#26: “Baladas Sangrentas”, Wander Wildner + New York Sour
"Vou me entorpecer bebendo vinho/eu sigo só o meu caminho"
Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro. Não fui eu quem disse isso primeiro, foi o Wander Wildner, mas desde que eu a ouvi lá em 2005, ela se tornou uma verdade à qual eu me apego de vez em quando. É engraçado: quem me conhece de perto normalmente tem uma das duas seguintes impressões sobre mim. Há amigos que me acham um cara otimista (e sonhador) até demais. Outros me acham pessimista e dizem que eu só ouço música triste. Alguém um disse me dia que o caminho do meio é a virtude, então tento dançar nessa corda bamba, mas certas semanas são mais cinzentas que outras. E quando essas semanas surgem, acaba sendo meio infalível recorrer ao grande Wander Wildner, o ex-replicante que, por sorte, estava passando por São Paulo no final de semana passado.
Ouço Wander Wildner desde 2005, quando ele conquistou uma nova legião de fãs ao participar do Acústico MTV Bandas Gaúchas, um marco temporal na minha educação musical, como já falei aqui na Meus Discos. Mas acho que só fui entender mesmo muitas das coisas que ele dizia entre 2015 e 2019, quando vi um punhado de seus shows em São Paulo, sempre acompanhado do trio Marcelo Costa, Tiago Trigo e um copo de cerveja. Virou quase um ritual quando a vida estava meio amarga: abraçar esses dois, me afundar em mares de cerveja e me esgoelar cantando junto com Wander era uma forma de achar que a vida fazia algum sentido. Acordar sorrindo no dia seguinte, quase sempre um domingo, já servia como um regulador de humor melhor que muito tarja preta.
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Pra muita gente, Wander é tão-somente o vocalista d’Os Replicantes, uma das mais originais banda punk que o Brasil já teve – e o disco O Futuro é Vórtex ou canções como “Sandina” e “Astronauta” não me deixam mentir. Há quem prefira só ver nele uma caricatura, o punk que misturou seu som com o brega, soando apenas como uma versão “refinada” de Falcão ou algo assim. Pura bobagem: buscando sempre ser “o rei do iê-iê-iê”, Wander é o dono de uma poesia muito direta, com imagens simples e às vezes até chocantes por sua franqueza. Para quem não teve a sorte de encontrá-lo na época do Acústico MTV, talvez seja uma ótima pedida começar por Baladas Sangrentas, seu disco de estreia de 1996 e produzido pelo mesmo Tom Capone de quem tanto falamos na semana passada.
Batizado em homenagem a dois filmes (um com Elvis, outro com Jimmy Cliff), Baladas Sangrentas está longe de ser um disco tosco. É claro que algumas por meio de suas veias corre sangue punk, seja na abertura “Ustê”, na mochileira “On the Road” ou na direta “Burguês”. Mas também nele há declarações desbragadas de amor, como a incrível “Empregada”, herdeira direta de Odair José. Isso para não falar em melôs empolgantes à la anos 60, boas de ouvir na pista, como a icônica “Lugar do Caralho” (e sua maravilhosa citação a “Sugar Sugar”, do The Archies) ou “Lonely Boy”, uma versão do clássico do Sex Pistols que parece digna das versões jovemguardianas de Erasmo Carlos.
Há ainda canções agridoces de arranjos sofisticados, como a excelente “Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo”, com um grupo de metais que lhe dá densidade, ou a baladaça “Bebendo Vinho”, que já foi de tudo um pouco: de hit com o IRA! até hino de torcida (e tanto Grêmio quanto a querida Portuguesa de Desportos já o fizeram). Aliás, devo dizer que é culpa de “Bebendo Vinho” o drink da semana. Sei que amigos enólogos podem ficar horrorizados com a ideia de colocar vinho em um coquetel (e não bebê-lo puro), mas a desculpa é boa: o New York Sour, uma versão turbinada do clássico Whisky Sour.
Antes de tudo, uma pequena aulinha: um coquetel Sour é aquele que leva uma base alcóolica, um elemento cítrico e um elemento açucarado – normalmente, limão e xarope de açúcar ocupam esse lugar, respectivamente. (Semana passada, com o Gold Rush, vimos essa combinação um bocado diferente, com mel tomando o lugar do açúcar, aléwm de limão e uísque). É uma das famílias de coquetéis mais antigas e tradicionais… e o New York Sour tem quase 150 anos de bons serviços prestados aos convivas.
Criado em Chicago (e não em Nova York), o New York Sour traz dois ingredientes a mais do que um Whisky Sour normal: a angostura e o vinho tinto, dando a um coquetel já agridoce um maior nível de complexidade, assim como as cordas de “Bebendo Vinho” deixam uma canção já pungente em sua essência ainda mais interessante. Além disso, tanto angostura quanto vinho tinto elevam o feeling alcóolico do coquetel, tornando-o um aditivo perfeito para quem pretende se esgoelar com algumas boas canções. E para completar, é um coquetel que desafia os bartenders pela finalização com o vinho – um passo em falso e toda a graça de combinar elementos vai para o vinagre, da mesma forma que, nas mãos de um produtor menos competente, as canções de Wander poderiam ficar cheias de arestas.
Além disso, por sua característica marcante, o New York Sour é um drink que pede um disco que mescla o doce e o azedo da vida, mas com tesão de viver. No Booze and Vinyl, inspiração para esta newsletter, o drink aparece pareado com a obra-prima Blood on the Tracks, clássico de Bob Dylan que também já ajudou a iluminar muitos dias nublados por aqui. Mas tesão de viver, tesão mesmo, é um grito mais primal, é algo que vem do fundo da garganta ou do balcão de um boteco sujo. É o tipo de grito que eu ouço quando escuto “Ganas de Vivir”, uma canção triste mas que busca o sol, debaixo de todo o espanhol salvaje de Wander Wildner. É o tipo de música que me mostra que mesmo não tendo um “Maverikão” ou podendo ir a “La Playa” todo dia, é possível ter esperança em dias melhores, mesmo quando os tempos são confusos.
Ao mesmo tempo, Baladas Sangrentas é o tipo de disco que me ensina que esses dias melhores não estão reservados apenas aos cidadãos de bem, a quem é “bom rapaz, direitinho”, como diria Tom Zé em “Namorinho de Portão”. Às vezes, a gente fica mesmo pelado no quarto vendo a foto de alguém quando tá de porre – não literalmente, mas aquele tipo de coisa que o cidadão não costuma confessar e faz o cara se sentir uma pessoa menor, enquanto “todos os conhecidos tem sido campeões em tudo”. Às vezes, a gente ouve um velho rock’n’roll e acha que nada satisfaz, mas é uma questão de paciência. Se o sol brilha ao seu redor, talvez seja só uma questão de manter a mente aberta, a espinha ereta, o coração tranquilo… e a garganta lubrificada. Afinal de contas, eu não consigo ser alegre o tempo inteiro – mas às vezes eu consigo.
A Receita
60ml de Bourbon
30 ml de suco de limão siciliano
15 ml de xarope de açúcar
1 jato de Angostura
15 ml de vinho tinto
Antes da receita em si, uma questão polêmica: a clara de ovo. Muitos coquetéis sour foram inventados sem a clara de ovo, mas contemporaneamente, praticamente todo e qualquer coquetel da família costuma levar esse ingrediente. A justificativa é simples: quando adicionada a um coquetel sour, a clara costuma aumentar a complexidade da bebida, deixando-a mais aveludada. No entanto, cada vez mais bartenders ficam na dúvida quanto à sua utilização, seja por questões de salmonella, pela ascensão do vegetarianismo ou mesmo porque é chato demais de trabalhar com a clara e ela estraga rápido. Alguns arriscam alternativas como aquafaba, clara pasteurizada ou albumina, mas confesso que tive zero paciência para qualquer uma delas – e particularmente, gosto do meu sour assim mesmo, mais cru. Sendo assim, nada de clara de ovo, mas caso você queira colocar, são 15 ml (o que é basicamente a clara de um ovo).
Fazer um New York Sour, em si, é uma tarefa fácil: difícil mesmo é colocar o vinho. Pra começar, coloque todos os ingredientes (com exceção do vinho) em uma coqueteleira com gelo. Bata vigorosamente e despeje o conteúdo em um copo. Tire o gelo da coqueteleira e bata de novo, agora sem gelo – em um processo que se chama dry shake reverso. Feito isso, despeje o líquido de novo em um copo rocks, já com uma pedra de gelo grande (ou algumas pequenas, você escolhe, mas lembre-se que mais pedras = gelo que derrete mais rápido). Para fechar, muito cuidado: é importante colocar os 15 ml de vinho tinto com cuidado, para que que seu NY Sour fique num suave degradé. Há quem coloque direto, há quem prefira depositar a bebida sobre uma pedra de gelo e há quem prefira transportar o vinho para uma colher de sopa para, aí sim, colocá-lo no copo. Não tem certo nem errado, use a técnica que você preferir. Confesso que aqui em casa usei a colher e deu… meio certo.
Por fim, uma palavrinha sobre as bebidas. Meu bourbon da vez tem sido o Jim Beam, pelo bom custo-benefício que eu tenho encontrado por aí em torno de R$ 100. Angostura é angostura, não tem o que dizer, mas o vinho tinto é uma tarefa mais delicada. Não há consenso sobre que tipo de vinho exatamente deveria ser usado aqui: algumas receitas falam em Claret, outras em Malbec e há ainda um grupo que só diz “vinho tinto”. Para preservar a alma punk-brega de Wander, passei a mão no primeiro Cabernet Sauvignon chileno em promoção no mercado – eu sei que deveria ter usado Sangue de Boá, mas meu fígado pede cuidado. Deu certo? Funcionou, viu. Deixe pra usar aquele seu vinho bom bebendo vinho mesmo, tá.
E vamos aos reclames da semana…
No Programa de Indie, enterramos 2022 de uma vez por todas com a última parte dos Melhores do Ano, dessa vez discutindo bandas como Wilco, Big Thief, Rosalía, Wet Leg e muito mais – para quem quiser, as partes 1 (nacionais) e 2 (internacionais, pt.1) seguem aqui também.
Todo ano, o Marcelo Costa convida bons amigos para escrever sobre seus discos favoritos do ano. Em 2020 eu cometi um texto sobre Neil Young; em 2021 foi a vez de Olivia Rodrigo. Em 2022 não teve para ninguém: eu tinha que escrever sobre a banda que eu vi quatro vezes em cima do palco ao longo do ano. V, da Maglore, é o disco da vez. Chega lá.
E na dica de newsletter legal da semana, vou ficar com a
, da . Talvez vocês conheçam a Cristal por conta do Um Ano Sem Lixo, blog que ela criou há bastante tempo para descobrir como fazia para viver uma vida mais sustentável. Eu conheço a Cristal quando ela ainda fazia jornalismo e design, mas isso não importa muito. Importa é que o texto que ela escreveu essa semana, sobre parar de viver uma vida lixo zero, é uma das coisas mais interessantes que eu li recentemente sobre maturidade – e juro que não digo isso sendo um Cascão. Vai lá ler pra entender (e aproveita pra assinar a news dela, que é boa demais).
Vou torcer pra Lusa bebendo vinho… saúde, amigos!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ouvindo Baladas Sangrentas, claro, mas também sua continuação espiritual, Paraquedas do Coração. Também produzido por Tom Capone e lançado em 2004, Paraquedas tem arranjos incríveis, mais espanhol salvaje, uma versão de Ramones (“Eu Acredito em Milagres”), uma releitura animal de “Candy” e as sensacionais “Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro”, “A Última Canção” e “Rodando El Mundo”, além de “Ganas de Vivir”. O texto também foi bastante inspirado por Aventuras de um Punk Brega, livro que Wander lançou no meio da pandemia e tem várias histórias boas. E se Wander passar perto da sua cidade, vá no show. É garantia de sangue, suor e lágrimas.
PS2: Sei que o nome da newsletter é Meus Discos…, mas às vezes os discos não são meus – tanto este Baladas quanto o Outubro ou Nada da Bidê ou Balde foram emprestados gentilmente pelo Marcelo Costa, o capo do Scream & Yell, que gentilmente cede espaço pras minhas bobagens desde 2010. Tô enchendo o saco do Mac há meses pra ele começar uma newsletter – e se você acha que isso é uma boa ideia, vai lá encher o saco dele no Twitter.
PS3: Falando em Tiago Trigo, preciso fazer um merchan do coração: desde o fim do ano passado, Triguim e seu sócio Máurio estão à frente do Andovino Bar, um bar de vinhos & pães de fermentação natural ali em Pinheiros. Para quem achou uma besteira beber vinho em coquetel e quer degustar de ótimas taças e garrafas a preços módicos, vale a visita ali a Oscar Freire, do lado do metrô Sumaré #sebebernãodirija. Além disso, vá com fome: sou fã demais do tortano (pão com linguiça) e das foccacias deles.
PS4: Sigo firme na missão de ser “um cara que filma shows”, e tem três canções de Wander Wildner lá no canal do YouTube deste que vos escreve. Cola lá.
PS5: E aí, pra quem cês tão torcendo no BBB, hein?
toda semana aguardo ansiosa a chegada da sua news, amo demais. só um ponto para discordar no texto e receita de hoje: angostura não é angostura. angostura é um bitters e tem um que outro bitter brasileiro mandando muito bem hoje em dia! para essa news com álbuns brasileiros, que tal provar um dia uma receita com um bitter brasileiro? um beijo