Quando decidi começar essa newsletter, eu tinha dois objetivos: explorar novos paladares e, ao mesmo tempo, unir essa viagem com a minha paixão por música brasileira (e de outros cantos, vocês sabem). Se desse para traçar esse caminho por paragens menos óbvias, melhor ainda. Hoje é dia de uma dessas paradas, ao mesmo tempo em que eu tento por fim numa sequência de discos & drinks temática começada há algumas semanas. De um lado, uma exploração pelo rock paulistano dos anos 1980, numa trilogia que já passou pelo Titãs, pelo Ira! e agora chega ao Fellini. Do outro, uma soma de sabores que gira em torno do Negroni, um coquetel que sinestesicamente tem muito a ver com São Paulo na minha cabeça – uma teoria que eu desenvolvi aqui na Meus Discos falando de Itamar Assumpção. Nessa semana, a brincadeira gira em torno do Gin & It, um coquetel difícil.
Primeiro, algumas palavrinhas sobre o Fellini. Não, não estou falando do cineasta Federico (confesso que essa é uma lacuna para se resolver em 2023, caros amigos), mas sim da banda paulistana de Cadão Volpato, Thomas Pappon, Jair Marcos e Ricardo Salvagni, que militou em fileiras independentes nos anos 1980. Pappon, aliás, tocou em várias bandas independentes da época: Voluntários da Pátria, Smack, 3 Hombres…, um verdadeiro multi-homem da cena. Descrever o Fellini em poucas palavras, por sua vez, é difícil, mas vamos lá: herdeiros da primeira geração do pós-punk e de certo charme de intelectual que rondava a São Paulo da época, o Fellini começou fazendo rock torto com letras malucas, brincando com colagens e disparando referências esquisitas – de Godard ao rock alemão, passando pelo clima lúgubre do quase fim da Guerra Fria.
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Ao longo de sua curta carreira, com quatro discos em seis anos, o grupo evoluiu, criando pérolas pop (“Teu Inglês” é o que a gente costumava chamar de semi-hit) e uma série de sambas difíceis, esquizofrênicos, quase dark, mas muito bonitos. É o caso de “Chico Buarque Song”, “Amor Louco” e “Clepsidra”, três pepitas que carregam o sotaque paulistano no coração (e talvez só por isso façam a gente balançar os pés meio quadrado). Mais que grandes canções, porém, o Fellini deixou como principal legado um manual de postura & estética para bandas alternativas ao sul do Equador, quando ainda nem sequer se falava direito em indie lá fora. O próprio Cadão Volpato, que muita gente talvez reconheça de apresentar programas como o Metrópolis, dizia que o Fellini era uma banda independente – “inclusive do sucesso!”.
Para ouvidos mais ligados no rock, talvez o ponto de partida ideal – como foi o meu caso – para entender a banda esteja justamente na sua estreia, O Adeus de Fellini. Sim, o nome do disco é esse mesmo: trata-se de uma homenagem ao grupo pós-punk inglês Durutti Column, cujo primeiro trabalho se chama The Return of Durutti Column. (Aliás, fica a dica: Vini Reilly é vida).
Lançado no mesmo ano em que os Titãs diziam que a televisão lhes deixou burro demais (e um ano antes de Vivendo e Não Aprendendo, do Ira!), O Adeus não é exatamente um disco palatável, com letras que beiram o surrealismo. No entanto, é curioso ver como a vida imita a arte: trinta e cinco anos antes da cloroquina invadir o palácio do Planalto, Cadão Volpato queria ser socialista e já estava lá vendo uma ema no Palácio da Alvorada (na clássica “Funziona Senza Vapore”). Mas isso é ou não é exatamente uma referência?
Palatável também não é exatamente a primeira palavra que se pode dizer sobre o Gin & It, um coquetel nascido na Itália, mas que viajou diversas vezes pelo Atlântico Norte nos copos de convivas afeitos a ele. Como você pode imaginar, a primeira parte do drink é fácil de decifrar: afinal, gim é gim em qualquer lugar do mundo – especialmente se estivermos falando do london dry. Já o “It” (aquele quê especial, sabe?) é na verdade uma abreviatura de “italian”, uma das formas populares de se referir ao vermute doce/rosso/vermelho do qual tanto temos falado aqui.
Criado no final do século XIX, o Gin & It é aquele primo meio diferentão do Americano e do Negroni, que fica no canto nas festas de família e do qual ninguém entende as piadas. Também, pudera: à primeira prova, é um coquetel que parece bem esquisito, cheio de botânicos – especialmente se for servido sem gelo, como era moda nos pubs ingleses nos anos 1980, quando o coquetel teve um certo revival. No primeiro gole, é até fácil achar que alguém errou a receita tentando fazer outra coisa.
O que me remete a uma experiência muito curiosa sobre O Adeus de Fellini, um disco que conheci no streaming e depois fui comprar o vinil. Animadaço para um exercício retrô, cheguei em casa e botei o disco na vitrola. Tudo parecia mais lento do que o costume. Achei até que o disco estava com defeito e estava pronto para amaldiçoar o vendedor que me vendeu na feirinha de Santo André quando olhei de novo o encarte: 45 rpm. Era preciso trocar a velocidade da vitrola para que tudo ficasse normal! Ufa.
(A quem não usa vitrola, uma explicação rápida: a maioria dos LPs no Brasil costuma ser gravado para ser tocado a 33 rotações por minuto. Nos EUA, porém, muitos discos acabam sendo feitos em 45 rotações por minuto, outro padrão da indústria, que precisa que a vitrola gire mais rápido. O porquê do Fellini ter escolhido fazer o disco em 45 rpm? Nunca saberei).
Voltando ao Gin & It, é essa receita esquisita mesmo que faz o coquetel ter seu charme. E se no primeiro gole ele dá até uma travada no céu da boca, aos poucos ele vai se soltando – e a mescla entre as bebidas inglesa e italiana vão lá fazendo seu samba, da mesma forma que o pós-punk inglês (de bandas como Stranglers, The Fall e Gang of Four) vai se mesclando à aura cultural europeizada no Fellini. Também, pudera: além de uma faixa de abertura com nome em italiano, tem uma música inteira em alemão (“Zaune”) e outra chamada “Rock Europeu”, que discutia religião e rupturas no capitalismo ao mesmo tempo em que questionava a interação entre dinheiro e arte (“o belo câncer no mundo das ideias”).
Esbugalhou o olho aí? Tem mais: que tal a niilista “Nada” ou a sacana “Shiva! Shiva”, que traz Indira Gandhi como “musa”? Se precisar de mais, tudo bem: tem ainda a maravilhosa “Cultura”, que traz uma citação de Goebbels – “sempre que eu ouço a palavra cultura, saco meu revólver”. Nazista, o Fellini?
Não: o (ex-)trotskista Cadão Volpato ouviu a frase num filme de Godard e a colocou na música como contraposição, sem imaginar que três décadas depois, o Brasil teria um secretário da Cultura que se fantasiaria de Goebbels e, pior, citaria seu discurso ipsis literis. Por que estou falando disso hoje? Talvez só para não esquecer – e olha que este foi um absurdo do ainda atual governo antes mesmo da pandemia começar. (Felizmente, em 15 dias o Brasil volta não só a ter ministério da Cultura, como vai ter um comando que o honre de fato).
O gosto maluco do Gin & It também pode harmonizar com esses dias doidos que vivemos, que tanto se parecem com aqueles meados dos anos 1980 do Fellini: dias de gosto esquisito e muita antecipação, de clima confuso (essa semana já dormi pelado e vesti casaco em São Paulo), mas de alguma esperança. E enquanto tem gente escrota tentando botar fogo em Brasília e estupidamente tentando impedir o amanhã de chegar, é bom lembrar que homens ateiam fogo às suas guitarras há muito tempo. Talvez, no seu bar, o Gin & It não seja nem um drink para todos os dias – e eu respeito isso. Assim como confesso que eu não escuto Fellini regularmente. Mas quando a velocidade dos dias e a realidade parece mais derretida que um relógio de Dalí, taí uma dupla que desce bem demais. “Outro endereço, outra vida, imagens quebradas ainda.”
A Receita
100 ml de gim
50 ml de vermute tinto (aqui em casa, Martini Rosso)
1 pitada de bitter de laranja
gelo grande
Fazer um Gin & It é fácil para caramba – um processo que é até meio tosco, eu diria, mais tosco que algumas das gravações em 8 canais do Fellini. (Vamos lembrar: essa é uma banda que gravou alguns dos discos em gravador de mão na sala de casa, quando isso era limitação técnica e não estética). Pra começar, pegue um mixing glass, uma coqueteleira ou simplesmente um copo rocks, aquele de fazer Old Fashioned. Ponha uma pedra grande de gelo (ou até duas), duas doses de gim e uma de vermute rosso. Mexa um pouco para a mistura “pegar” e depois pingue uma (ou duas, a seu gosto) pitadas de bitter de laranja. C’est fini.
Uma variação possível, if you’re feeling fancy, é mexer o coquetel num mixing glass e depois depositá-lo coado numa taça coupé. Mas aqui a gente é sujinho mesmo, tá?
Me segura que nessa semana tem muito reclame.
No Programa de Indie, eu e Igor Muller tentamos quase passar a régua no ano cheio de novidades. Acaba logo, 2022!
Tô na revista GQ de dezembro (com o Marcelo Adnet na capa!) com um perfil do Hernan Kazah, fundador do Mercado Livre e da Kaszek, principal firma de venture capital da América Latina, com nomes como Nubank, QuintoAndar, Creditas e NotCo entre as investidas. Além do texto, que modéstia à parte ficou bem bom (com a ótima edição da Carolina Giovanelli, que também assina a capa), tem fotos incríveis do Hernan feitas pelo Pedro Dimitrov.
Também escrevi para o Terra recentemente sobre os 10 anos da nova era da realidade virtual – e porque ela ainda não é realidade pra muita gente. Contei com o luxuoso apoio de dois ilustres leitores dessa newsletter: o professor André Pase, da PUC-RS, e o diretor Ricardo Laganaro, que venceu Emmy & Veneza com o desbundante A Linha, uma das experiências audiovisuais mais incríveis que eu vi na vida.
A namorada
vira e mexe fica se perguntando “quem são aquelas pessoas que filmam shows e colocam no YouTube?”. Pois bem: virei uma dessas pessoas – e lá no meu canal toda hora pintam vídeos de shows que eu vi recentemente. No lote dessa semana, tem Alvvays, Fleet Foxes e banda Pelados, entre outros.E, ufa!, na indicação de newsletter da semana, a dica fica pro
, do queridaço . Além de parceiro de bar de primeira hora, Cirilo escreve como poucos sobre cozinha de maneira terna, que nem bolo quentinho de vó. Nessa semana ele preparou um guia do PF vegetariano na Santa Cecília que, embora eu passe longe de seguir, ficou material de muito respeito.
E você nem imagina o que você não conheceu.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Essa newsletter foi escrita num dia de muito mau humor, ao som de O Adeus de Fellini e de Amor Louco, primeiro e derradeiro discos da fase inicial da carreira do quarteto paulistano. Amor Louco, por sinal, foi recentemente reeditado em vinil pela incrível Três Selos, do amigo Rafael Cortes, e tá na minha listinha de aquisições neste final de ano. Afinal de contas, quando a gente fica adulto, precisa ser o próprio Papai Noel.
PS2: Eu tentei ser um pouco biográfico sobre o Fellini nesta newsletter, mas é difícil ser lógico com uma banda tão ímpar. Para quem quiser boas referências sobre a banda, deixo três: um papo do Alexandre Matias com eles em 1999, uma completíssima entrevista do Manoel Magalhães com eles no ano passado para o Scream & Yell e, modéstia à parte, um papo meu e do Igor Muller com o Cadão Volpato na edição #05 do Programa de Indie, pouco antes da pandemia. O Fellini, aliás, foi o último show que vi antes do mundo acabar, e durante algum tempo temi que fosse o último show que eu ia ver na vida. Brrrrr. A vida melhorou, né amigos?
PS3: Por falar em Programa de Indie, vale a explicação: quem ouve o programa já deve ter reparado que eu e Igor sempre encerramos a gravação com um sonoro grito de “fecha!”. É uma referência a “Fecha”, canção do The Gilbertos – projeto solo de Thomas Pappon – que para sempre eu vou usar como documento histórico sobre o absurdo dos absurdos que foi viver no Brasil 2020-2022. Se você não ouviu, tem que ouvir.
PS4: Avisando com antecedência para ninguém ficar bravo: semana que vem teremos a última edição da Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Prometo que vai ser legal – ou pelo menos, vai ser um drink pra te ajudar a desempatar as garrafas de espumante que ficarem sobrando na ceia de Natal e de Ano Novo. Ou deixar as borbulhas mais palatáveis para o nosso verão brasileiro. Spoiler, spoiler, fato é que depois tiramos umas férias de duas semanas e nos veremos apenas em 2023, juntos para mais aventuras. Vamos nessa?