam não ser lá tão confortáveis.
Considero o ponto ainda que, em muitos desses estabelecimentos estrelados que eu visitei, eu era só mais um turista deslumbrado buscando conferir “se o Barcelona era tudo aquilo mesmo” – e não há nada mais aburrido que um turista deslumbrado. Mas quando penso nos bares mais ou menos estrelados que já visitei em São Paulo, também tive sensações parecidas de certo estranhamento. Talvez porque eu seja um rapaz luso-americano sem muito dinheiro no bolso e definitivamente sem parentes importantes, mas enfim…
O que quero dizer com isso tudo é que nem sempre o melhor bar é um bom bar. Ou um bar foda, como quis postular ali em cima. Às vezes, o lugar com os melhores coquetéis do mundo te fará se sentir um lixo de pessoa. Às vezes, um bar que oferece nada mais nada menos do que apenas uma lista de produtos industrializados em combinações diversas pode ser o melhor lugar do mundo – e posso lembrar de cabeça dos botecos que só eram capazes de vender amendoim na fileira dos “comes”. Da mesma forma que um coquetel feito com 51 e limão pode superar qualquer mistura que envolva um uísque envelhecido em muitos anos em barris de pau-brasil esculpidos por artesões suíços. (Isso nem existe, mas cês entenderam).
O que faz um bar ser uma segunda casa, devo dizer, vai além do que se bebe ou deixa de beber, da decoração nas paredes ou mesmo da companhia com quem você vai lá. É uma combinação de tudo isso ou de nenhuma dessas coisas, mas é parte da ideia de que você sai de lá melhor do que entrou, mesmo que de bolsos mais vazios.
Dito isso, continuarei a ir em bares “arrombados”, como um amigo meu me pentelhou esses tempos – além de pesquisa e aprendizado, eles fazem parte de uma experiência muito particular para mim: a de fingir, por hora ou outra, que eu posso pertencer àquele espaço. Por outro lado, quando penso num lugar para encontrar um amigo, num lugar que pode me ajudar a superar um dia difícil ou num espaço para celebrar uma vitória específica, vou quase sempre pensar num “bar ruim”, que é também um “bar foda”. Provavelmente é lá que você vai me encontrar, talvez pedindo a um garçom uma das mais bonitas combinações de sete palavras da língua portuguesa:
“Uma Original e dois copos, por favor!”
Reclames da Semana
Dose dupla no Scream & Yell nessa última semana: vi ao vivo o showzão do Ritchie (sim, o homem de “Menina Veneno”) e também bati um papo com o grande Ricardo Schott, dos caras que mais me influencieram a ser jornalista de cultura, sobre o livro novo dele, Terra Trio – sobre o grupo homônimo que tocou com gente como Maria Bethânia e Nara Leão.
Depois de muita turbulência, finalmente eu e Igor Muller conseguimos parar para registrar boas novidades no Programa de Indie da última semana, com direito a lançamentos de Blur, Teenage Fanclub e pequenos registros sobre o C6 Fest e o Festival Casarão.
Pra fechar, uma lista de dicas de leitura lá em Cajuína com o tema diversidade – e devo confessar que o Racismo Estrutural do ministro Silvio Almeida tá há alguns meses esperando na cabeceira, talvez seja finalmente a hora de encará-lo.
Nos vemos na semana que vem?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Na última semana, eu segui podendo não beber e só fui liberado na quarta-feira. Além disso, a semana foi muito difícil, por trabalho e motivos particulares. Por conta disso, senti que não estava à altura de escrever um texto sobre um disco ou um drink importante, como se deve. Voltamos na semana que vem com a programação original.
PS2: Fiquei muito, muito feliz com a resposta de vocês com o texto do Black Alien – sei que o disco ajuda, mas me senti muito abraçado pela recepção a esse monte de palavras doidas que eu digitei na tela. Provavelmente isso vai me ajudar a desencavar outros traumas e noias que tão na cabeça aqui nessa newsletter, então não digam que eu não avisei.
PS3: Talvez vocês tenham notado uma pequena mudança nos números dos textos – enviei o Black Alien como #38, mas ele está no site deste Substack como #34. Isso porque cansei padronizei os números dos textos, finalmente, deixando apenas numeradas as postagens que tem discos e drinks juntos. Manuais, Guias de Viagem e pequenas reflexões, como esta, deixam de ser numeradas, pra evitar confusão. E deixam de pular contagem, como fiz em algum momento num exercício retórico maluco. A gerência pede desculpas pelo transtorno – e aproveita para avisar que o índice desta newsletter também está atualizado!
PS4: Vi que muita gente chegou à newsletter essa semana, mas não sei de onde. Fiquei muito curioso para saber se rolou alguma indicação especial recente ou apenas uma conjunção astral-internética. Adoraria saber mais nos comentários (até para agradecer a indicação!). Além disso, sempre bom: sejam muito bem vindos, desculpem a bagunça e aguardem até a semana que vem para visitar a nossa cozinha.
PS5: À guisa de rodapé e explicação, preciso contar que o Jhoony’s Bar, onde até lancei meu livro certa vez, fechou do jeito que existia por dois motivos. O primeiro, que abateu tantos bares, é a pandemia. O outro é a crise do jornalismo – com cada vez menos gente trabalhando numa redação, aos poucos o “bar do jornal” foi se tornando insustentável naquele lugar. Aos interessados em conhecer sua nova versão, ele está na Rua Marambaia, 20, na Casa Verde. E não, não é o Jhony’s (com um O só!) da Santa Cecília – o parmê na Zona Norte é mais gostoso, viu?
O parmê do Johny's da Sta Cê é bem médio, porém servido. Entendo demais isso q vc tá falando. Sinto falta de um bar p chamar de meu, e ando explorando os do bairro atrás do lugar certo: com coquetéis bons porém baratos (não bebo cerveja), comes honestos e aquele ambiente de boas onde uma mulher pode sentar sozinha sem ser incomodada (é raro). Não achei, mas sei que existe.