#59: “Todas ao Vivo”, Marina Lima + Southside
Você me abre seus braços e a gente faz um país: uma homenagem tardia à 'minha madrasta', a Antonio Cícero e um espírito para se trazer de volta
Carnaval de 1989.
Meus pais recém-casados decidem ir desfilar no Carnaval do Rio de Janeiro. A escola era a Vila Isabel, campeã do ano anterior com o clássico “Kizomba – A Festa da Raça”. Antes de entrar na Sapucaí, seu Capelas e dona Silvina fizeram um combinado: nada de ciúmes. “Isso aqui é só uma vez na vida, então pode dançar e flertar com quem você quiser. A gente se encontra no final da avenida”. Veja bem: o acordo não incluía beijos nem nada mais avançado. Mas combinado não sai caro, e lá foram os dois cair na folia. A certa altura, conta meu pai, ele olha para um dos camarotes e vê ninguém-mais, ninguém-menos, que Marina Lima aos berros. “Vem! Vem!”, grita a cantora de “Fullgás” para uma morena que dançava animada e sorridente na pista.
Minha mãe, claro.
Depois desse dia e durante minha infância toda, toda vez que Marina Lima aparecia no rádio de casa, a família toda irrompia: “olha aí a namorada da mamãe!”. A piada inclusive chegou a um grupo de amigos, que passou a tratá-la como minha madrasta toda vez que ela surge no noticiário. Mas, a despeito dessa ligação familiar, eu confesso que demorei bastante tempo para gostar de Marina Lima – e olha que ela cantava as canções de todos os meus ídolos do rock nacional dos anos 1980: Renato Russo, Herbert Vianna, Júlio Barroso, Lobão (ainda na fase da revista OutraCoisa, antes da conversão à direita)...
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
⛱Tá de férias e precisa de ajuda pra improvisar uns drinks? Vem aqui.
💸Se quer uma ajuda para comprar seu bar básico, aqui tem minha listinha de indicações na Amazon.
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
Não sei bem explicar o que era: talvez o vocal grave, talvez a impostação de cantora, talvez o fato de que Marina me parecia, naquela ingenuidade adolescente, muito mais colada ao universo da FM de consultório de dentistas do que exatamente ao rock. Meu primeiro disco dela, este Todas ao Vivo do qual escrevo agora, inclusive, só foi comprado numa feirinha de vinil após muita insistência de Seu Capelas, que tem em suas gavetas uma coleção considerável da cantora carioca. E só levei o elepê por dois motivos: o primeiro é que parece uma coletânea. O segundo é que estava mesmo barato, na época em que dava pra cavar bons discos do rock nacional por R$ 10 ou R$ 15. Saudades.
Com o passar dos anos, porém, aos poucos as canções de Marina foram começando a colar na minha cabeça. “Fullgás”, por exemplo, primeiro virou memória ao transformar em canção uma cena marcante de um romance rápido e confuso, ali pelos idos de 2017. Depois, virou hino pessoal naquele período atabalhoado entre o governo Temer e as eleições de 2022, em que tudo que a gente queria era fazer um país de novo. “Uma Noite e Meia”, por sua vez, começou a virar trilha sonora mental e legenda no meu Instagram toda vez que o sol sonhava aparecer e uma folga no jornal permitia uma ida à praia. Isso para não falar em “Acontecimentos”, outra daquelas letras perfeitas sobre a vida nas grandes cidades, logo ali ao lado de “Lá Vou Eu”, da rainha Rita Lee. Que verso de abertura: “Eu espero acontecimentos/mas quando anoitece, é festa em outro apartamento”.
Mas foi com este Todas ao Vivo que definitivamente comecei a curtir Marina Lima. Não sei bem explicar também, mas lembro que no meio da pandemia, ele acabou virando um dos meus discos favoritos de faxina. Não é uma categoria fácil de se encaixar: um bom disco de faxina precisa ser um disco animado, mas não a ponto de que o ritmo da música influencie o ritmo da limpeza. Precisa conter canções que eu saiba cantar, para espantar não só os males, mas também a poeira. E de quebra, se o disco for ao vivo, melhor ainda: há nos discos ao vivo certo ar (espontâneo ou forçado) de calor humano que ajuda a impulsionar o movimento da vassoura, do pano de chão, do rodo ou do aspirador. Naquele período de isolamento, então, esse último fator era ainda um motivador extra para qualquer tarefa doméstica.
E Todas ao Vivo é um grande disco de faxina: ele se abre com “Pra Começar”, que não só já fala em começar colando caquinhos – ótimo mote para quem precisa arrumar a casa –, como também tem um ritmo todo especial que vai crescendo ao longo da canção. Tem grandes hits do rock nacional, como “Ainda é Cedo”, “Noite e Dia”, “Me Chama”, “Eu Te Amo Você”. Tem momentos em que Marina conversa com a plateia e faz discursos especiais, o que é ótimo para dar uma pausa entre vassouradas para consultar o celular. E tem até uma maravilhosa releitura de “Lady Sings the Blues”, da única Billie Holiday, numa daquelas versões que ajudariam muita gente a ir um pouco além do pop e da niuêivi.
Como todo bom disco de faxina, Todas ao Vivo primeiro me pegou pelo ritmo. E depois as letras foram entrando na cabeça – letras que demorei muito tempo até me dar conta que não eram de Marina, mas sim de seu irmão Antônio Cícero, filósofo e poeta, imortal da Academia Brasileira de Letras. É engraçado: eu já sabia da história biográfica, de que Marina começou pegando os versos do irmão escondida e musicava-os, mas não tinha abstraído que havia de fato ali uma segunda pessoa escrevendo aqueles versos, muitas vezes até anos antes de uma melodia ser sonhada para eles. Durante um bom tempo, era como se Marina e Cícero fossem uma pessoa só, ou se Cícero fosse uma face oculta da personalidade da irmã. Uma bobagem, mas uma bobagem que imagino não ser o único a pensar.
Há tempos, é verdade, eu queria escrever sobre Marina Lima – não só para contar pra todo mundo a história divertida do começo do texto, mas também porque achava eu que essa coisa prosaica de disco de faxina era algo divertido. Faltava, porém, achar um coquetel que soubesse representar sua obra, e especialmente este Todas ao Vivo, lançado em 1986, em pleno Plano Cruzado, com direito a mais de 250 mil cópias vendidas só naquela temporada. A inspiração veio mesmo quando, há algumas semanas, Antônio Cícero morreu. E não só deixou para trás uma porção de grandes canções ao lado da irmã e de outros parceiros (que baita verso é “no Leblon o inverno é quase sempre glacial”), como também uma bonita e dolorida carta de despedida, ao justificar sua opção pelo suicídio assistido na Suíça após sofrer com o mal de Alzheimer por anos.
Foi uma carta que me pegou pela jugular. Por imaginar alguém que ama ler, como eu, e não pode fazê-lo. Por imaginar alguém que viveu da escrita incapaz de escrever. Pela maneira de pensar como quem deve decidir sobre a vida da gente é a gente mesmo – e pela forma como escolheu morrer com dignidade, fazendo uma defesa desse direito que num país dominado por “liberais só na economia”, não se pode ter. Em momentos menos urgentes da história do Brasil, seria o tipo de carta que faria a gente começar uma boa conversa sobre suicídio assistido e eutanásia. Hoje? Um entre tantos assuntos a deixar pra discutir pra depois… e pra depois, enquanto a gente segue tentando colar os tais caquinhos desse nosso novo mundo.
Desculpem. Não queria pesar o clima. Até porque nem a obra de Antonio Cícero e Marina Lima o merecem: quando penso em suas canções, em seus poemas, penso muito no espírito de uma época que às vezes parece distante. Um país que voltava a ver o sol depois de duas décadas de sombras e trevas. Um país em que a juventude zona sul podia se sentir à vontade para cantar seus romances – ok, uma sensação lá um bocado elitizada, mas que não deixa de ser contagiante para qualquer pessoa, como prova a excelente releitura de “Uma Noite e ½” feita por Claudinho e Buchecha. Um país que se fazia com sorrisos e braços abertos. É o país que eu quero, uma república federativa cheia de frescor, árvores e gente dizendo olá, mesmo sabendo o peso de se viver num lugar que não é para amadores. Ainda estamos aqui.
“Não existe caminho, túnel, viaduto, nenhum caminho direto que leve à plena realização de um país. A gente vai ter que tentar. A gente vai ter que inventar o que nenhum país inventou. Nós vamos ter que voar. E vamos voar”, diz Marina Lima antes de cantar “Fullgás” em Todas ao Vivo. É disso que estou falando. Não tenho a receita, mas sei que ela passa por Carnaval, faxina e paciência para discutir temas difíceis como a eutanásia, o suícidio assistido (e o aborto, “anistia é o caralho”, a legalização da maconha, o fim da escala 6x1 e tantos outros assuntos). E boas canções, claro. Em meio a uma onda geral de pessimismo e raiva, eu pergunto: vamos voar?
A Receita
60 ml de gim
25 ml de suco de limão
15 ml de xarope de açúcar
algumas folhas de hortelã
Originalmente, o Southside era um fizz – um tipo de coquetel que envolve um ingrediente ácido ou cítrico (como o suco de limão) com água com gás (ou club soda). É um encontro entre duas famílias da mixologia: o highball (que é servido em um copo alto e tem a presença de uma bebida carbonatada, como água com gás, tônica ou refrigerante) e o sour (que envolve álcool, açúcar e um elemento ácido/azedo). Ele nasceu no começo do século XX, em Nova York, e tal como tantos coquetéis, se transformou ao longo dos anos em diferentes versões. A minha favorita para o momento se chama apenas Southside, sem a presença da água com gás, transformando-o em um coquetel mais alcoólico, um pouco menos esfuziante, mas não menos refrescante, graças à matadora combinação entre limão e hortelã.
Achei que era uma boa pedida para representar este disco de Marina Lima: o gim abraça a importação do pop inglês para o Brasil, com aquele aceno para a new wave, ao mesmo tempo em que dá o peso necessário para as melodias e a pose de Marina. O fato de ser servido numa taça coupé ou Martini também traz o charme do mundo de Marina, a elegância que sua voz tem. Por outro lado, a combinação entre limão, açúcar e hortelã não deixa de trazer aquele frescor de cabelo ao vento, gente jovem reunida, no otimismo que tanto fazia parte da canção nacional naqueles anos 1980. Além disso, não posso deixar de notar a semelhança de ingredientes com outro coquetel escolhido para um clássico dos anos 1980 aqui na newsletter: o Mojito e o Passo do Lui, dos Paralamas do Sucesso. Por fim, mas não menos importante, há ainda a piada infame entre Southside e Zona Sul, como convém aos cariocas de plantão.
Depois de tanta explicação, vamos à receita: pegue sua coqueteleira e coloque todos os ingredientes na sequência, com bastante gelo. Antes de colocar a hortelã, dê um tapa com a mão nas folhas, para que elas liberem óleo e perfume, deixando o coquetel mais refrescante. Misture por 8 a 10 segundos, até a coqueteleira gelar na sua mão, e depois coe tudo para uma taça coupé ou Martini – na falta delas, uma boa taça de vinho ou Nick & Nora também pode fazer sentido, como na foto que abre o texto, tirada no lar dos Capelas. O importante é manter a classe. Ah: e o gim era Beefeater. Já a receita para o xarope de açúcar tá aqui.
Reclames da Quinzena
No Programa de Indie, eu e o parceiro Igor Muller emendamos uma série de programas especiais neste louco novembro: duas entrevistas com Geordie Greep (ex-black midi) e Fran Healy, o eterno vocalista do Travis, além de um programa especial revisitando 1994.
Lá no YouTube, tem vídeos de mais shows deste novembro maluco, incluindo a revelação Madre, o badalado Balaclava Fest, o Keane e uma noite inesquecível nos anos 1970 com Guilherme Arantes e o seu Moto Perpétuo. Ainda vou voltar aqui pra escrever sobre ela, prometo.
Toda noite, eu espero: a festa hoje é no meu apartamento. Um dia vai ser.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Esse disco foi escrito ao som de Todas ao Vivo, além de uma playlist que junta algumas das minhas favoritas de Marina espalhadas em discos dos anos 1980 – além de “Acontecimentos”, tem “Virgem”, “À Francesa”, “Não Sei Dançar”, a excelente versão de “Mesmo Que Seja Eu”, “Charme do Mundo”...
PS2: Preciso dizer que parte desse texto também foi provocada pelo amigo Manoel Magalhães, que não só me atentou para a poesia de Antônio Cícero como também deixou o verso “o hotel Marina quando acende” ecoando na cabeça por meses ao sugerir que eu pegasse praia justamente na altura do desativado Hotel Marina, no Leblon. Baita pedida. Mais uma vez, obrigado, Manoel <3.
PS3: A diretoria da newsletter gostaria de avisar que a história da família Capelas que abre esse texto teve a autorização de dona Silvina pra ser contada. Além disso, a taça da introdução também é do acervo pessoal da família Capelas. Obrigado, manhê!
PS4: Ainda no assunto newsletter: a Waka Morishita, bartender de mão cheia, tá fazendo uma série de vídeos muito legais no Instagram dela com clássicos da coquetelaria brasileira. E ela se inspirou no meu texto sobre Celly Campello pra falar do Hi-Fi, o que é uma baita honra. Segue ela lá!
esse disco da marina <3 e várias descobertas nessa edição: da meia-arrastão na capa a versão do claudinho e bochecha, que já tá no repeat aqui!
Terminei agora o texto e já indo direto ouvir esse álbum 💿 🤘🥹