#22: “Isopor”, Pato Fu + Hiroshima Mon Amour
"Tomo um café com guaraná pra me animar/Mas ficou tão tarde que é melhor deixar pra lá"
Última semana útil do ano, que beleza… provavelmente você está lendo essa newsletter e enquanto tempera o peru (oba!) ou Chester para a ceia de Natal. Pode estar embalando seus presentes, tentando resolver a última lembrancinha ou fazendo as malas para encontrar a o tiozão da linguiça e a tia que adora perguntar dos namoradinhos. Com alguma sorte, você também deve estar já botando para gelar aquela garrafa de espumante que veio na cesta de Natal da firma – e pensando que todo mundo vai dar só um golinho e metade da garrafa vai sobrar. “Aqui não, amiiiiiiigo!”: é pensando nesse álcool potencialmente desperdiçado que a Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais vem em seu socorro. Nesta edição, a última de 2022, apresentamos a você um drink para fazer espumante nenhum sobrar sem gás ou morno na mesa da ceia: o Hiroshima Mon Amour.
O nome é sofisticado e remete ao cinema francês de Alain Resnais, mas a origem é um pouco mais obscura do que pode parecer – o “Hiroshima” não vem de nenhum bar sofisticado de luz baixa de Nova York, Londres ou Paris, mas sim… de Botafogo. Tomei esse coquetel pela primeira vez numa viagem ao Rio de Janeiro em 2016, no hipsteríssimo bar Comuna – e nunca mais encontrei nada parecido com essa espécie de “Mojito de saquê e champagne” (embora a receita exista mais ou menos com esse nome no Google). Foi paixão à primeira vista, numa época em que eu ainda estava aprendendo a brincar de coquetelaria. Dois ou três desse fizeram minha festa em uma noite quente na capital carioca. A receita mesmo eu não encontrei, então o que apresento aqui é uma recuperação sensorial do que acredito ser o coquetel que o Comuna me serviu naquele abril – um Mojito mais fino e mais seco, mas ainda assim extremamente refrescante.
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É justamente esse jogo de equilíbrio delicado que faz a graça do Hiroshima Mon Amour: de um lado, ele é perfeito para refrescar, mas engana quem acha que tá tomando um simples Mojito. Do outro, ele parece bastante alcóolico, mas tem ótima drinkability – ou “bebebilidade”, um termo meio intraduzível do inglês pra mostrar que é fácil fácil de beber. É mais ou menos como aquela canção pop irresistível que você começa a assobiar sem perceber que ela esconde um tema complexo, tristíssimo ou tétrico – e os exemplos na música pop são inúmeros para isso. Os mais antigos vão lembrar de “Luka”, da Suzanne Vega, que todo mundo canta achando que é a história de uma moça fofa (e não um relato de agressão e assédio). Já os mais jovens vão pensar em “Pumped Up Kicks”, do Foster the People, que parece inocente – e conta a história de um massacre numa escola, à la Tiros em Columbine. Exagerei, né?
Ok, os exemplos acima são um pouco extremos. Mas a história da música pop está recheada de canções que são um pouco mais do que só o que parecem – seja porque sua letra tem significados escondidos ou porque, por trás de uma aparente estrutura simples, sua construção musical está repleta de pequenas estranhezas. É uma ideia que eu e meu companheiro de Programa de Indie, Igor Muller, adoramos discutir: são as “maçãs envenenadas”. E quando comecei a pensar no tipo de disco que poderia fazer sentido com este Hiroshima Mon Amour, me dei conta de que tinha de ir atrás de uma maçã envenenada do pop brasileiro.
Daí, chegar ao Pato Fu – uma das minhas bandas do coração, e com certeza um grupo que soube esconder ideias malucas debaixo de suas canções chicleticamente perfeitas – foi um pulo. E já que estamos falando na chave de estranheza/acessibilidade, o melhor caminho é mesmo partir para o disco com os maiores hits do Pato Fu, Isopor, lançado em 1999 – aquela época em que a gente ainda comprava o CD de uma banda por causa dos sucessos e se surpreendia com o resto do que tinha ali dentro.
Surgido no começo dos anos 1990 em Belo Horizonte, após o jovem prodígio da guitarra John Ulhoa deixar para trás duas grandes bandas da cidade – o Último Número e o Sexo Explícito –, o Pato Fu sempre foi uma banda “pé dentro, pé fora” de sua época. Eles não eram exatamente herdeiros do rock brasileiro dos anos 1980. Também não primavam pela recuperação da brasilidade que tantas bandas dos anos 1990 fizeram – em caminhos mais sofisticados (Nação Zumbi, Mundo Livre S/A) ou mais apelativos (Raimundos).
Pelo contrário: começaram sem baterista, brincando com efeitos eletrônicos, e cheios de ideias musicais que colocavam bandas como Mutantes e Devo numa mesma estrada. Ao mesmo tempo, quando precisava ser pop, o Pato Fu era sem precisar pensar muito – e que o digam hits certeiros como “Sobre o Tempo”, “Pinga”, “Antes que Seja Tarde” ou “Canção Para Você Viver Mais”. Era uma época que a MTV importava muito, na qual bons clipes faziam a diferença – e o Pato Fu era dono de ótimos vídeos, diga-se de passagem.
Talvez seja de um desses clipes que eu justamente deva ter minha primeira memória do Pato Fu – possivelmente, “Made in Japan”, que tinha uma divertida briga entre robôs, emulando os melhores momentos de tokusatus como National Kid, Ultraman e Jaspion. Mais: a música era cantada em japonês, e era possível ser uma criança que via Pokémon e Super Campeões sem prestar atenção naquilo. Outra chance é que tenha sido “Depois”, aquela do “tomo café com guaraná/pra me animar” – e como uma criança que tomava muito guaraná, já que minha mãe sempre colocava água na Coca-Cola porque era “muito forte”, eu me identificava demais com aquela letra.
E o Pato Fu também parecia estar em todo lado naquela época porque eles também tocavam demais na Globo – “Perdendo Dentes” era trilha do núcleo jovem de Laços de Família, enquanto a faixa bônus “Olimpíadas 2000” foi o tema daqueles Jogos Olímpicos de madrugada na Austrália em que a gente não ganhou nenhuma medalha (rimou!). E eu fui uma criança que gostava muito de novela e de esportes (mais do que segundo do que do primeiro, vamos lá).
O que o Bruninho Capelas de 8 ou 9 anos não sabia ao ficar fã do Pato Fu é que ele estava arranjando uma maçã envenenada do tamanho de Minas Gerais. Prometo que vou tentar ser breve: pouco tempo depois de Isopor, o Pato Fu gravou “Ando Meio Desligado” para outra novela, o que me fez descobrir os Mutantes, querer ter cabelo comprido e tomar LSD (aos nove anos de idade). Não tomei LSD (até hoje!), mas na sequência eu descobri os Beatles. Anos depois, voltar ao Pato Fu me fez descobrir a Graforreia Xilarmônica (de “Eu”) e toda uma série de bandas do rock gaúcho. O Pato Fu também me fez prestar atenção em “Tolices”, do IRA!, no Tangos e Tragédias, e numa quantidade tão grande de bandas que eu nem sei, bicho, nem sei. Acho até que “Deus”, essa do disco seguinte, Ruído Rosa, talvez tenha sido a primeira influência para eu achar a catequese uma grande bobagem – e hoje me declarar ateu.
Mas voltando a Isopor, ao Hiroshima Mon Amour e às maçãs envenenadas, é doido perceber como mesmo quando o Pato Fu estava “só” tentando fazer uma canção pop, havia muito mais ali: “Made in Japan” falava do temor de uma vingança japonesa após a bomba atômica (e eu prometo não te fazer pensar na Simone cantando “Hiroshima, Nagasaaaaaaki” nesse momento). Já “Perdendo Dentes”, por trás da doce voz de Fernanda Takai e da melodia “pôr do Sol no Leblon”, era uma balada doída sobre amadurecimento.
E o que dizer de “Depois”, que até hoje eu não sei se é sobre um casal planejando engravidar ou sobre um menage à trois? (No Genius, site-referência pra quem adora escarafunchar significados de músicas, há frases de John e Fernanda admitindo que “cada um entende o que quer” é o melhor jeito de lidar com a coisa e que o Pato Fu sempre gostou de ser “agridoce”).
Se as canções mais conhecidas de Isopor já são assim, imagine o que vem dentro do disco: só nas faixas iniciais, tem Fernanda Takai brincando de ser Björk (na faixa-título), tem John brincando de Jonny Greenwood na era The Bends pra contar a história de um atropelamento com questões de classe (“Um Ponto Oito”). Isso pra não mencionar a feminista “O Filho Predileto de Rajneesh”, dona de um riff de guitarra chicletudo pra brigar frente a frente com “Mulher de Fases”? E por falar em riffs deliciosos, o que abre “O Prato do Dia” é como esconder uma gilete no meio de um delicioso sanduíche, fazendo com que o ouvinte se corte secamente sem nem perceber. E pra fechar, ainda tem “Quase”, que é honesta de coração – mas parece tambem com John tirando um sarro com o sertanejo da época.
Ouvir Isopor e achar que é “só mais um disco pop dos anos 1990” é mais ou menos como beber o Hiroshima Mon Amour em busca de um drink que seja só leve e refrescante. Nos dois casos, há mais do que parece – ou como diria Neil Young, “there’s more to the picture than meets the eye”. Hiroshima é um drink de verão, mas que é seco; tem saquê, mas não parece exótico e desce bem; Isopor é um disco pop, mas não é um chicletinho de hortelã; tem canções deliciosas, mas também está cheio de coisas esquisitas.
(Meu lado mau humorado vai dizer que é também como a festa de Natal: é ótimo ficar em família, mas vira-e-mexe a sobremesa tem torta de climão. Mas já que é pra falar de Natal, vale dizer que a capa de Isopor também brinca com esse clima de neve, mas passa longe de ser um disco gelado – pelo contrário, é um disco sangue quente. E se o primeiro gole de Hiroshima te refrescar, tome cuidado: em breve o espumante sobe pra cabeça e você vai ficar quentinho, quentinho).
Você pode até dizer: “pô, mas do jeito que você fala, parece que essas coisas todas que parecem ter pequenas armadilhas são mesmo ruins”. Tendo a achar que não – mas não sei se consigo ir além da filosofia barata de que “a vida funciona em escalas de cinza, não no preto-e-branco”. Mas a verdade é que, seja no copo ou nos fones de ouvido, quase tudo nessa vida é meio agridoce mesmo. Pode ser apenas esse clima esquisito e atropelado de Natal-com-Copa-no-verão-mas-tá-frio. Pode ser a ordem do dia invertida dos últimos anos, e não estou falando só da pandemia. Ou pode ser só eu tentando entrar no clima de Glória Maria e improvisar uma retrospectiva 2022, pensando nas brigas que ganhei e nas brigas que perdi.
Acho que eu também cometi minha maçã envenenada: você só queria um drink pra acabar com o espumante e acabou ganhando essa reflexão besta e triste. Antes que eu fale demais e acabe com a festa, toma aí a receita do Hiroshima Mon Amour. Mas para encerrar, deixo vocês com um desejo de Natal, direto da lavra de Jair Naves (“o melhor Jair do Brasil”) e que não à toa está na camiseta que uso enquanto escrevo este texto: “que o amor encubra o som do mundo a ruir”.
A Receita
50 ml de saquê
25 ml de suco de limão (aproximadamente 1 limão)
algumas folhas de hortelã
100 ml de espumante
gelo
Como eu disse lá no começo, a receita deste Hiroshima Mon Amour pode não ser a original: eu bebi esse coquetel lá em 2016 e obviamente o Comuna não revelava as proporções de suas bebidas aos clientes, apesar do nome poder sugerir que todos poderiam ter esse conhecimento. Trocadilhos horríveis e socialistas à parte, a verdade é que fiquei bem satisfeito com as medidas acima – mas pequenas variações poderão ser aceitas em prol do seu paladar. Para o sakê, usei o Azuma Kirin Soft pelo critério de… pareceu decente e estava em promoção no mercado de rico do bairro (e se você não sabe qual é o mercado de rico do seu bairro, talvez seja porque você é rico). Para o espumante, uma garrafa de Chandon Reserve Brut que habitava o armário de casa há algum tempo. O limão é do sacolão, a hortelã é da minha horta mesmo.
Para começar, pegue o saquê, o suco e a hortelã e coloque numa coqueteleira com gelo. Bata bem – como você deve fazer com qualquer mistura de álcool com cítricos, diga-se de passagem. Coloque a mistura num copo alto (um highball, um Collins ou aquele copão americano grande da Nadir) com pedras de gelo. Pra fechar, coloque o espumante com cuidado, para que as bolhas não se percam. E mexa um pouquinho, só pra tudo misturar mais fácil. Saúde!
Ah, uma dica: talvez ter espumante E saquê seja muita coisa para sua viagem de Natal & Ano Novo, certo? Afinal de contas, saquê é uma bebida meio rara nas adegas. Tudo bem: vodka e gins menos aromáticos poderão ser bons substitutos aqui, naquela improvisação que cai tão bem em casas de praia e festas de amigos. (E se você ficou curioso por isso, segura aí que em breve a gente vai falar mais disso).
Vamos aos reclames da semana?
Na semana passada, o Programa de Indie raspou o tacho e entregou as últimas novidades do ano de 2022 na música-mais-ou-menos-pop, com destaque para o incrível disco Atlântico Corpo, da banda mineira Pelos. Ouve aí.
Aos ouvintes cativos do Programa, aviso que teremos edições especiais de Natal e de Ano Novo, então fiquem ligados nas próximas duas semanas. Prometo que também coloco aqui os links quando eles saírem :)
Outro trabalho legal demais que saiu nessa última semana foi um especial que ajudei o pessoal de Cajuína a produzir com "os goles de inspiração para o RH em 2023”, falando de temas do mundo do trabalho como remuneração, rituais, produtividade e diversidade – tem até um papo meu com Lázaro Ramos falando sobre gestão e liderança, acredita? Pra quem quiser baixar, é só chegar aqui!
E na dica da newsletter da semana, a indicação não pode ser outra que não a
, do grande Rodrigo. Nosso homem em Hollywood, Salem tem feito uma cobertura incrível dos lançamentos do cinema – e nessa virada de ano e a temporada de prêmios chegando aí, ele tem sido cirúrgico apontando tendências e indicando grandes filmes. Vale demais.
E com essa coluna, me despeço deste 2022 aqui. Foi ótimo ter a companhia de vocês neste segundo semestre – e espero que mais brindes e discos incríveis venham no ano que vem. No mais, para quem quiser me cobrar algo, “prometo, juro, garanto, que vou resolver tudo isso/assim que tiver coragem e mais nenhum compromisso.”
Um abraço apertado, um bom Natal e um Feliz Ano Novo, com muito “Saúde!”
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Isopor, do Pato Fu, mas também de Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo, disco do português Manuel Fúria que finalmente está no Spotify. Não tem nada a ver com o Pato Fu, mas é um disco lindo – e eu descobri que ele finalmente está no streaming enquanto escrevia o texto, e não podia deixar de registrar a sincronicidade.
PS2: Agora, se ainda dá tempo, devo dizer que Isopor não é meu disco favorito do Pato Fu – o título deve ser mesmo de Ruído Rosa, que me estragou bem mais a cabeça.
PS3: Sincronicidade também escrever do disco que tem “Olimpíadas 2000” como faixa bônus bem no dia que a Argentina levou a Copa do Mundo. Afinal de contas, já estamos de olho em Paris, amiiiiigo. (Eu cogitei a ideia de fazer uma coluna sobre outro disco argentino para celebrar Messi, mas fiz que nem Fernanda Takai e “deixei tudo pra depois”. Se você ainda estiver na buena onda latina – e é bom demais ver a América do Sul triunfar de novo –, recomendo o Fernet con Coca e o El Mató a Un Policia Motorizado, uma dupla hermanísima).
PS4: Se você está buscando outro coquetel bom pra aproveitar suas garrafas de espumante, deixo a dica da Mimosa – que só precisa de suco de laranja pra completar, não é mesmo? E claro, para quem quiser se preparar com antecedência, não custa nada pensar “num aperolzinho néam beninas”.