#48: “BAILE”, FBC & Vhoor + Xeque-Mate
Vindos das Geraes, a bebida do verão e um dos discos de pista mais legal dos últimos tempos servem pra discutir sobre a importância de fazer festa no meio do caos – e porque isso não é uma contradição
“E aí, gente, como foi o Carnaval de vocês?” (ler com voz de quem não sabe o que dizer e tá tentando se enturmar).
O meu foi bem tranquilo: troquei os blocos de São Paulo e o glitter na cara por um retiro na roça ao lado da namorada em Uberlândia, aproveitando represa, piscina do clube e os melhores espetinhos disponíveis nos bares da Pérola do Triângulo Mineiro. O que não quer dizer que eu não tenha prestado atenção aos movimentos da folia: me emocionei vendo os desfiles de Vai-Vai e Portela e não pude deixar de notar que uma onda dos últimos Carnavais voltou ainda mais forte. Sim, estou falando dele mesmo: o Xeque-Mate, essa bebida de latinha que clandestinamente roubou o coração do carnaval paulistano com sua mistura perigosa de chá mate, guaraná, rum e limão. E quando pintou uma receitinha caseira do drink originalmente surgido em Belo Horizonte, eu sabia que tinha um coquetel para a próxima newsletter. Faltava juntar com um disco – e não pude evitar o apelo de escolher outra sensação recente vinda das Geraes: Fabrício Soares, o FBC.
É um dos artistas “recentes” que eu mais tenho escutado ao longo dos últimos tempos. E olha que a carreira de FBC nem é necessariamente tão recente assim, tendo passado pelo coletivo DV Tribo (que também tinha Djonga e a dupla Hot e Oreia) e empreendido discos de rap mais tradicionais antes da pandemia, caso da dupla S.C.A., de 2018, e PADRIM, de 2019 – esse último tem a maravilhosa balada “Se Eu Não Te Cantar”, uma declaração de amor à música que deveria arrepiar qualquer melômano.
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Um dos culpados por FBC estar no topo do meu Last.fm é o disco O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta, lançado no ano passado com uma vibe disco-soul brasileiro sensacional – e com um repertório que faz o mineiro Fabrício cometer um dos shows mais animados da cena independente na atualidade. Mas meu coração bateu mesmo pela primeira vez pelas músicas de FBC com o álbum que ele lançou em 2021, ao lado do beatmaker Victor Hugo de Oliveira Rodrigues, o VHOOR: BAILE.
Eu lembro exatamente da primeira vez que apertei o play numa cançãodo FBC: eu estava no litoral do Ceará, numa viagem de trabalho particularmente tensa, em meio a uma fase de ansiedade que se transformaria no sintoma mais agudo de um burnout. Mas, por menos de dois minutos, ao escutar pela primeira vez o hit “Se Tá Solteira”, tudo que eu senti foi tesão e nostalgia. Nostalgia de uma fase mais simples da vida, provavelmente ali no começo da adolescência, quando canções de artistas como MC Leozinho e MC Marcinho eram a trilha sonora de bailinhos de garagem na época do ensino fundamental. E tesão, bem… seja pelos graves intensos produzidos por VHOOR, pelos backing vocals marotos de Mac Júlia ou pela letra sacana de FBC, é difícil não sentir os hormônios subirem à flor da pele nessa balançada canção – que foi feita não só pensando no TikTok, onde virou hit, mas também nos DJs de baile. Não é à toa que ela é tão curta: é (per)feita pra bombar na pista e acabar rapidinho, enquanto o disc-jockey busca a próxima faixa superquente.
“Se Tá Solteira” foi um baita cartão de visitas para BAILE, um disco que funciona como homenagem a uma das sonoridades mais influentes no funk brasileiro, especialmente entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 2000: o miami bass. A princípio, tudo começou como uma brincadeira entre FBC e VHOOR, que se conheceram menos de dois anos antes de lançar o disco e, a despeito da diferença de idade de uma década, se uniram como queijo e goiabada numa parceria potente.
Não é difícil entender o porquê: em menos de meia hora, BAILE não só contém alguma das mais poderosas canções de pista produzidas nos últimos anos no Brasil, como ainda serve como perfeita explicação sonora de uma das ideias mais importantes que eu ouvi nos últimos anos sobre o País que eu vivo, cunhada pelo historiador Luiz Antonio Simas. Lá vai: “A festa não contradiz a luta. Pelo contrário. É no arrepiado das arrelias e na plenitude dos corpos em trânsito que o mais subversivo dos enigmas há de nos salvar contra os arautos da morte: a capacidade criadora da alegria nos infernos.”
Originalmente, Simas falava do Carnaval, mas acho que o contexto pode ser adaptado para o baile funk de FBC e VHOOR, que ao mesmo tempo olha para o passado e tem os dois pés fincados no presente. Afinal de contas, em uma lição aprendida e apreendida com o mestre Jorge Ben, convivem lado a lado em BAILE a dança e a denúncia, o romance e a contravenção, a festa e a violência.
Violência essa que, na maior parte das vezes, é produzida por aqueles que deveriam ter o tom de proteger, como mostrou tão bem também a Vai-Vai no desfile da última semana, ao mostrar a polícia paulista como uma força opressora, racista e fascista. E como explica bem Simas, não há contradição em misturar o passinho com a revolta: é justamente na força que a festa traz para os corpos que surge a energia para resistir. Tá difícil de entender? FBC explica em “Quando o DJ Toca”: “Se a semana foi mal, se o dia foi ruim/esquece tudo e vem assim na pista do baile”.
Uma mão vai na cintura, a outra na consciência: é assim que, sempre apoiado pelos beats de VHOOR, FBC entremeia canções urgentes de pista a dedos na cara – e o que dizer de “Polícia Covarde”, que fez o rapper ser vaiado em um show no Jockey Club carioca? É essa vibração que justifica que uma faixa tensa como “Melô do Vacilão” venha logo antes do hit “Se Tá Solteira”. Originalmente, a intenção do rapper era contar uma história com o disco – a saga de um trabalhador que vai preso num mal-entendido e, depois de solto, sonha com um amor não correspondido, interrompido por uma ação policial. (Parece Cidade de Deus? Não é mera coincidência nem plágio: é só a realidade mesmo)
É o que FBC chamou em várias entrevistas de “Ópera Miami”, mas confesso que só percebi mesmo esse fio narrativo depois que ele tinha sido explicitado pra mim. Tudo bem: mesmo que solta, a intenção está explicada, dando vazão a pedradas como “Delírios” e “Não Dá Pra Explicar”, cujo tom desiludido não faria feio ao lado do grave tristonho de MC Marcinho no clássico “Princesa”. Sei que à primeira vista pode parecer fora do meu personagem, mas se tem uma coisa que eu tenho amado cada vez mais é voltar às origens do funk carioca e me deliciar com expressões tão puras quanto maravilhosas como “Rap do Solitário”, “Corpo Nu” ou “Madagascar”. (Não à toa, o show mais divertido que fui neste 2024 foi do Buchecha, e talvez seja difícil roubar essa posição ao longo do ano).
Mas divago, enquanto deixo para falar da minha faixa favorita de BAILE no final: “De Kenner”, talvez o clássico mais instantâneo do disco. Se “Se Tá Solteira” fez a fama no TikTok, “De Kenner” parece uma daquelas canções que qualquer DJ precisa lançar mão durante a noite – e se até o mestre KL Jay fez isso em seu set no último Coala Festival, quem sou eu pra discordar? Tá tudo lá: uma batida envolvente, uma letra cheia de códigos próprios, referências à moda de cria e à cultura pop… e um grave absurdo.
Como diria o próprio FBC, “é foda quando toca essa no som do baile” – e enquanto escrevo, tremem as paredes do meu apartamento, de maneira que fico até surpreso que o vizinho chato ainda não reclamou. É um som potente – que me faz chorar, não disse por onde. Aliás, preciso fazer uma confissão: essa está sendo a newsletter que mais tempo levei pra escrever em muito tempo… e a culpa é do fato de que eu sempre levantava da cadeira enquanto ouvia o BAILE pra mandar um passinho no chão de taco lustrado, embalado pela cafeína presente nos vários Xeque-Mates bebidos para a produção desse texto.
E é aí que talvez mora o grande atrativo (e o grande perigo) do Xeque-Mate: a princípio, ele parece apenas uma inofensiva e refrescante mistura de álcool, limão e dois sabores que quase todo brasileiro conhece o gosto. Mas a cafeína presente no chá mate e no guaraná fazem quem bebe a iguaria mineira ficar ligado no 220V, enquanto o álcool vai tomando conta da brincadeira. Além disso, apesar de ser refrescante, o o Xeque-Mate tem uma nota grave, provavelmente proveniente da tosta do chá, que parece buscar manter o conviva com pelo menos um de seus pés no chão. É uma bebida enigmática – especialmente pra quem a bebe num bloco, na latinha, sem copo e torcendo por um ambulante clandestino que não aceitou as regras de exclusividade da Ambev. Mas é cheia de charme, e tal como os melhores perfumes, precisa ser degustada em pequenos frascos… ou você não viu o meme de que “quatro Xeque-Mate é o suficiente pra acordar só amanhã?”.
Acho que a mistura entre o Xeque-Mate e o BAILE de FBC tem lá seu sentido justamente por aí: além da origem geográfica, ambos têm em comum esse jogo de aparentes opostos e contradições, que resultam num significado único. Não é à toa que os dois viraram uma sensação – e enquanto já sei que os passos seguintes de FBC a este disco são interessantíssimos, eu não duvidaria que a Xeque Mate Bebidas, atualmente com um só produto, recebesse uma proposta irrecusável do grupo de Antarctica e Brahma. (Não seria a primeira vez, aliás, nem mesmo em Belo Horizonte – e quem diz isso é um saudoso bebedor de Wäls #procuresaber). Outra justificativa besta é que, acompanhando o cantor nas redes sociais, me dei conta de que ele próprio é um bebedor contumaz de Xeque-Mate.
Puristas ousarão dizer que o Xeque-Mate não é um coquetel, mas sim uma bebida pronta, da mesma forma que poderão afirmar que FBC ainda tem muita coisa para provar. Bobagem: prefiro acreditar na palavra do próprio Fabrício, que sempre diz que está fazendo o melhor show de sua vida a cada noite, e na receita abaixo que se aproxima consideravelmente da bebida enlatada, guardadas as distâncias causadas pelos processos industriais de nossos tempos. Mais que isso: fico feliz de finalmente conseguir ter publicado uma receita com guaraná, mesmo que em xarope, depois de quase cinquenta edições desta Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. E mais que isso tudo: fico ainda mais feliz por ter falado de uma bebida e de um disco que muita gente ainda pode não conhecer, mas têm tudo a ver com o Brasil, entre a realidade mais terrena e a utopia e a liberdade das festas. Saúde.
A Receita
240 ml de chá mate
60 ml de rum branco
25 ml de xarope de guaraná
20 ml de suco de limão
Antes mesmo de beber Xeque-Mate pela primeira vez (o que acho que aconteceu no Cordão Cheiroso em 2023, na Vila Anglo Brasileira), eu já tentava desvendar a fórmula mágica dessa bebida mineira. Passei longe de acertar, provavelmente porque eu estava tentando usar o refrigerante de guaraná em vez do xarope concentrado. A fórmula mágica veio desse tweet aqui, encontrado pela
durante o Carnaval, mas não conseguimos nos organizar pra achar o xarope em Uberlândia, de maneira que só fiz meu primeiro Xeque-Mate caseiro já em solo paulista.A receita original, vocês podem ver, tem proporções um pouco maiores, mas elas resultavam sempre em um volume maior que o de qualquer copo aqui de casa – e essa newsletter busca sempre trazer padrão individual, salvo raríssimos casos. Dito isso, reduzi um pouco as proporções em prol da prática (e de uma coqueteleira menos estufada), mas se você sabe matemática você provavelmente sabe que pode aumentar essa proporção de maneira quase industrial, não é mesmo?
Fazer um Xeque-Mate caseiro é facim, facim: antes de tudo, prepare seu mate, esquentando água e infusionando o chá como sua vovó querida fazia. Deixe o mate esfriar e aí bata ele na coqueteleira com gelo e todos os outros ingredientes. Bata bastante, pra deixar tudo gelado e fazer seu mate com aquela espuminha gostosa. É um bom substituto para a falta de carbonatação, já que a versão industrializada da bebida tem lá um certo grau de bolhinhas. (Vale ainda o teste de fazer um mate mais concentrado e trocar parte do volume por água com gás, mas… aí é do gosto de cada um). Feito? Melhor que isso, só se você colocar seu Xeque-Mate num copo Stan… opa, aí acho que a gente já tá se perdendo no personagem. Ah, já ia esquecendo: eu usei Rum Bacardí Carta Blanca – achei que o Havana Club ia roubar demais o gosto do mate. Já o xarope de guaraná eu usei da Milani, a mesma marca da clássica groselha.
Reclames da Quinzena
O Programa de Indie teve dois programas muito bacanas nas últimas duas semanas. O primeiro reuniu novidades de gente boa como Liam Gallagher, Beth Gibbons, The Smile (a banda nova do Thom Yorke, manja?) e uma das bandas do meu coração, o The Decemberists. Já no segundo, eu e Igor Muller pagamos uma dívida histórica: dedicamos pela primeira vez um programa inteirinho para os Smiths, focando no ano de 1984. Chega mais.
E pra não dizer que não falei de mais nada, fica aqui a dica: na
, o grande fez um texto bacaníssimo misturando Mariana Enríquez com o último disco do Él Mató a Un Policia Motorizado, aproveitando algumas aspas do programa que eu e o Igor fizemos com o Santiago Motorizado há uns meses. Aproveita e assina lá a newsletter do Balbi, que é bem massa. :)
E se sua semana foi mal e o dia foi ruim, esquece tudo e vem pra pista do BAILE com um drink na mão.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de BAILE, tanto na versão do Spotify quanto na bela edição em vinil que a Fatiado Discos lançou em 2022. Também foi escrito ao som de trechos de shows de FBC, de seguidas audições de “Se Eu Não Te Cantar” e do maravilhoso O Amor, O Perdão e a Tecnologia…, um disco que aponta caminhos muito interessantes pra carreira de Fabrício Soares. Sente só porque eu tô ansioso pelos próximos passos…
PS2: Existe mais um motivo caótico para BAILE ter sido o disco dessa quinzena: FBC é um fã declarado de Jorge Ben. O título do último disco dele parece um verso do mestre Babulina, e achei que fazia sentido juntar passado e presente da música preta popular brasileira numa sequência na newsletter. Também acho divertido o paralelo de que o Xeque-Mate é uma versão turbinada do Mate com Limão, drink que nem é drink mas rendeu uma das edições favoritas dos leitores nessa newsletter.
PS3: Também preciso dizer que acho massa demais o nome da bebida ser Xeque-Mate, pelo enxadrista que existe em mim. Já contei aqui que fui campeão municipal de xadrez nos Jogos Escolares de São Caetano do Sul? Não é fraco não, viu… pena que a falta de foco adolescente me impediu de virar o Capablanca do ABC.
meu mano, sou muito fã do seu trampo e da sua newsletter. parabéns pelo corre e pelos belíssimos textos que sempre me levam pra um lugar de afeto
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