#45: "Tempos Modernos", Lulu Santos + Dark and Stormy
Pra começar o ano vendo a vida melhor no futuro, um disco cheio de otimismo e um coquetel adocicado, com muito balanço
Escolher um disco que começa com o verso “eu vejo a vida melhor no futuro” para abrir um novo ano pode parecer só superstição, mas não é: são realmente os meus votos para quem acompanha esta newsletter há um ano e meio. Sei que “Tempos Modernos”, a canção que dá nome ao primeiro disco de Lulu Santos, já foi bastante usada nos últimos anos como uma mensagem de otimismo por muita gente fina, elegante e sincera. Foi mais que justo, foi necessário. Escolhi Tempos Modernos, a estreia de um dos maiores hitmakers do Brasil, para abrir 2024 não só por conta dessa lufada de otimismo – afinal de contas e apesar dos pesares, 2023 foi um bom ano, obrigado, e torço mais por continuidade do que por “um novo começo de era” –, mas também porque é um disco excelente pro verão. E pra combinar, tive de apelar para um coquetel ainda obscuro no Brasil, mas que tem tudo para virar uma gostosa moda se cair nas mãos de bons bartenders: o Dark and Stormy (ou Dark’n’Stormy, dependendo da sua grafia favorita).
Lançado em 1982, quando o clima de abertura política começava a deixar a casca do ovo, Tempos Modernos começa com ares de coletânea: na sequência da faixa título, Lulu enfileira “Tudo Com Você” e “De Repente Califórnia”, dois petardos mágicos de sua guitarra. Isso pra não falar na curiosa versão de “Get Beck” feita por Gilberto Gil, “De Leve” (que é na contramão). Mais do que isso: é um disco que tem lá seus quarenta anos, mas soa fresco até hoje – graças não só a belas composiçoes, mas tambem por conta da mão mais que competente de um produtor que, com Lulu, mostraria seus primeiros truques para dominar a sonoridade de uma década: Arnolpho Lima Filho, o Liminha.
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Mas não dá para atribuir o frescor de Tempos Modernos a uma sorte de principiante, até porque Lulu e Liminha já andavam militando há muito tempo no rock nacional. Nascido em 1953, Lulu começou a tocar guitarra aos doze anos de idade. Antes dos 20, já tinha virado hippie e fugido de casa para rodar o Brasil – um de seus primeiros mestres foi justamente o mutante Sérgio Dias, que, reza a lenda, lhe ensinou a tocar “Here Comes The Sun”. (Anos depois, Lulu “agradeceria” a lição com “lá vem o sol, minha linda”).
Até o final da década de 1970, Lulu também tocou em dois conjuntos históricos do rock progressivo local: o Veludo Elétrico e o Vímana, onde também militavam Ritchie e Lobão, além de Luís Paulo Simas (este, veterano do Módulo 1000 e autor do “plim-plim” da Globo). E antes de conseguir fazer sucesso, a duras penas, Lulu também foi responsável por programar trilhas sonoras para novelas da TV Globo, tentando até mesmo infiltrar uma música sua numa delas, sob o nome artístico de Luís Maurício. Não deu certo, mas faltava pouco para que isso acontecesse.
Já Liminha, por sua vez, começou a carreira assumindo uma missão difícil: substituir Arnaldo Baptista no baixo dos Mutantes, deixando o lóki livre para o teclado e outras estripulias psicodélicas. Mesmo quando Arnaldo deixou a banda, Liminha permaneceu, saindo do grupo pouco antes da gravação do progressivo Tudo Foi Feito Pelo Sol. Em vez de seguir tocando, Liminha decidiu se mover para a parte de trás dos estúdios, passando a trabalhar como assistente de gravação em álbuns como Maria Fumaça, da Banda Black Rio, e Frenéticas, do grupo homônimo.
Na virada dos anos 1970 para os anos 1980, ele andava buscando uma forma de reduzir distâncias de produção. “Até os anos 80, quando eu ouvia uma rádio pop, era flagrante a diferença entre uma música estrangeira e uma nacional. Eu ficava puto com isso”, conta o produtor no essencial livro Dias de Luta, de Ricardo Alexandre. Pela Warner, ao produzir Gilberto Gil, que já tinha projeção para gravar em Los Angeles, Liminha adotou a postura nerd: anotou tudo que era possível e encomendou toda sorte de equipamento para fazer aqui um som como os gringos faziam lá fora. De quebra, ainda comprou um manual de composição pop, que jogou na mão de Lulu Santos – um dos primeiros artistas que o ex-mutante pode produzir, justamente neste Tempos Modernos, que só pode existir depois que “De Repente Califórnia” deslanchou na trilha do filme Menino do Rio, cantada por Ricardo Graça Mello.
Em pouco mais de 30 minutos, seja compondo solo (a faixa-título, “Bole Bole” e “Areias Escaldantes”) ou ao lado de Fausto Nilo (“Tudo Com Você”) e Nelson Motta (“Palestina”, “Sirigaita”, “De Repente Califórnia”), Lulu mostra tudo que aprendeu ao longo de uma década. Aqui, depois de tentar ser prog e ser black, o quase trintão abraçava o pop de maneira irresistível. Mais que isso: sua guitarra, ao mesmo tempo, emulava George Harrison, Carlos Santana e Eric Clapton, ao mesmo tempo em que tinha um sabor new wave fresco e uma tropicaliência especial, em algum lugar entre Havaí e o Caribe. Isso pra não falar na esperta banda de apoio, que tem Liminha no baixo, Serginho Herval (do Roupa Nova) na bateria, Lincoln Olivetti ou Mu Carvalho (d’A Cor do Som) nos sintetizadores e um insuspeito Robson Jorge no piano Rhodes de “Sirigaita”.
É um disco também cheio de letras simples, chicletudas, urgentes, ajudando a construir uma linguagem direta e pop dentro do cancioneiro nacional, pronta pra ser cantada por multidões. Duvida? Então tente não cantarolar “De leve, de leve que é na contramão” ou “Eu quero tudo com você” depois de ler essas frases. Mais que isso: ao usar o vocativo “garota” aleatoriamente pela rua, tente controlar o instinto delirante de completar a frase com “eu vou pra Califórnia”. E ainda que a guitarra havaiana de Lulu aponte para um clima ainda mais idílico que o de Los Angeles ou São Francisco, perceba como essa canção é capaz de construir uma Califórnia pessoal para cada ouvinte, mesmo que ele esteja a centenas de quilômetros de distância do mar.
E se por algum acaso você cansar dos hits de Tempos Modernos, o disco permanece fresco e doce em faixas que ficaram preservadas pelo tempo, prontas para serem degustadas em bailinhos, carros conversíveis ou festas na praia – como a provocante “Bole Bole”, a divertida “Sirigaita” e até a homenagem à parceira de Lulu na época, “Scarlet Moon”, escrita por ninguém menos que Rita Lee, que também vinha antecipando essa linguagem pop nacional já há um tempo. (E como se não necessitasse ainda de outra prova de atualidade, há “Palestina”, uma canção pop cuja lírica pode até soar indigesta atualmente, mas nos lembra que as questões do Oriente Médio há muito não se resolvem). Ah, vale o aviso: pra quem for ouvir o disco no Spotify, é bom ressaltar que no LP ele acaba em “De Leve” – a emocionante “Tesouros da Juventude” e a engraçadinha “Fricção científica” são bônus tracks, vindas de compactos gravados por Luís Maurício antes do primeiro disco.
Além de tudo, é um disco que emana calor, com audições quase mandatórias com bermuda no vestuário – e por conta disso, é preciso adequar a ele um coquetel refrescante, sem perder a doçura. Doçura, aliás, talvez seja a primeira palavra que venha à mente quando se dá um gole num Dark and Stormy, coquetel originado na ilha de Bermuda, em pleno Caribe. Em sua receita original, o drink leva justamente dois ingredientes típicos do arquipélago: o rum escuro e a ginger beer – uma versão mais picante e menos açúcarada da ginger ale que muita gente se acostumou a beber numa canequinha de cobre com Moscow Mule. E aliás, caso você tenha curiosidade, o nome do país se deve ao navegador espanhol Jean de Bermúdez. Ah! Também foi lá que nasceram as bermudas – inicialmente, calças velhas cortadas nos joelhos por turistas americanas que precisavam lidar com o calor enquanto visitavam o Caribe.
Além da combinação de rum e ginger beer, o Dark’n’Stormy leva ainda três ingredientes: xarope de açúcar, suco de limão e uma pitadinha de Angostura. Juntos, os cinco itens produzem uma bebida que é doce e refrescante, mas sem ser enjoativa: gengibre e angostura trazem picância para a bebida, ajudando a reforçar uma característica mais agreste presente no rum; enquanto isso, o limão traz a acidez que deixa tudo mais equilibrado. Aqui em casa, troquei o rum escuro pelo dourado e a ginger ber por ginger ale – o que talvez tenha deixado o coquetel mais doce do que o esperado, talvez prescindindo do xarope de açúcar. Ainda assim, tudo dentro desse doce balanço das ondas proposto por Lulu.
A bem da verdade, o Dark’n’Stormy é uma receita que funcionaria com qualquer um dos primeiros três discos feitos por Lulu Santos – os outros dois seguintes, O Ritmo do Momento (1983) e Tudo Azul (1984) vão praticamente na mesma linha, com produção esmerada de Liminha e um enfileiramento de sucessos pra deixar qualquer um boquiaberto. No primeiro, tem “Advinha o quê”, “Um Certo Alguém”, “Como Uma Onda” e “Esse Brilho em Teu Olhar”; no segundo, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Tudo Azul” e “O Último Romântico”. Mas escolhi Tempos Modernos porque, paradoxalmente, ele é o mais antigo e o mais novo de todos, o mais inocente – e a inocência, mesmo nas composições de um Lulu de quase 30, na comparação com Herberts e Leonis de 20, tem lá seu tempero especial.
É nessa inocência e nesse otimismo que eu quero que 2024 navegue. Ao contrário do ano passado, não peço por um novo começo de era: quero mais é continuar curtindo as coisas boas da vida, com o vento beijando meus cabelos e as ondas lambendo as minhas pernas. Mais do que mudança, eu quero equilíbrio – e um pouco desse clima de sonho da guitarra havaiana de Lulu, vivendo a Califórnia aqui mesmo. Será que dá certo? No fim do ano eu conto pra vocês.
A Receita
50 ml de rum dourado
20 ml de suco de limão
10 ml de xarope de açúcar
2 dashes de angostura
90 ml de ginger ale
Antes de explicar como faz um Dark and Stormy, preciso explicar minhas alterações sutis: achar rum escuro no Brasil é uma tarefa chata e cara – de maneira que, se você assim como eu não tem a bebida no estoque, pode usar o rum dourado que vai dar bom. Da mesma forma vale pra diferença entre ginger beer e ginger ale – ambas são bebidas não alcóolicas, mas a primeira é mais intensa e picante do que a segunda, popularizada aqui no Brasil graças à febre do Moscow Mule há alguns anos.
Tente fazer a receita desse jeito, mas se achar que ela está adocicada demais, tente reduzir ou mesmo subtrair o xarope de açúcar. Afinal de contas, quem tá bebendo é você – e a melhor receita é a que se adequa ao seu gosto. Inclusive, vamos lá: a receita da International Bartenders Association (IBA) mistura apenas rum e ginger beer, mas acho que a adição de limão e angostura dá camadas bem mais interessantes pro coquetel.
Dito isso, fazer um Dark and Stormy é bem simples: você deve colocar os quatro primeiros ingredientes da lista acima numa coqueteleira com gelo e bater bem. Feito isso, deposite o líquido num copo highball com algumas pedras de gelo. Para finalizar, complete com a medida certa de ginger ale et voilá, está pronto seu coquetel. Não esqueça de vestir uma bermuda, viu? No mais, o rum que eu usei foi o Bacardi Oro velho de guerra, uma garrafa que eu tô tentando matar há algum tempo – vide o Queen’s Park Swizzle do fim de 2023. A Angostura foi mesmo da Angostura, de tampinha amarela; já o ginger ale foi da Schweppes, que é o que eu encontro mais fácil nos mercados aqui perto de casa. (Meu palpite é que, caso você tenha o Riverside à mão, o drink vai ficar mais picante e levemente menos doce, mas é só um palpite).
Ah, última coisa: o Dark and Stormy é um ótimo coquetel pra você decorar a receita e ter na manga em festas de casamento ou debutante – ele contém ingredientes “comuns”, mas é pouco conhecido. Sabendo as medidas e tendo um pouco de carisma, não deve ser difícil convencer o bartender da festa a tentar fazê-lo pra você. Mas não digam que eu contei isso.
Reclames da Quinzena
No Programa de Indie, eu e Igor Muller encerramos 2023 com dois programas muito especiais. No primeiro, uma entrevista com o Steve Lamos, baterista do American Football, um dos convidados mais generosos e divertidos que tivemos nesses quase quatro anos de programa. Depois, celebrando 200 episódios no ar, empreendemos um manual do shoegaze e do dream pop, atendendo a um desejo antigo dos ouvintes. Chega mais.
Nessa semana, finalmente foi ao ar uma reportagem que eu tô apurando há uns bons meses – e estava ansioso pra dividir com vocês. Na minha estreia na piauí, contei a história do Projeto Manipueira Selvagem, que busca criar uma receita de cerveja genuinamente brasileira a partir de levedura extraída da mandioca. Além da primeira vez na piauí, é também a primeira vez que boto meu diploma de sommelier de cerveja pra jogo – e que honra é ter uma matéria ilustrada pelo Allan Sieber, bicho. Vai lá ler, que deu trabalho.
E em Cajuína, voltei a falar de um tema que eu refleti muito em 2023: a semana de quatro dias. Bati um papo com o Ivan Cordeiro Júnior, CEO de uma startup de marketing que implementou… e abandonou a semana de quatro dias entre 2021 e 2022. Papo cheio de ideias e dicas boas para quem tá pensando bastante sobre o tema.
Hoje o tempo voa, amor – e é impressionante pensar que estamos perto dos dois anos de newsletter. O que será que vem por aí?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som da trilogia inicial de Lulu Santos, Tempos Modernos, O Ritmo do Momento e Tudo Azul, além do mais maduro Lulu, de 1986 – o da capa vermelha pop-art, que tem “Casa”, “Condição”, “Minha Vida”, “Um Pro Outro” e a divertidíssima “Ro-Que-Se-Da-Ne”, uma homenagem ao todo poderoso da WEA, André Midani. (No meio dessa conta ainda tem Normal, de 1985)
PS2: Ano passado eu vi mais de 100 shows, fácil, e a lista de artistas que eu amo e ainda não vi fica cada vez menor. Mas Lulu Santos segue nesse rol de inéditos. Meta pra 2024 é vê-lo por aí em algum canto, mesmo com todos os trejeitos de The Voice e tudo mais. Se alguém souber de datas dele, me avisa?
PS3: Por fim, mas não menos importante: muito da pesquisa desse texto veio de dois livros essenciais da minha biblioteca. Um é o Dias de Luta, do Ricardo Alexandre. Outro é o BRock, do Arthur Dapieve. Se você ainda não tem os dois na sua estante e é fã de rock brasileiro dos anos 1980, não sabe o que tá perdendo. (E aviso: os links da Amazon são comissionados e ajudam a manter a adega do autor desta newsletter cheia. Tim-tim!).
Quando eu tinha uns 15 anos reclamei que o preço do show do Lulu Santos aqui na cidade era o mesmo de um CD (cerca de uns 20 reais). Ele me mandou tomar tento e ir no show. Foi um dos grandes conselhos que recebi.