#58: “Sky Blue Sky”, Wilco + Blue Bird
O primeiro texto de um disco americano da newsletter é minha desculpa pra falar sobre o meu bar favorito – o Twitter – e a banda que todo mundo gosta lá
O ano era 2007. Pela primeira vez na vida, eu precisava acordar verdadeiramente cedo – em muitos dias, lá pelas cinco da manhã – para pegar o ônibus rumo ao colégio, saindo de São Caetano e indo até a Vila Mariana. No começo do ano era fácil, mas conforme abril e maio foram chegando, os casacos iam se tornando mais presentes até um ponto em que passar frio a bordo de um Mercedes-Benz para muitos passageiros era quase inevitável. O jeito era apelar para uma trilha sonora que pudesse me esquentar. Dois discos são especialmente marcantes daquela época em que eu estava descobrindo tanta coisa. Um era Send Away the Tigers, do Manic Street Preachers, com seus poderosos riffs de guitarra. O outro era Sky Blue Sky, do Wilco, o primeiro disco que eu verdadeiramente amei da banda de Jeff Tweedy e seus amigos – talvez por sua sonoridade digna do alvorecer de cada dia.
Dois anos depois, eu continuava pegando o mesmo ônibus para o mesmo colégio, mas o traçado não era exatamente o mesmo – a expansão da Linha 2-Verde do metrô rumo ao Ipiranga fez com que minha vida fosse ficando mais fácil ao longo dos anos. Eu já não passava tanto frio no ônibus, ainda mais por estar com o coração envolvido em um romance adolescente. A namorada da época já fazia faculdade e certo dia falou: faz uma conta nesse tal de Twitter que todo jornalista tem. Vestibulando, prontamente obedeci sem ter muito o que dizer naquela rede social, que eu achava meio esquisita por não ter um perfil organizado nem comunidades como o Orkut. Mas acabei ficando. E aos poucos, ela foi se tornando parte da minha personalidade, da mesma forma que o Wilco também se tornou – é de longe a banda da qual tenho mais camisetas, além de ser o único grupo a quebrar o monopólio dos Beatles nos pôsteres de casa.
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Gostar de Wilco e postar frequentemente no Twitter são dois aspectos que se prenderam à minha personalidade de muitas maneiras. O aspecto mais importante hoje em dia é que as duas coisas me conectaram de cara com a Anna Vitória Rocha – uma das poucas pessoas que eu consigo dizer que é mais fã do Wilco que eu. Mas há muito mais que isso: graças ao Wilco, eu conheci muita gente bacana, incluindo até o autor de um dos meus romances favoritos da vida. E graças ao Twitter, eu vivi uma porção de momentos incríveis, conheci grandes amigos, flertei muito e até mesmo alcancei gente que nunca imaginei alcançar – incluindo trocar mensagens com a Anitta sobre Strokes. E alcancei também em termos literais: no meio do tédio da pandemia, escrevi uma thread com mais de 350 tweets sobre o Castelo Rá-Tim-Bum que, da última vez que eu olhei, tinha uns 10 mil likes.
É importante falar na Anna Vitória porque uma das primeiras interações que a gente teve na rede social foi um papo sobre internet. Um tweet meu acabou indo parar numa newsletter dela com o sugestivo nome de “Pra internet ser legal de novo”. Eu achei o papo tão legal que convenci minha chefe no Estadão a gravar um podcast inteiro sobre esse tema – dentro daquela ilusão que a gente ainda tinha, no longínquo ano de 2018, que a internet podia ser um lugar massa. (Não contei pra chefe que eu queria usar o podcast como assunto para estreitar a conversa com a moça, claro. O que deu errado, diga-se de passagem – por não ter citado o crédito no texto em que a gente publicava o áudio, a Anna ficou com raiva, nunca deu play e esse episódio se perdeu no éter da problemática documentação das grandes redações. Anos depois, espero ter me redimido).
Eu penso nessa história do parágrafo anterior com alguma frequência. Não é só porque ela poderia ter antecipado em uns três anos o meu namoro atual, que faz três anos nesse final de semana – embora a maturidade me diga que tudo acontece no seu tempo certo. Mas também porque tenho pensado muito em como a internet era mesmo um lugar legal. Eu lembrei disso esses dias porque passei horas jogando Age of Empires numa madrugada pela primeira vez na vida sem ter medo do meu pai me surpreender na sala falando: “filho, você tem que ir dormir, já tá há oito horas na frente desse computador”.
Quando eu não estava jogando Age ou Civilization, eu estava frequentando fóruns, escrevendo para o meu blog ou lendo blogs de outras pessoas. O que, anos depois, seria como ficar o dia inteiro no Twitter. Não vou aqui pensar muito sobre o fato de que o Twitter ajudou a matar a blogosfera como a gente conhecia antes. Nem dizer que o mundo das newsletters é meio que uma tentativa gourmet de reviver aquela gostosa anarquia lá de trás. Mas tenho pensado muito em como foi que a internet deixou de ser o lugar que eu frequentava todos os dias – afinal, a gente entrava e saía da internet, tinha até tática pra fazer isso no MSN pra chamar atenção dos crushes – para descobrir bandas incríveis e virou… bem, essa coisa aí.
O engraçado é que, em certos aspectos, demorou pra virar essa coisa aí pra mim. Eu passei anos da minha carreira cobrindo tecnologia e enquanto o Facebook ou o WhatsApp se tornavam lugares bizarros e cheios de fake news, o Twitter era meio que meu reduto particular. Meu jardim secreto onde eu e meus amigos fãs de Wilco podíamos imaginar como o mundo seria se todo mundo entendesse como o Yankee Hotel Foxtrot é a melhor coisa desse século. Sim, era uma definição de bolha, mas uma bolha bem construída e curada ao longo de uma década de utilização. Um bar bacana onde tinha uns caras esquisitos (tipo eu), umas minas legais e onde os caras malas, como diria o Antonio Prata na clássica Bar ruim é lindo, bicho, não entravam. O Twitter era só a empresa que nunca dava lucro. Que não conseguia crescer. Mas que ainda assim era relevante socialmente.
Até que um dia os caras malas começaram a chegar no bar. E não só chegaram como decidiram comprar o bar. Não era exatamente uma ideia de negócio, mas sim um projeto de poder – afinal, se aquele bar era tão relevante, o melhor a fazer era tomar conta dele para evitar qualquer incidente. Eu sei que parece meio coió falar assim de uma empresa que no fim das contas faturava em cima do que eu produzia de graça. Eu sempre ficava frustrado, inclusive, quando ia entrevistar um executivo do Twitter no Brasil e eles só sabiam falar de publicidade, mas não entendiam a beleza do caos que havia naquele boteco. Era como mostrar Wilco pra alguém que falava: “ah, legal”, mas não entendia a graça. (Durante muitos anos, esse alguém foi meu pai. Desculpa aí, seu Capelas).
Eu tenho pensado em escrever sobre o Twitter há um bom tempo – desde quando Elon Musk comprou o site, pelo menos. Mas eu não sabia se tinha algo para contar de verdade. Até porque eu não conseguia largar: mesmo vendo os amigos indo embora do bar, mesmo vendo uns caras estranhos tomando conta, eu ainda reconhecia muita gente naquele canto. E por mais que o serviço fosse piorando, era como se eu não pudesse largar daquela experiência maluca e diária. Era… bem, era um vício. Até que um dia a vigilância sanitária fechou o bar – e por vigilância sanitária entenda… Xandão. Do dia pra noite, eu fui pro Bluesky, que nunca tinha me atraído muito. Mas lá fiquei. E lá estou feliz.
Não que eu ache que o Bluesky seja uma maravilha: é, como qualquer rede social, um site que está à espera de ser invadido por fascistas malucos e por propaganda de toda sorte. Mas por alguns instantes, ele tem resgatado o espírito de como era o Twitter de antigamente, sem nudes no meu perfil, anúncio de bet, filho da puta falando de criptomoeda ou hashtags a favor do Bolsonaro. Já é alguma coisa. Mais que isso: ele mostra as coisas que eu escrevo pras pessoas que querem me ler – e vice-versa –, ao contrário do que estava acontecendo no Twitter. E seu dono não é um filho da puta que vai ajudar a explodir o planeta (eu estava contando que este texto seria escrito com a vitória da Kamala, mas nem isso dava pra gente ter). E não quero falar ainda do que aconteceu lá nos EUA, mas tem um certo zeitgeist nessas coisas todas.
Nas últimas semanas, uma das discussões mais frequentes no Bluesky era se a gente estava dentro de uma bolha na rede social. Acho que sim – mas pela primeira vez, talvez seja bom estar dentro dessa bolha e não colaborando com o projeto de sequestro de poder do Elon Musk. Também acho que pode ser bom estar nesse lugar meio quentinho, meio confortável, pelo menos enquanto ele puder existir.
O que me leva de volta ao Wilco e o seu Sky Blue Sky, possivelmente o último grande disco que a banda de Jeff Tweedy fez. Depois de passar quinze anos brigando com vícios e também com outros criativos membros da banda, Tweedy parece ter chegado nesse álbum a um formato mais fixo de canção que ele levaria adiante pelas últimas duas décadas. É uma estrutura bem setentista, retrô, quase nostálgica – o que parece pouco para uma banda que ousou olhar para o futuro tantas vezes. Mas que funciona e que me conquistou lá atrás, assim como conquistou tantos fãs que tem esse disco como o seu favorito. É como ele mesmo diz no disco: “Com um céu azul, esse tempo roto não pareceria tão ruim pra mim agora. Eu não morri, eu deveria estar satisfeito, eu sobrevivi. É bom o suficiente por agora.”
Eu sei: bom o suficiente é muito menos do que merece um disco que tem “Impossible Germany”, provavelmente um dos solos de guitarra mais bonitos desse século. Mas a atmosfera de Sky Blue Sky tem mesmo esse espectro de uma tranquilidade meio melancólica, um calor deprê, como quem busca certa beleza em meio ao caos – nem que seja o caos da vida doméstica, como acontece na maravilhosa “Hate It Here”.
Mas eu divago. O que eu queria contar aqui mesmo é que eu sinto falta daquele bar onde eu bebi tanto. Mas ele simplesmente não faz mais bem nem pra mim, nem para quem está à minha volta. Já o substituto é bom. Não bom o bastante para apagar aquela saudade de tempos mais inocentes e inconsequentes. Mas bom para me ajudar a viver mais tranquilo com mais uma coisa que fazia parte de mim e não me fazia tão bem assim – algo importante nesse ano de tantas reconstruções. A internet não vai voltar a ser legal de novo, e eu sei que tô meio atrasado nessa conclusão. Mas talvez ela possa ser um lugar minimamente agradável se a gente tentar – e juro que é meu maior esforço neste balcão.
Assim como talvez o Wilco nunca mais cometa uma obra-prima como fez entre 1995 e 2007. Tudo bem: eu ainda estarei todos os dias tentando fazer alguma piadinha e com certeza estarei nas primeiras filas do show que eles vão fazer aqui no Brasil ano que vem. A gente se vê no Ibirapuera?
E se você precisar de ajuda para amar essa banda, vem comigo: aqui tem uma playlist bacana pra começar. Você não vai se arrepender.
A Receita
50 ml de gim
20 ml de licor de laranja Curaçau Blue
20 ml de suco de limão siciliano
10 ml de xarope de amêndoas (orgeat)
Eu tinha tanta coisa para dizer sobre a internet, o Twitter e as minhas memórias que nem falei do drink. Eu sei, dei um golpe hoje. Mas é fácil entender a piada: Blue Bird é “pássaro azul”, o mascote que deu símbolo ao Twitter durante anos e anos, antes do X do problema. (Sim, eu me nego a chamar o Twitter disso aí). Já o nome do disco do Wilco, bem, é praticamente o nome da tal nova rede social.
Assim como as minhas memórias, o Blue Bird é um drink bem doce e até meio cafona, quase brega. Não é de se surpreender: ele tem curaçau blue, que é um ingrediente espalhafatoso. E tem xarope de amêndoas, que dá uma cara tiki a um coquetel que, outra maneira, seria apenas um gin sour elaborado. É um drink que tem gostinho de rock cafona anos 1970, de soft rock, uma sonoridade que tem tudo a ver com o que o Wilco emula em Sky Blue Sky. Um drink de pai para o disco que inaugurou um gênero chamado de dad rock – tudum-tss!
Fazer um Blue Bird é tarefa simples, prometo. Basta colocar todos os ingredientes acima na coqueteleira e bater com bastante gelo por uns 10 a 15 segundos. Depois, vale a pena coar tudo e servir em uma taça de Martini, se possível previamente gelada. Se mais possível ainda, pode usar uma taça coupé – e quanto mais espalhafatosa, melhor. No que diz respeito aos ingredientes, aqui em casa usei gim Beefeater, Curaçau Blue da Stock e o xarope de amêndoas da Monin, também conhecido como orgeat.
Dá pra fazer orgeat em casa? Dá, mas é trabalhoso e custa caro também (cês já viram o preço da amêndoa?!). Como últimos pontos, preciso dizer ainda que é claro que dá pra usar qualquer triple sec no lugar do curaçau blue (mas não vai ficar um Blue Bird) e que adaptei levemente a receita do Difford’s Guide, reduzindo em 5ml a proporção do licor para reduzir um pouco a porrada da doçura. Mas fica a critério do freguês ou freguesa…
Reclames da Quinzena
O Programa de Indie chega em dose tripla, refletindo a maratona de shows dos últimos e dos próximos dias. Tem papo com o Fernando Dotta, da Balaclava, sobre o Balaclava Fest e Smashing Pumpkins; tem entrevista com o Jason Williamson, do Sleaford Mods, e as novidades de outubro com a estreia da coluna do Carlinhos Carneiro, eterno vocalista da Bidê ou Balde – algo que deixaria o Bruno de 2007 muito, mas muito feliz.
Na Exame, tem uma entrevista minha com a Mia Nygren, chefona do Spotify na América Latina, fazendo um balanço dos dez anos do serviço de streaming aqui no Brasil. Desse papo também veio o convite pro tributo da Marília Mendonça, viu?
Não escrevi nada pro Scream & Yell recentemente, mas minha entrevista com as argentinas Fin del Mundo foi traduzida pra italiano (!) pelo Kalporz, site parceiro da casa. Ó que massa!
Na GQ Brasil, cujas páginas eu não frequentava faz um tempo, tem uma entrevista minha com a Viviane Senna, falando dos 30 anos da morte do Ayrton e da criação do Instituto Ayrton Senna. Modéstia à parte, ficou bem massa.
E no canal do YouTube, tem vídeos dos muitos shows da última semana, incluindo Ludovic acústico, Smashing Pumpkins, Travis e Sleaford Mods. Ó só que belezinha! (Além disso, massa demais encontrar fãs da newsletter nos rolês <3)
Vou dizer nada não por aqui. Se eu soubesse assobiar, assobiaria o solo de “Impossible Germany” até a próxima edição. Pororô, pororôrôrô…
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi obviamente escrito ao som de Sky Blue Sky, do Wilco. Já o drink, vou confessar, foi feito numa noite em que eu via Masterchef com a Anna Vitória. Estamos preocupados: o que vamos fazer depois que essa temporada acabar?
PS2: Se você quer saber mais sobre o Wilco além da playlist que eu recomendei acima, tem nada menos que três Programas de Indie especiais sobre a banda – em sua trilogia máxima, Being There, Summerteeth e Yankee Hotel Foxtrot. Acho que vale a pena conhecer. Além disso, também deixo aqui meu texto sobre o show que vi deles em 2022, em Zaragoza, que teve uma coisa engraçada: foi um show sem Nels Cline, o guitarrista que faz justamente “Impossible Germany” ser o que é.
PS3: É a primeira vez que escrevo sobre um disco anglófono aqui na newsletter. Talvez não fosse exatamente o que vocês esperavam quando fiz essa promessa. Mas quero saber o que vocês acharam – ou se o melhor é ficar mesmo nos discos nacionais/latinos/lusos.
PS4: A última coisa que eu queria dizer sobre o Bluesky é que é muito bom estar numa rede que não boicota o Substack. Usá-la diariamente é um dos motivos que ajudou a dar um empurrãozinho para eu voltar a escrever a newsletter. Mais um motivo pra vocês agradecerem o Xandão.
O solo me lembra Benson em Breezin. Amo!
ouvi demais, demais, demais