#47: “A Tábua de Esmeralda”, Jorge Ben + Corpse Reviver #2
Uma tabelinha maravilhosa entre uma das obras-primas de Jorge Ben e um drink de levantar defunto para canalizar energia e alegria no seu Carnaval
É quinta-feira de Carnaval, eu sei – e questiono quem é que vai abrir uma newsletter enquanto se preocupa com os últimos detalhes das fantasias para os próximos dias. Mas se tem uma coisa que o jornalismo me deu na vida é a necessidade de tentar participar da pauta, de entrar no tema e dar minha pequena contribuição. Então, por isso, decidi escolher para essa semana um disco que não é exatamente de Carnaval, mas um dos meus discos favoritos de todos os tempos. Coincidentemente, é um disco de samba – e que guarda em si muito da energia vital que faz esses dias de fevereiro serem especiais pra muita gente. É também um disco sobre o qual me dá um certo medo de escrever, de tão importante que ele é: A Tábua de Esmeralda, a obra-prima das obras-primas de Jorge Ben, que é também um dos meus artistas favoritos. (Já cogitei que, se ficasse preso numa ilha deserta, apenas a discografia de Jorge Ben me bastaria – e para um fã de Nick Hornby, isso quer dizer muita coisa).
Tábua é um disco que me assombra desde que decidi começar essa newsletter: ele é tão especial, cheio de elementos tão bem traçados, que seria difícil escolher um coquetel para acompanhá-lo. Dado o desafio, decidi recorrer a algumas correlações simples. A primeira é que um disco chamado A Tábua de Esmeralda teria de ter um drink de uma cor especial. A segunda é que um álbum que começa com “(Os Alquimistas) Estão Chegando Os Alquimistas” merecia uma receita única – de preferência, com o absinto sendo um de seus ingredientes.
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Com esses dois direcionamentos, cheguei ao Corpse Reviver #2, um clássico que remete à era anterior à Lei Seca, numa mistura de gim, triple sec, Lillet, limão, xarope de açúcar e… ufa, absinto. É um coquetel alcóolico e potente, aromático, capaz de levantar qualquer defunto, da mesma forma que o violão mágico de Jorge Ben sempre me tira pra dançar quando a agulha desce sobre o vinil. Também não pude evitar a piada de que um disco místico merecia uma aura de alquimista – esses homens discretos e silenciosos que buscavam, entre outras coisas, a fortuna infinita, toda cura para todo mal e, por quê não, a imortalidade. Além disso, o Corpse Reviver #2 era originalmente usado como um drink para curar a ressaca, o que me parece uma sugestão interessante para quem pretende ir atrás do trio elétrico nos próximos dias. (E atrás do trio elétrico, você sabe, só não vai quem já morreu mesmo).
Disco e drink guardam ainda uma proximidade específica: à primeira vista, eles parecem muito mais simples do que são. Quem der um gole num Corpse Reviver #2 talvez o tome como um drink doce e cítrico, agradável para se beber de balde, sem dar conta da potência alcóolica ali presente. Não à toa, o pioneiro da coquetelaria Harry Craddock alertou que “quatro desses, tomados em sequência suave, poderão fazer o cadáver retornar a seu estado original”. Da mesma forma, A Tábua de Esmeralda é um disco que carrega uma mística especial, escondida em diferentes camadas. Por trás da alegria simples de “O Homem da Gravata Florida” e de “O Namorado da Viúva”, por exemplo, se escondem homenagens a dois dos maiores alquimistas da história – respectivamente, Paracelso e Nicolas Flamel, como conta Jorge nessa entrevista ao jornalista Pedro Alexandre Sanches. Felizmente, porém, não há registros de ninguém que tenha sofrido um coma alcóolico só por escutar Jorge Ben.
A Tábua de Esmeralda é um ponto muito singular na carreira de Jorge Ben, um músico que, àquela altura, já havia passado por diversas fases e metamorfoses. Nascido em 1939 (embora haja controvérsias), no Rio de Janeiro, Jorge Duilio Lima Meneses queria mesmo é ser jogador de futebol, mas acabou seguindo o caminho da música. Na adolescência, entre peladas e rodas de violão, ele frequentou o Seminário São José, onde aprendeu latim e canto gregoriano.
Foi ali também que nasceu seu interesse pela filosofia e pelo misticismo, que se tornariam temas importantíssimos em sua carreira. Em seus primeiros passos na indústria fonográfica, Jorge já compôs uma obra-prima: Samba Esquema Novo, marcado por um violão que atualizava as batidas de João Gilberto num suingue muito próprio – “este samba que é misto de maracatu, que é samba de preto velho, samba de preto tu”, explicaria o autor em “Mas Que Nada”, que correu o mundo em sua voz e também com Sérgio Mendes.
Os momentos seguintes da carreira de Ben não foram tão bem assim: enquanto a indústria esperava dele uma repetição do sucesso inicial, nosso querido Babulina se embrenhou em novas sonoridades e só foi se reencontrar ao ser adotado duas vezes. Primeiro pela turma da Jovem Guarda – antes de estourar, Jorge era cria da mesma Tijuca que revelou Erasmo, Roberto e Tim Maia. Depois, pelos tropicalistas Gil e Caetano, que viam nele uma modernidade incrível. Gal também: reza à boca pequena que ela é a musa inspiradora de “A Minha Menina”, que Jorge deu de presente para o primeiro disco dos Mutantes. (E entre o fato e a lenda, que imprima-se a lenda).
Com o êxodo tropicalista e o fim do sonho hippie, Ben começou a se direcionar para uma nova fase em sua carreira, em que o balanço do samba se juntou com a mensagem black power, sem deixar cair – e aqui estamos falando de discos como Força Bruta, Negro é Lindo e o magistral Ben, de 1972 (que é da mesma época que o glorioso MPB Especial linkado aqui abaixo). Faltava, porém, um conceito que unisse belas canções em uma identidade só… e ele chega justamente com A Tábua de Esmeralda, que marcaria também o começo da despedida de Jorge Ben ao violão. (Dois anos depois, em outra obra-prima, o disco África Brasil, ele passaria a usar a guitarra, deixando as cordas de nylon para trás para sempre).
Não pretendo aqui fazer uma análise profunda sobre o repertório de A Tábua de Esmeralda, nem uma apresentação rasa – é muito mais enriquecedor que o conviva dê o play no disco e se divirta por conta própria. Nem acho que faz muito sentido elaborar uma grande teoria sobre o significado amplo desse álbum, dado que muito do que dá unidade a esse trabalho é justamente o ritmo, seja ele do violão ou da voz de Jorge Ben.
Tal como descreveu Lester Bangs sobre o clássico Astral Weeks, de Van Morrison, Jorge também “está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue imprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, ou um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases a extremos que, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos”. (Em tempo: a teoria não é minha, mas sim do Gabriel Innocentini, em um dos melhores textos já publicados no Scream & Yell).
Sempre que reparo nesse aspecto do disco, eu fico embasbacado – e essas características estão presentes em todo o álbum, a começar pelo desafio de encaixar letra em melodia de “Os Alquimistas Estão Chegando”. Parece um exercício escalafobético, mas ainda assim, Jorge Ben foi capaz de criar uma melodia que muita gente sabe de cor e salteado. Ou preste atenção nos malabarismos de “O Homem da Gravata Florida”, “Magnólia” ou na magistral “Cinco Minutos”, que encerra o disco não só machucando corações, mas também sequestrando a atenção de quem lhe escuta. (A
é testemunha do delírio que me acomete quando ouço essa maravilha e fico incapaz de falar sobre qualquer outra coisa por muito mais do que cinco minutos).Fosse só por isso, Tábua já seria um disco gigantesco. Mas a verdade é que, além de tudo, ele é extremamente divertido – e atire a primeira pedra quem nunca gritou “Pedrinho vai ser papai” ou se embalou no “la-la-laiá” de “Minha Teimosia, Uma Arma Para Te Conquistar”. É difícil ficar parado com o charme de “Magnólia” ou “Menina Mulher da Pele Preta”, e até mesmo nos momentos mais engajados (as marcantes “Zumbi” e “Brother”) o sorriso se faz presente. Reflexiva mesmo, apenas “Errare Humanum Est”, uma faixa cósmica inspirada em Eram Os Deuses Astronautas, do alemão Erich von Daniken. Mas até mesmo ela tem seu sentido no disco: é depois de tanta reflexão que Jorge dá vazão aos momentos mais leves do disco, em um equilíbrio surpreendente.
Como se não fosse suficiente, A Tábua de Esmeralda ainda tem “Eu Vou Torcer” – que, à primeira vista, pode parecer apenas mais uma canção-lista. Mas ela é muito mais do que isso: em três minutos e quinze segundos, Jorge Ben fornece ao ouvinte não só um compêndio das pequenas alegrias da vida adulta, mas também um guia de conduta moral para qualquer ser humano em dúvida de suas prioridades – ainda que eu troque o Mengão pelo meu maltratado alvinegro da Baixada Santista, é fato.
Enquanto eu me preparava para escrever esse texto, voltei a um livro que já tinha lido há algum tempo – o trabalho de Paulo da Costa e Silva justamente sobre este Tábua de Esmeralda, publicado na coleção O Livro do Disco, da editora Cobogó. E ali um trecho me chamou a atenção.
“Poucos artistas transbordam tanta energia vital quanto Jorge Ben. E essa energia necessariamente produz alegria. Quanto mais eu ouvia Jorge Ben, mais eu percebia que sua música é capaz de induzir a um determinado estado de espírito: um estado de plenitude e força, capaz de inspirar uma atitude altiva perante a vida.”
Ao ler esse parágrafo, uma descarga elétrica percorreu o meu corpo. É justamente esse tipo de emoção que me toma quando eu escuto uma canção como “Eu Vou Torcer” ou “Magnólia”, por exemplo. É esse tipo de emoção também que faz parte de uma festa como o Carnaval, na qual brincando, o povo celebra, reencontra sua energia e também se manifesta, dizendo o que quer e o que não quer. De certa forma, o Carnaval também está ligado com a ideia de renascimento: ao se encerrar, já começa de novo a contagem regressiva para uma nova festa, num tipo muito especial de eterno retorno.
Por isso, achei que fazia sentido todo esse simbolismo de um coquetel levanta-defunto e um disco que não é exatamente carnavalesco em uma data tão específica. Se você precisar de um disco pra se animar enquanto se arruma pro bloco, fica a sugestão. E se o ano no Brasil só começa depois do Carnaval, que os alquimistas que estão chegando abram caminhos para dias melhores. Nos vemos do outro lado?
A Receita
22,5 ml de gim
22,5 ml de vermute seco
22,5 ml de triple sec ou curaçau blue
22,5 ml de limão
2,5 ml de xarope de açúcar
2 dashes (jatos) de absinto
Fazer uma poção capaz de levantar qualquer defunto é mais simples do que parece. Para cometer um Corpse Reviver #2, tudo que você vai precisar é dos seis ingredientes acima, de gelo, uma coqueteleira e uma taça bacana – aqui em casa, usei uma Taça Coupé decoradinha, mas quanto mais diferente ela for, melhor. Se não tiver nada à mão, a taça Martini simples já serve bem.
Para começar, coloque sua taça no freezer por alguns minutos. Depois, jogue dois jatos de absinto nela, dê uma balançada gostosa para o líquido “banhar” a taça e jogue fora – a ideia aqui é que o anis apareça de maneira discreta, nos aromas e sabores, sem roubar o protagonismo dos outros ingredientes. Depois, você vai pegar todos os outros ingredientes e bater numa coqueteleira com gelo por 8 a 10 segundos. Coe o resultado, deixando o gelo para trás, e deposite na taça que recebeu o banho de absinto. Et voilá: está pronto seu Corpse Reviver #2.
Antes de ir embora, algumas considerações: a receita que utilizei aqui é a do Savoy Cocktail Book, de Harry Craddock, escrito em 1930. Originalmente, ela pede o uso de Kina Lillet, que não se fabrica mais; muita gente substitui o líquido por Lillet Blanc, mas como eu não queria abrir minha garrafa de Lillet, apostei mesmo num bom vermute bianco Martini que estava na geladeira. Além disso, o triple sec é o clássico, mas substituí pelo Curaçau Blue da Stock que tenho aqui em casa por motivos cenográficos. (O gim, se você está curioso, é um Larios que está chegando ao fim; já o absinto é o Lautrec).
Reclames da Quinzena
Nas últimas duas semanas, estive envolvido em clássicos com o Programa de Indie. Digo mais: eu e Igor Muller cometemos duas edições de colecionador nos dois últimos programas, com dois discaços que estão de aniversário pelos próximos dias. De um lado, o cinquentão Radio City, do Big Star. Do outro, o favoritísimo da casa Summerteeth, do Wilco, que tá fazendo 25 anos já já.
Enquanto isso, tô pedindo música na edição desse mês da GQ Brasil – que tem Pedro Sampaio ou Carlinhos Brown nas duas opções de capa. São nada menos que três matérias diferentes. Tem um perfil do André Cintra, da Amend Cosméticos – que não só reergueu a empresa da família como também disputou dois Jogos Paralímpicos de Inverno. Tem uma matéria sobre os diretores de felicidade… ou melhor, Chief Happiness Officers, um cargo que começa a pulular nas empresas brasileiras. E tem uma matéria dando uma geral sobre o mercado de audiolivros no País, depois da chegada da Audible por aqui – com direito a entrevista com o grande Mauro Ramos, dublador do Pumba, do Shrek e do Sulley. Chique, né?
Na Cajuína, apareço essa semana com uma matéria sobre a ligação entre ESG e RH – Ela existe? Como pode acontecer? Como fazer essa junção de uma maneira íntegra, sem greenwashing? Chega mais para descobrir.
Por fim, mas não menos importante, lá no canal do YouTube tem vídeos de shows bem divertidos que eu fui nos últimos dias – numa seleção variada que inclui Boca Livre, Casa Ramil e o grande… Buchecha. Vai lá pra ver.
Nesse carnaval, eu vou torcer pela paz, pela alegria e pelas coisas bonitas que se podem comprar com 10 cruzeiros. Se você achar que sua teimosia é uma arma pra conquistar alguém, lembre-se que não é não. E se precisar de dicas para escolher alguém neste Carnaval, vale a lista a seguir:
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de A Tábua de Esmeralda, além do disco seguinte de Jorge Ben, Solta o Pavão, que guarda muitas semelhanças com este álbum aqui. Tal como os alquimistas, também escolhi com carinho a hora do meu precioso trabalho: escrevo esse texto ao raiar do dia, motivado por uma insônia esquisita. Às vezes acontece com o bartender.
PS2: Se você não ouviu Tábua, Solta o Pavão ou não conhece bem os discos de Jorge Ben dos anos 1970… você não sabe o que está perdendo. Se cair na folia não for a sua neste carnaval, eu recomendo um intensivão que comece em Jorge Ben (1969) e vá pelo menos até África Brasil, de 1976. Você não vai conseguir largar esses discos tão cedo. Além disso, recomendo a leitura de A Tábua de Esmeralda, do Paulo da Costa e Silva, e do África Brasil, da Kamille Viola, que disseca não só o disco que lhe dá nome, mas também várias histórias de Jorge Duilio Lima Meneses.
PS3: Se você chegou atrasado para este texto e está buscando um disco para embalar sua quarta-feira de cinzas, não tem problema – ano passado, escrevi sobre Cartola e caipirinha para marcar o Carnaval de 2023, o “primeiro carnaval do resto das nossas vidas”. É um dos textos que eu mais gosto desta Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais.
PS4: Na virada de ano de 2022 para 2023, acabei passando o Revéillon sozinho em casa. Achei que a data – o prenúncio de uma era melhor para o Brasil – merecia trilha sonora adequada. E quando o relógio bateu meia noite, era justamente A Tábua de Esmeralda que eu ouvia. Acho que essa é uma história que eu vou me lembrar pra sempre, mesmo sendo lá um pouco sem graça.