#54: “Cuban Soul: 18 Kilates”, Cassiano + Espresso Daiquiri
Um coquetel cheio de molho para um dos discos mais saborosos da música brasileira, tá certo?
Quando comecei o curso de sommelier de cervejas, há pouco menos de um ano, o professor Riccelli Adriel usou uma expressão que me chamou muito a atenção: “horas de copo”. Segundo ele, é um fator determinante para o sucesso de um profissional do serviço de bebidas. Pode parecer conversa de bêbado, mas é verdade: quanto mais a gente bebe de maneira crítica, maior se torna o conhecimento técnico e sensorial – e melhor fica o profissional. A despeito de uma matéria para a piauí no começo deste ano sobre o brasileiríssimo Projeto Manipueira Selvagem, confesso que não usei muito meu diploma de somelelê. Mas algumas coisas permaneceram – e uma delas foi a noção de que, às vezes, só mesmo bebendo para ganhar repertório.
Quando percebo que estou sem ideias para esta newsletter, percebo que é hora de voltar aos balcões, descobrir novos sabores e me arriscar em coquetéis que ainda não cometi, mesmo sendo clássicos. Normalmente, é o que basta para conseguir gerar novas sinapses, novas batidas, novas pulsações. Foi bebendo em casa um dia desses – e namorando minha garrafa de licor de café – que me reencontrei com um novo drink favorito: o Espresso Martini. Eu já tinha bebido a receita original algumas vezes, mas nunca havia lhe dado muita bola. Um pequeno detalhe, porém, sugerido pela receita oficial do Difford’s Guide, mudou tudo: a adição de um bocadinho de sal, que ativou minhas papilas gustativas e fez o coquetel descer redondo.
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Mas não é do Espresso Martini que quero falar, e sim de um primo seu, o Espresso Daiquiri – uma variação com rum no lugar da vodka. Ele me pareceu perfeito para um problema que me consternava há muito tempo: não ter escrito ainda sobre Cuban Soul: 18 Kilates, obra-prima do mestre Genival Cassiano. É um disco especial para mim, de muitas maneiras, e que há tempos merecia ter aparecido na newsletter. Faltava, porém, a receita ideal, e nada como um tempinho com a taça na mão para essa harmonização, que precisava partir do rum. Afinal, um disco que tem “cuban” no nome não pode deixar de lado a bebida que parte da fermentação do melaço, posteriormente destilada para chegar em torno de 40 graus alcoólicos, e é sinônimo d’A Ilha.
Minha história com Cassiano, porém, começa num tempo em que eu desprezava rum: a pré-adolescência. Não era só por não beber, mas também porque “essência de rum” era algo que deixava um gosto esquisito em algumas das minhas sobremesas favoritas naquela época – como mousse de chocolate ou bolo floresta negra, coqueluche dos aniversários de então. Era um tempo também em que eu não tinha muito dinheiro no bolso, ganhando um trocado ou outro da minha mãe para ajudá-la a corrigir provas. Não importava: eu também não tinha muito por onde gastar… a não ser em discos. E um dos lugares em que eu mais gostava de comprar CDs era na Coop, uma rede de supermercados que faz parte da vida de quem cresceu no ABC.
Originalmente Cooperhodia, fundada como uma cooperativa de consumo para os funcionários da indústria têxtil e química Rhodia, a Coop é o primeiro supermercado do qual me lembro na vida. Foi voltando da filial de São Caetano com meus pais que aprendi a atravessar a rua sozinho – anedota para você entender como é um lugar embrenhado na memória. Foi lá também que comprei vários CDs, incluindo A Tábua de Esmeralda de Jorge Ben e este de Cassiano, numa reedição esperta comandada por Charles Gavin, o baterista dos Titãs. Lembro inclusive até hoje do preço: R$ 16, numa época em que uma Coca-Cola de 2 litros não custava R$ 3. (Durante muito tempo, devo dizer, medi a inflação do Brasil pelo índice Coca-Cola, uma das coisas que eu mais consumi na vida).
Não foi uma compra óbvia: eu não conhecia direito o disco, que também não era dos mais fáceis de serem baixados pela internet. Nem Cassiano eu conhecia direito: só sabia que ele tinha composto duas das minhas músicas favoritas de Tim Maia, os clássicos “Primavera” e “Eu Amo Você”, ambas da estreia Tim Maia, de 1970. Mas o texto do encarte, a apresentação generosa de Gavin e os dois hits foram suficientes para garantir a compra com meus tostões, ganhos de 10 em 10 centavos por página de testes corrigida para dona Silvina (obrigado, mais uma vez, viu mãe?).
De cara, botei o disco em algum CD player e me apaixonei de imediato. Mais que isso: foi um daqueles casos em que, ao dar o play, parecia que eu estava ouvindo algo que sempre me pertenceu. Um caso de inconsciente coletivo impregnado no córtex cerebral. Anos depois, talvez eu tenha concluído que “Coleção”, logo a segunda faixa do disco, seja um desses casos de música que já venha previamente instalada no crânio de cada brasileiro – mesmo que não seja na versão original. Canta comigo, vai: “sei que você gosta de brincar… DE AMOOOOOORES!”.
Também me apaixonei de cara por outra música que foi um grande sucesso de rádio em seu tempo: “A Lua e Eu”. É uma daquelas baladas inexoráveis do repertório da música brasileira. Naqueles tempos de amores platônicos que duravam anos sem qualquer movimentação, uma canção que começava com o verso “mais um ano se passou” dava toda a medida da sofrência que o nerd aqui sentia. Mas há mais nela: a abertura climática em coro, a voz dramática de Cassiano, a flauta no fundo, o solo de guitarra inesquecível de Paulo Zdanowski… é difícil ter algo para criticar em uma composição perfeita – a não ser o fato de que ela requer o uso de joelheiras nos cotovelos, para amaciar intensa dor.
Outra paixão instantânea veio em uma das músicas de Natal mais bonitas já feitas em português: “Hoje é Natal”, responsável por abrir o disco. Como quase toda grande música de Natal (ref. cit. “Boas Festas”, “River”, “Last Christmas”, “Navidad en Los Santos”), ela também é uma música triste: apesar de toda a felicidade ao redor, Cassiano chora a saudade da mãe. Claro que eu não entendi isso na época em que ouvi, mas só o fato de ter uma boa canção natalina na última flor do Lácio já me pegou pelos ouvidos – e desde então, ela faz parte da minha playlist de Natal, mesmo sob protestos de Seu Capelas.
Precisei, porém, de horas e horas de fone de ouvido, para entender algumas outras belezas de Cuban Soul: 18 Kilates. É o caso de “Central do Brasil”, número instrumental que funciona como uma perfeita baldeação entre a primeira era do soul brasileiro (dos discos iniciais de Cassiano, Tim e também Hyldon) e uma segunda fase mais marcada pelo funk e pela disco music, com nomes como Banda Black Rio, Gerson King Combo e Sandra (de) Sá.
Ou também daquela que talvez seja minha faixa favorita do disco: “Onda”. Com quase oito minutos de duração, esse monumento em forma de canção é uma balada funk de balanço hipnótico irresistível – como é irresistível a combinação entre café, sal e o fator melado/caramelado do rum ouro usado no Espresso Daiquiri. Entre tanta gente, esse balanço hipnótico atraiu o DJ KL Jay, responsável por samplear a faixa em uma das músicas mais importantes da carreira dos Racionais MCs: “Da Ponte Pra Cá”.
Graças a esse bem-sucedido resgate, “Onda” virou figurinha fácil em discotecagens de música preta & brasilidades ao longo das últimas décadas. Mas ela vai além disso: conduzida por uma das linhas de baixo mais bonitas já gravadas neste País, ela é um perfeito exemplo de que dançando a gente não só supera paixões passageiras arrebatadoras, mas também as celebra de maneira digna. E pra quem não souber a coreô, fica a dica do passinho: uma mão vai no coração, mas a outra fica livre pro melhor suingue disponível.
É nessa combinação entre suingue e intensidade que Cuban Soul se harmoniza tanto com o Espresso Daiquiri – coquetel que ganha esse nome justamente por conter a mesma base do daiquiri original (rum + xarope de açúcar + fruta, supostamente), mas tem no lugar do limão uma dose de café. A princípio, um conviva poderia imaginar que rum e café resultam num coquetel forte, mas a verdade é que a dupla se encaixa muito bem. Não à toa há tantas sobremesas que utilizam uma combinação desses sabores. Mas há algo mais: ao adicionar o sal, a bebida ganha um molho, um tempero que desperta os sentidos – e também não à toa, molho e tempero são duas palavras muito usadas pela sinestesia musical para descrever grooves deliciosos como os empreendidos pela banda de Cassiano, comandada por Paulo Zdan e Don Charles.
Mais que isso, o Espresso Daiquiri é daqueles coquetéis que são marcantes quando bebidos uma vez, mas que podem ser tomados em sequência graças à sua leveza. Assim também é Cuban Soul. Outro ponto que une as duas obras é o fato de que podem abrir espaço para todo um imaginário na cabeça de quem os aprecia, seja pavimentando uma rota para coquetéis com café ou seguindo uma ferrovia soul-funk na música brasileira.
Se vale a sugestão, dá pra começar muito bem por aqui e depois seguir com os outros dois discos de estúdio gravados por Cassiano nos anos 1970: Imagem e Som, de 1971, e Apresentamos Nosso Cassiano, de 1973. E pra quem quiser um caminho mais detalhado, aqui segue um mapa da mina recente que escrevi sobre o mestre, morto em 2021, para o Scream & Yell. Espero que essa estrada traga bons frutos pra vocês, enquanto abro novas bifurcações mentais para próximas edições da newsletter. Falou?
A Receita
50 ml de rum ouro
30 ml de café coado
10 ml de xarope de açúcar
2 raspadas de sal recém-moído
noz-moscada recém-moída para decorar (opcional)
Fazer um Espresso Daiquiri é entender que, a princípio, ele é o filho sacolejante de dois coquetéis clássicos: o Espresso Martini e o Daiquiri. Nesse encontro, o Martini mantém o café e o xarope de açúcar, enquanto o daiquiri perde o limão e cede o rum para a mistura final. É um resultado, digamos, expressivo: sem licor, a bebida fica mais leve e menos alcoólica; com o rum no lugar da vodka, também ganha notas interessantes de caramelização e até uma eventual madeira, dependendo do rum que você usar. Aqui em casa, fui de Bacardí Carta Oro, que é meu rum custo-benefício de preferência a quase todo momento.
A rigor, a rigor, um Espresso Daiquiri teria de ter… bem, café expresso – técnica de extração que costuma resultar num café mais encorpado. Aqui em casa, porém, eu não tenho máquina de café expresso e gosto mesmo é de um bom coado, que também acredito se adequar melhor ao paladar médio brasileiro. Fiz a substituição sem mudar a proporção, buscando tornar o coquetel ainda mais leve e palatável. E enquanto o Difford’s sugere a adição de uma solução salina, preferi investir em sal moído inserido diretamente na coqueteleira.
Ah, por falar em coqueteleira, vamos a ela: pra fazer um Espresso Daiquiri, coloque os quatro primeiros ingredientes na coqueteleira, junto com gelo, e bata vigorosamente. Coe o resultado final para uma taça de Martini ou coupé, se possível previamente gelada. E enquanto você admira a bonita espuma que a bebida forma, aproveite para ralar um pouquinho de noz-moscada nela, se for do seu feitio – particularmente, acho que não só dá um charme como também adiciona outra camada ao coquetel, mas entendo quem ache enjoativo. Seja qual for sua decisão, o importante é que o Espresso Daiquiri está pronto para beber. Ah! Por fim, mas não menos importante: abaixe o tom da luz e aprecie delicadamente.
Reclames da Quinzena
Feliz demais de voltar a escrever para a piauí, não só por ser a segunda vez, mas também por falar de música. Tive a honra de contar a história de uma das minhas bandas brasileiras favoritas dos últimos anos, a Selton, em uma aventura que passa por verões em Capão da Canoa, Barcelona, Milão e escalas até mesmo no mítico estúdio 2 de Abbey Road. Chega lá pra ler – e depois vem comigo ver os caras no Sesc Pompeia nesse sábado, dia 1.
No Programa de Indie, tivemos um episódio muito especial em homenagem ao grande Steve Albini, um dos homens que moldou o som dos anos 1990 graças a discos como Surfer Rosa, Pod, In Utero e muito mais. Também tivemos um programa cheio de novidades boas, indo de… Selton a Beth Gibbons, de Lemon Twigs a Silvia Machete, além do nosso querido Conociendo Rusia.
Em Cajuína, publiquei também nos últimos dias duas entrevistas bacanas: uma com a Vivian Broge, VP de RH e Marketing da Totvs, e outra com o professor Luís Mauro Sá Martino, da Cásper Líbero, que escreveu um livro bem bacana sobre o tempo – tema, inclusive, que tem tudo a ver com a última edição da newsletter. Acho que vale a leitura justaposta, viu?
Pra fechar a conta: lá no canal do YouTube tem vários vídeos do último C6 Fest, com uma apresentação arrasadora do Pavement.
Tem também alguns vídeos do MPB-4, que completa 60 anos de carreira em 2024 e fez um show bonitão no Espaço Cultural BNDES semana passada.
E se você só quer viver assim, sempre de bar em bar… o Cassiano promete que vai te achar, viu?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Cuban Soul: 18 Kilates, de Cassiano, na véspera do envio desta newsletter. Fazia tempo que eu não fazia isso, mas teve de acontecer para garantir que eu não ia falhar com nosso encontro quinzenal. Peço perdão se passar algum erro de digitação ou ortografia. Eu já disse que tenho trabalhado demais?
PS2: Mas eu também faço charme: nos últimos dias, me diverti bastante no Rio de Janeiro e bebi excelentes drinks – de tradicionais batidas a invenções maravilhosas que talvez eu registre aqui em breve. Será que vem aí um guia de bares do Rio? Ô tarefa dura… Aproveito este PS para também agradecer publicamente ao amigo Manoel Magalhães, anfitrião e cicerone deste que vos escreve em terras fluminenses. É uma honra e um privilégio ser parceiro de copo de um cara que eu já ouvi tanto, seja em carreira solo, com a Polar, Harmada ou Columbia.
PS3: Por falar no Manoel, fica o convite pra quem estiver no Rio nos próximos tempos: no dia 15 de junho, ele faz seu 100º show da carreira acompanhando outro amigão, o Jotadablio, vulgo Jorge Wagner, no show de lançamento do disco Toda forma de adeus, que o Jota publicou no ano passado. Além da celebração, ainda fica a dica: o show vai ser em Botafogo, na Baratos da Ribeiro, um dos sebos mais legais do Brasil, em que garimpei boas novidades na capital fluminense.
PS4: Ainda falando em Manoel, talvez seja culpa dele o próximo drink que vai aparecer na newsletter. Alguém tem algum palpite?
Cassiano é tudo de bom! O mestre da soul music. Muitas vezes desejei ter nascido preto para poder ir nos bailes da black music no Rio ou em São Paulo, na década de 70.
Sim, "Hoje é Natal" é o clássico dos clássicos em música natalina "fora de todas as expectativas". Uma beleza que dói, mas uma beleza.
Valeu!!