#39: “Expresso 2222”, Gilberto Gil + Pipoca Moderna
Um drink "da casa" para um disco especialíssimo, em tempo de comemorar o primeiro aniversário dessa newsletter com pipoca
Hoje é dia de assoprar as velhinhas aqui na Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais: afinal de contas, é com muito orgulho que anuncio que completamos nossa primeira volta em torno do Sol. Fico muito feliz de ter vocês me acompanhando ao longo desse ano, seja descobrindo coquetéis clássicos ou aceitando minhas pequenas pirações, sempre ao som de excelente música brasileira. E já que hoje o dia é de festa, a gente vai ter no coquetel do dia uma coisa que toda festa de criança tem que ter: pipoca. Mas vai ser uma pipoca moderna, de uma maneira muito diferente do que a gente está acostumado a curtir. Prometo que não vai ter piruá. Para acompanhar, não vai ser guaraná, mas sim outro produto extremamente brasileiro: Gilberto Gil e o grande Expresso 2222, uma das muitas obras-primas que o baiano gravou ao longo de 81 anos de vida.
O drink de hoje também paga uma dívida quase histórica dessa newsletter: lá nas primeiras semanas de escrita, pedi a alguns amigos que me fizessem provocações e sugestões para harmonizações. O
, da , pediu um disco que combinasse com Negroni – e respondi quase de pronto com Itamar Assumpção. Já o parceirão de shows, da , pediu um drink pra harmonizar com Expresso 2222, e eu passei um ano inteiro bolando uma receita que fizesse sentido. Foi uma tarefa difícil: Expresso 2222 é daqueles discos tão potentes que parece inclassificável, difícil de harmonizar. Precisei de muita audição, precisei comprar o vinil e precisei me enfiar na cozinha para sair com algo digno de um disco tão misturadamente bonito.🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
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Expresso 2222 é um ponto de inflexão importantíssimo na carreira de Gilberto Gil. Gravado em maio de 1972, é o primeiro disco lançado pelo artista ao voltar do exílio forçado em Londres durante a ditadura militar. Mais que apenas um período de corte abrupto e afastamento, Londres deu a Gil uma vivência de músico diferente da qual ele estava acostumado no Brasil, com mais improviso, mais jam sessions, “free”, diria ele em sotaque baiano. Na capital inglesa, descrita certa vez em entrevista ao jornal Bondinho como um mosteiro, Gil aprofundou sua relação com a yoga e a macrobiótica, ao mesmo tempo em que pode olhar para seu próprio umbigo e repensar sua própria trajetória musical. Ao chegar aqui e entrar para gravar no novíssimo Estúdio Eldorado, o primeiro do Brasil a contar com gravação em 16 canais, ele pode unir duas pontas de sua vida.
Nascido em Salvador, mas crescido em Ituaçu, no interior baiano, Gil teve uma infância rural, escutando muito forró, baião e samba de roda. Em Salvador, onde foi morar com 10 anos de idade, conheceu bossa nova, Caymmi e estudou… Administração de Empresas. A faculdade lhe trouxe para São Paulo, onde ele teve contato pela primeira vez com o que chamou de “música pop” – uma pedra que estilhaçou a vidraça de seu mundo musical e degringolou no tropicalismo, fazendo em pouco tempo o compositor migrar de sambas e marchas-rancho para canções ousadas, como “Domingo no Parque”, “Luzia Luluza” e “Questão de Ordem”. Iconoclastas e avançadas, essas canções questionavam o poder vigente e colocaram Gil na rota de mira dos militares, o que lhe garantiu uma passagem traumática pela prisão e uma passagem só de ida pra Londres.
Ao voltar com um punhado de canções na mala, Gil gravou um disco que mostra exatamente a razão do verso de “é como se ter ido fosse necessário para voltar”. Afinal de contas, se de um lado Expresso 2222 tem alguma das guitarras mais interessantes da carreira do baiano – cortesia do absurdo gênio da guitarra Lanny Gordin –, por outro também promove um reencontro do cantor com suas raízes, ao regravar João do Vale (“O Canto da Ema”) e Jackson do Pandeiro (“Chiclete com Banana”). Mas não são quaisquer regravações: tanto “Ema” quanto “Chiclete” são gravações envenenadas, com eletricidade e muito balanço.
Seria besteira resumir Expresso 2222 a essa dicotomia: é um disco que ao mesmo tempo é divertido, trazendo uma porção de faixas dançantes (e que o diga o excelente dueto de Gil com Gal no forró “Sai do Sereno”), ele também é reflexivo, a começar pela faixa-título, essa viagem que aponta tanto para o futuro como para a expansão da consciência – tema muito em voga naqueles anos 1970. Isso para não falar em “O Sonho Acabou”, escrita por Gil após a excursão dos exilados brasileiros ao festival de Glastonbury em 1971, quando o artista se deparou com o último vislumbre daquela ilusão iniciada pelos Beatles e que desembocou no movimento hippie, àquela altura já bastante degringolado. Expresso é também o disco que tem uma das minhas músicas favoritas de Gil, e talvez a única música que poderia encerrar este álbum: “Oriente”.
Você talvez já tenha ouvido falar do quanto o violão de Gilberto Gil é mágico. Talvez até já tenha ouvido falar da lenda que o disco Gil e Jorge, Ogum Xangô, gravado em dueto com Jorge Ben, começou como o registro de uma jam session entre os dois que tinha como convidado especial o inglês Eric Clapton – e da qual o guitarrista do Cream se retirou por perceber que não estava à altura dos brasileiros. Pois bem: “Oriente” é talvez a gravação de estúdio em que esse violão místico, cheio de caminhos próprios, melhor apareça. É também uma letra que pode servir como uma espécie de guia espiritual, I-Ching em formato de canção, apontando um caminho a seguir na vida de um jovem um pouco perdido. Sei lá quantas vezes eu tomei uma decisão na vida depois de ouvir o conselho: “se oriente, rapaz”.
É difícil falar de Expresso sem falar de seu disco irmão, Transa, gravado pelo mano Caetano ainda no finalzinho do exílio. Além de compartilhar o baterista – o gigantesco Tutty Moreno, também conhecido como “o marido da cantora Joyce” –, os dois discos também estabelecem certo sentimento de página virada para a carreira dos dois baianos. Ambos consolidam as conquistas do tropicalismo, mas mostram que o caminho a seguir é um bocado diferente do que aconteceu antes. Seus vetores, porém, são diferentes: antes de voltar às canções, Caetano radicalizaria seu experimentalismo em Araçá Azul, um disco tão difícil quanto respeitado, enquanto Gil mergulharia em turnês e grandes canções – na sequência de Expresso, ele se embrenhou pelo Brasil ao lado de Luiz Gonzaga, fez shows no circuito universitário e se voltou ao violão. O melhor registro disso está em Ao Vivo na USP, registro histórico do show feito por Gil na Escola Politécnica em 1973, testemunho de uma fase de sua carreira meio incógnita.
Explico: ao se mirar a discografia oficial de Gilberto Gil, o próximo disco de estúdio do baiano após Expresso é só Refazenda, lançado em 1975. No meio do caminho, houve outro álbum, o duplo Cidade do Salvador, que acabaria abortado e só veria a luz do dia em 1999. É fácil entender seu potencial: ali estão reunidas gravações de algumas de suas melhores músicas, como “Meio de Campo”, “Ladeira da Preguiça”, “Tradição” e “Essa é Pra Tocar no Rádio”, além de releituras de “Eu Só Quero Um Xodó” e “Maracatu Atômico”. Já pensou? Pois é, mas não foi essa a história que se contou: ao emergir três anos depois com Refazenda, Gil já estava em outra parada, mais brasileiro e místico, menos roqueiro, pronto para se transformar no medalhão que nunca mais deixou de ser.
Falei, falei, falei, e preciso voltar ao início do disco, que se abre com uma faixa instrumental rica e cativante: “Pipoca Moderna”, um registro da Banda de Pífanos de Caruaru. É uma justa homenagem: segundo o próprio Gil, ouvir o grupo liderado por Sebastião Biano e depois escutar “Strawberry Fields Forever”, da Banda de Pífanos de Liverpool, foi uma das forças motrizes que o fez querer organizar o movimento e orientar o carnaval da Tropicália. Começar o disco que dá adeus a esse período tão importante da música brasileira com uma faixa tão bonita e singela da própria Banda de Pífanos é uma forma de abrir e fechar um ciclo, ao mesmo tempo. E como eu lá gosto de uma literalidade, sabia que seria impossível fazer um bom coquetel para Expresso 2222 se ele não tivesse pelo menos algum caractere de pipoca.
Após matutar por algum tempo, pedi ajuda a amigos – e um deles, o Zóide (também conhecido como Doutor Guilherme Bottino, atualmente em pesquisas de pós-doutorado na Nova Inglaterra, EUA #fancy), sugeriu um xarope de pipoca. Pode parecer invencionice, mas descobri até que a Monin vende um syrup com esse sabor lá na gringa. E achei uma receita pra fazer o meu próprio em casa: o resultado é um xaropão com cheiro de milho e gosto entre o salgado e o doce, uma vez que o xarope leva tanto açúcar como sal. E daí, passei a testá-lo em diferentes receitas, também obedecendo à lógica que um disco que tem Expresso no nome deveria ter um drink com café.
Primeiro tentei fazer uma versão particular do Revolver, que desembocou no Cafezinho do Moacir Santos – achei que a bebida não combinava com este Expresso. Depois, Expresso Martini, com adição de cachaça no lugar da vodka, mas não funcionou bem. E aí me dei conta que, tal como diz a canção, era preciso ir pra poder voltar – e se tem uma bebida que simboliza Londres como poucas, essa é o London Dry Gin. Lá fui eu atacar a despensa e acabei me saindo com esta Pipoca Moderna, uma combinação ao mesmo tempo elegante e saborosa, divertida e caótica: gim, licor de café e xarope de pipoca, num coquetel que é ao mesmo tempo salgado e doce, leve e cheio de amido, com a “sustança” que só um álbum gigante e incontornável da nossa música poderia ter.
Sei da ousadia que posso estar cometendo ao querer inventar tanta moda em um disco tão importante – até consigo prever alguém sugerindo um drink clássico que combine com Gilberto Gil nos comentários em 3, 2, 1. Mas se fosse para repetir velhas ideias, talvez eu nem tivesse começado essa newsletter. É por isso que nem sempre eu abraço um drink clássico. É por isso que, muitas vezes, eu escolho um disco lado B ou Z da minha coleção para escrever sobre aqui.
Fico feliz demais em saber que isso não só não irrita, como agrada vocês, companheiros e companheiras de balcão. Felizmente, também sei que tem muito disco ainda para escrever sobre e muito coquetel para beber nos próximos meses e anos. Agora, chega de falar que é dia de festa – ainda mais porque escrevi esta coluna alguns dias adiantado, no dia que aquele pulha que envergonhou o Brasil nos últimos anos finalmente se tornou inelegível. É hora de comemorar… pulando que nem pipoca.
A Receita
60 ml de gin
15 ml de licor de café
15 ml de xarope de pipoca
Xarope de pipoca? Como diria Ana Carolina, “é isso aí”: parece doido, é doido, mas é mais fácil de fazer do que parece. Pra começar, estoure um pouco de pipoca na panela, sem adicionar tempero algum – só aquele óleo de soja básico pra coisa pipocar de fato. Depois disso, o processo parece com o xarope de açúcar, mas em proporções diferentes: coloque 2 xícaras de água, 2 colheres de sopa de açúcar, meia colher de sopa de sal em um caneco, em fogo médio.
Deixe a mistura esquentar um pouco, até sal e açúcar se dissolverem. Depois disso, adicione 2 xícaras e meia da pipoca sem tempero e baixe o fogo, deixando essa mistura se dissolver por uns 5-7 minutos. Ao final disso, desligue o fogo e passe todo o conteúdo por um filtro de papel, como o de um coador de café. O resultado deve ser um líquido esbranquiçado, sem piruá nem casquinha, cheio de amido e com cheiro de saquinho de pipoca. Deixe esse xarope esfriar antes de começar seu coquetel – e aproveita pra comer o resto da pipoca enquanto espera.
Feito tudo isso, fazer o Pipoca Moderna em si é fácil, fácil: coloque tudo numa coqueteleira com gelo, bata vigorosamente e sirva a mistura (sem o gelo!) em uma taça coupé, se possível bem gelada. Pronto, tá aí sua pipoca líquida, pronta para ser degustada no escurinho do cinem… opa, pera, aí é outro disco. O importante é curtir – e quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou. Ah: a receita do xarope de pipoca veio daqui, tá. Eu juro que não inventei não.
Reclames da Semana
No Programa de Indie, eu e o Igor Muller fizemos a quarta edição da nossa Festa Junindie, dessa vez trazendo um manual do indie caipira da América do Norte – ou só uma desculpa pra ouvir belezuras como Wilco, Cowboy Junkies, Smog e o gênio Jason Molina.
Também passei rapidinho pelo Estadão para falar sobre como foi provar gordura de porco cultivada em laboratório – uma criação da startup Cellva, que ainda não tá exatamente pronta para ir ao mercado, mas mostra bastante potencial. Comi uma linguiça feita com essa gordura celular e sobrevivi para contar. Vai lá.
Um dos maiores da arte brasileira, Zé Celso, se foi enquanto eu dava os últimos retoques nessa newsletter. E enquanto digito essas linhas, também troquei uma ideia com o amigo Guilherme Caetano, d’O Globo, sobre como a disputa do Teatro Oficina com Silvio Santos (isso parece até nome de música do Tom Zé, não fosse real demais) influenciou o Castelo Rá-Tim-Bum. Tá lá no site do jornal – e fica o aviso caso você possa não saber que eu escrevi um livro sobre o Castelo. É, eu escrevi, hehe – e tá nas melhores lojas do ramo.
Pra fechar, tem também em Cajuína uma matéria bem bacana que eu adorei fazer sobre stock options – esses pedacinhos de ações que as empresas oferecem para os colaboradores e fez muita gente ficar rica no Vale do Silício. O modelo começa a se popularizar no Brasil com o mundaréu de startups que surgem por aqui, mas é complexo – e entender essa complexidade pode valer a pena.
Como se ter ido fosse necessário para voltar. Isso aí é a vida, bicho.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Esse texto foi escrito ao som de Expresso 2222 e dos dois volumes de Cidade do Salvador, além de ser muito imaginado ao longo de sessões de Ao Vivo na USP, esse espetáculo lindaço que passou anos sendo o bootleg brasileiro mais legal – finalmente teve lançamento oficial pela Discobertas, presente até no Spotify.
PS2: “Pipoca Moderna” depois teve letra de Caetano e foi gravada por ele no disco Joia, outra joia da música brasileira. Mas o que gosto mesmo é dessa gravação instrumental aqui do disco de Gil. Outra coisa que eu amo nesse disco é o verso “querendo ouvir Celly Campello pra não cair”. Vou voltar nessa piração um dia, prometo.
PS3: Uma parte da pesquisa para esse texto veio do glorioso Entrevistas: Bondinho, livro que reúne entrevistas incríveis feito pelo jornal independente dos anos 1970, reunida pela Azougue Editorial faz uns anos. é uma preciosidade pra quem quer ler boas entrevistas de Gil, Caetano, Chico, Mutantes, Tom Zé, Macalé e muito mais. Aproveita que ele ainda existe (esse tipo de livro é fácil de sumir de catálogo), não bobeia e compra.
PS4: Vou cometer uma redundância: Gil é foda. Ouçam Gil demais. Se você quer entender o Brasil e não sabe por onde começar, ouve “Domingo no Parque”. Juro que vai fazer sentido. E se você quer uma música bonita pra sonhar de amor, ouve “Luzia Luluza”. Se não bater aí, de novo recomendo você a consultar seu cardiologista.
PS5: Comecei nas últimas semanas um curso de sommelier de cervejas (mais sobre isso, em breve), e tenho pensado muito sobre tradição/modernidade, luxo/commodity e outras coisas em termos de bebidas. É um prolongamento de algumas ideias que eu expus no O que é um bar e parte desse pensamento também vem nesse texto do Drinking Culture, newsletter bem bacana que parou na minha caixa de entrada nem sei bem como. Ela fala muito de vinho e confesso que eu passo ao largo de muitas discussões, mas essa aqui é pra todo mundo que bebe e acha que tem bom gosto. Ou não. Mas lê aí, vai.
Aí sim! Farei o drink para conferir a harmonização em questão.