#51: “Estúpido Cupido”, Celly Campello + Hi-Fi
De tanto falar de rock no Brasil, decidi fazer uma volta às origens – e o primeiro disco pop da música brasileira tem muito a ensinar pra gente (com ajuda de vodka e refrigerante de laranja)
“Ó ó cupido, vê se me deixa em paz…”
Calma, calma, querido conviva: você não está no momento “nostalgia” de uma festa de debutantes ou de casamento.
Você sabe do que estou falando: aquele momento em que o DJ ou a banda de baile emenda esse clássico de Celly Campello com “Whisky a Go Go”, antecipando que, daqui a uns quinze minutos, vai rolar Bee Gees e “It’s Raining Men”. Não é essa minha intenção. Mas, depois de tanto falar de discos de rock brasileiro, achei que valia a pena uma busca às origens. E fui fundo nessa pesquisa: Estúpido Cupido, de Celly Campello, que pode ser chamado de “o primeiro disco pop” da canção brasileira. Ou de “primeiro disco da canção pop brasileira”, se você preferir. Já adianto: não é exatamente uma obra-prima, mas talvez ele tenha algumas coisas a dizer sobre o pop feito nesta nossa terra hoje em dia. E para combinar com ele, decidi escolher um drink que não só está intrinsecamente ligado a Celly Campello, como também é a porta de entrada de muita gente para o álcool: o Hi-Fi.
Primeiro, uma questão de história: combinação de vodka com refrigerante de laranja, o Hi-Fi deve seu nome a um programa de TV criado no final dos anos 1950, apresentado por ninguém menos que Celly Campello: o Crush em Hi-Fi. Estrelado por Celly e seu irmão Tony, o Crush em Hi-Fi era patrocinado pelo refrigerante de laranja Crush; já “hi-fi” era uma menção ao termo “high fidelity”, ou “alta fidelidade”, usado na época para marcar “a fidelidade ao som real”. (Se você está se perguntando, a resposta é sim, o livro de Nick Hornby e o filme estrelado por John Cusack também herdam seu nome dessa mesma expressão).
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Espécie de precursora do programa Jovem Guarda de Roberto Carlos, a atração da TV Record buscava pegar carona no rock americano dos anos 1950 e fabricar uma primeira cena roqueira no Brasil, capitaneada por Celly, Tony e nomes como The Jordans, Demétrius (de “O Ritmo da Chuva”), Ronnie Cord (de “Rua Augusta”) e Sérgio Murilo (dono da primeira versão de “Marcianita”), entre outros.
Nascida em São Paulo, mas crescida em Taubaté, Célia Campello virou estrela quase que por acidente – seu irmão mais velho, Sérgio (depois apelidado de Tony), é quem estava no negócio da música no final dos anos 1950. Ao conseguir uma chance de gravar um compacto em São Paulo, Sérgio convidou a maninha, rebatizada como Celly, para gravar o lado B. Àquele primeiro 78 rotações, se seguiram outros… e logo veio “Estúpido Cupido”, uma versão de Fred Jorge (anote esse nome!) para “Stupid Cupid”, do repertório de Connie Francis. O sucesso da faixa levou Celly não só à TV, mas também ao estrelado, antes mesmo dos 18 anos de idade. Estúpido Cupido, o LP, saiu em 1959, com um repertório que fica aquém do poder midiático da nossa primeira estrela pop.
Das doze faixas do disco, seis são de autoria de Fred Jorge – cinco versões do pop americano da época, do repertório de gente como Paul Anka e Neil Sedaka, além da original “Querido Cupido”, uma espécie de continuação de “Estúpido Cupido” em que Celly já se mostra atingida pelas flechas “de amargar” do deus do amor. Outras quatro são originais em inglês e francês, num repertório francamente montado às pressas, mas no qual a “rainha de Taubaté” (como consta no encarte) mostra sua extensão e afinação vocais. Há ainda “Handsome Boy”, a faixa inicial que Celly gravou no compacto com o irmão, e outra versão, “Fale-Me Com Carinho”, esta da francesa “Dis-Moi Quelque Chose De Gentil”.
A capa do disco e o recheio conversam perfeitamente: longe da rebeldia de Chuck Berry e Little Richard, ou mesmo da leve transgressão sexual de Elvis, Celly se apresenta para o público com calças compridas e um tricô, além de sapatos mocassim, num figurino provavelmente aprovado pela mamãe. Já o recheio é curioso: entre o jogo de recusa e aceitação do amor (em “Estúpido Cupido” e a sua ilustre desconhecida sequência), Celly dá uma piscadela para a ousadia nos costumes, tentando conquistar um playboy em “Lacinhos Cor de Rosa” ou não ligando pro bafafá da sociedade em “Muito Jovem”.
Mas tudo é muito familiar, muito censura-16 anos, muito “bom rapaz, direitinho”, como diria Tom Zé em “Namorinho de Portão” – e não chega a ser surpreendente saber que, após cinco LPs e uma dezena de compactos, Celly largou a carreira de cantora aos 20 anos para se casar com um contador da Petrobras, voltando a cantar apenas em 1976, já na febre retrô promovida pela novela homônima a este disco. Ainda assim, o uso da palavra “broto”, o balanço de “Estúpido Cupido”, os jogos vocais de “Muito Jovem” ou a delícia de malícia inocente de “Túnel do Amor” têm uma graça que fazem as ondas dessa voz reverberar até hoje – e atire a primeira pedra quem nunca esfregou os sapatos na pista se esgoelando ao som de “hey hey, é o fim”.
Ouvi Estúpido Cupido no repeat algumas vezes nas últimas semanas, tentando pensar se havia algo além de um hit inexorável para justificar um texto aqui. E me diverti muito, ouvindo as doze faixas do álbum, ao entender que o que Celly fez está presente até hoje no pop nacional: discos com repertório escolhidos por produtor, buscando projetar mais uma imagem do que enfileirar grandes canções, tentando aproveitar uma onda irresistível enquanto ela ainda tem força. Apesar das muitas décadas que separam Celly Campello dos nossos tempos, esta também é a história de muitas cantoras hypadas em lineups de festivais e trending topics, mas que por vezes falham em conseguir criar uma sequência de músicas marcantes, que justifiquem à altura sua exposição midiática. (Não vou citar nomes, mas quem precisar de dicas pode checar a escalação de certo evento no autódromo de Interlagos em setembro último).
E para quem acha que a comparação é cruel, vale ainda um desconto para Celly Campello: ela surgiu quando o Brasil ainda tentava entender o que raios era pop. Naquele final dos anos 1950, ainda estávamos construindo um dicionário que tinha verbetes tanto americanos quanto italianos ou franceses, num léxico que chegaria à sua construção mais bem resolvida anos depois, na Jovem Guarda, como já contei aqui. No clássico e obrigatório livro-em-verbetes ABZ do Rock Brasileiro, Marcelo Dolabela define a parada como ninguém: “Banho de Lua, Estúpido Cupido, já estava tudo lá. Ready-made sonoro. Os Mutantes & Rita Lee na garoa e na garupa; o Kid Abelha de carona. A.C./D.C. Antes de Celly, depois de Celly. Antes, não havia nada; depois, vida, vida nuova, Rock.”
Da mesma forma, o Hi-Fi talvez se justifique aqui como o drink deste disco não só por razões históricas, mas também por ser um coquetel de construção de repertório – a ponto de nem talvez ser chamado de coquetel por muita gente. Fala sério: vodka com refrigerante de laranja é um clássico drink de festa de adolescente, seja por falta de dinheiro ou por imaturidade.
A escolha da vodka não é à toa: dos álcoois-base, ele é o mais insípido possível, com o incômodo e inédito gosto etílico se escondendo por trás da doçura cítrica-pero-no-mucho da Fanta, Sukita, Crush… ou até Dolly Laranja, por quê não? O fato de muitas vodkas serem incolores também ajuda bastante, fazendo com que a mistura possa passar incólume “ao mundo dos adultos”. Contradizendo seu nome, muitas vezes o Hi-Fi é uma bebida de baixa fidelidade, levando gerações de neófitos a seus primeiros porres, vômitos e ressacas. É com uma combinação dessas, porém, que muita gente aprende o significado de palavras como resistência e limite, dois termos mágicos no dicionário de quem bebe (e, especialmente, busca beber por prazer e não por escapismo ou coisa mais séria).
Para quem já tem mais idade, a combinação entre Celly Campello e o Hi-Fi também faz sentido por outra comparação sinestésica: vodka com Fanta é tão sinônimo de fim de festa quanto “Estúpido Cupido” aparecendo na playlist. É um dos mais clássicos coquetéis de improviso, um sinal de que a noite já vai avançada e que gostos mais requintados já deixaram o recinto.
Pode servir como um alerta, seja de que está na hora de ir para casa ou de que talvez a noite mereça outras batidas, outras pulsações. Por mais que eu ame “Estúpido Cupido”, confesso que adoraria vê-la sumir por uma década das playlists de festinhas afim, sendo substituída por outros petardos contemporâneos levemente menos executados, só para lhe dar um descanso e, quem sabe, um merecido retorno no futuro. Mas já que isso não é possível, mexo meu coquetel improvisado com o dedo, seco o indicador no paletó e… atenção para o refrão!
“Hey hey, é o fim/ó ó Cupido, pra longe de mim!”.
A Receita
50 ml de vodka
100 ml de Fanta laranja (ou refrigerante de laranja à sua escolha)
gelo, muito gelo, pelo amor de Deus
Fazer um Hi-Fi é muito fácil, não requerendo prática nem tampouco habilidade. Pelo contrário: tudo que você precisa é saber colocar coisas num copo. Pois bem: pegue um copo alto. Pode ser um highball, um collins, um copo americano grande ou até mesmo um copo de plástico, tudo depende da ocasião. Jogue lá dentro umas pedras de gelo, 50ml de vodka e 100 ml de Fanta Laranja – ou algo que respeite a proporção 1:2, a que eu fiz aqui em casa para escrever esse texto. Mas vale o aviso: em matéria de proporção, você pode testar a que mais lhe aprouver, seja dando um grau no álcool ou reduzindo a dose.
Depois disso, mexa um pouquinho: se tiver uma colher ou bailarina, ótimo. Se precisar improvisar, fique à vontade, pois dá certo até mesmo se você usar o dedo (limpo!) ou o cabo de um garfinho plástico, aquele você usou pra comer o bolo da festa de debutantes. A mexida é essencial para deixar o álcool e o refrigerante levemente misturados, melhorando o gosto da bebida e permitindo que o gelo também refresque a combinação. No mais, seu Hi-Fi está pronto. E como última dica, vale o aviso: se misturar vodka com suco de laranja, não é Hi-Fi. É Screwdriver, uma das bebidas favoritas de Lemmy (o do Motorhead), mas isso é assunto para outro dia… e outro disco.
Reclames da Quinzena
No Programa de Indie, eu e Igor Muller fazemos tal qual Paulinho da Viola: olhamos pro passado e não esquecemos do futuro. Numa semana, teve um programa cheio de excelentes novidades. Na outra, a comemoração dos 30 anos de Crooked Rain, Crooked Rain, o disco que consagrou o Pavement como uma das bandas mais importantes do rock alternativo. E eles vêm aí no C6 Fest, viu?
Enquanto isso, lá no site da família indie brasileira, o Scream & Yell, tem dois (ou seriam quatro?) textos bem bacanas.
Um é uma entrevista rápida com o Daniel Lameira, que está lançando a Seiva, um misto de editora, escola e comunidade criativa.
E o outro foi a cobertura em três dias, com textos, fotos e 58 vídeos do Goiânia Noise Festival, um dos festivais independentes mais especiais do País. Chega lá que tem muita reflexão sobre shows de gente como Nação Zumbi, Boogarins, Violins, Letrux e Terno Rei, além de revelações como Blastfemme e YPU.
No YouTube, além dos vídeos do Goiânia Noise, tem também coberturas de shows como Só Pra Contrariar, Gong e Tom Jones. Chique, né?
E pra fechar, mas não menos importante, na Cajuína tem um papo meu com a Paula Simões, VP de Conhecimento e Aprendizagem da Fundação Dom Cabral, sobre como a educação executiva/adulta está mudando nos últimos anos.
E se você vier comentar que Estúpido Cupido não está à altura da newsletter, tudo que eu tenho a dizer pra você está ali na faixa 4 do lado A: “vai falar? deixa falar…”
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Estúpido Cupido, claro, mas foi pensado não só na minha casa, mas também em caminhadas na Avenida Presidente Kennedy, em São Caetano do Sul. É um detalhe biográfico besta, mas fica a dica para quem estiver no ABC e precisar fazer seu cardio.
PS2: O exemplar deste disco também veio do ABC – e ele não pertence à minha coleção, mas sim à de seu Capelas, que o comprou numa cópia autografada há alguns anos no Mercado Livre. Uma belezinha, eu diria.
PS3: Não sei se já falei aqui do ABZ do Rock Brasileiro, mas vale mesmo se for repetido: esse livro é bom demais e importante demais pra minha formação, não só enciclopédica, como também até em estilo de texto. Dá pra achar na Estante Virtual e… se você se interessa pelo rock no Brasil, só o prefácio do Zé Rodrix já vale o livro.
Amei ler esse texto sobre a minha tia e o meu pai. Obrigada!
Amo seus textos, essa foi surpreendente e gostosa de ler e agora vou ter que passar no Oxxo comprar uma fanta pra tomar um hi-fi tb