#37:“Essa Tal de Gang 90 & Absurdettes”, Gang 90 & As Absurdettes + Rome With a View
Um coquetel cheio de charme e frescor para uma banda oásis de modernidade no Brasil dos anos 1980
“Saudades do que a gente não viveu ainda” é uma daquelas frases que vivem na memória da internet brasileira – emitida por pelo atleta em franca inatividade Neymar Jr.* durante uma conversa íntima, virou um meme daqueles usados por qualquer solteiro ou solteira em plena atividade. Eu fico triste: é uma ótima frase, digna de uma poesia próxima a outra favorita da casa, “o futuro não é mais como era antigamente”, sim, dele, Renato Russo. São dois versinhos que vem à cabeça toda vez que coloco para rodar na minha vitrolinha o primeiro disco da Gang 90 & As Absurdettes, Essa Tal de Gang 90 & As Absurdettes. Mais do que apenas ser um marco inicial do rock brasileiro nos anos 1980, ao lado de As Aventuras da Blitz e Voo de Coração, do Ritchie, Essa Tal… é talvez o melhor testamento da modernidade eterna de um compositor que nos deixou cedo demais: Júlio Barroso.
Misto de jornalista, DJ, agitador cultural, poeta, escritor e até mesmo restaurateur – responsável por um dos primeiros restaurantes vegetarianos do Brasil, o Coisas da Terra –, Júlio morreu aos 30 anos, ao passar mal e cair da janela de seu quarto, na rua Conselheiro Brotero, aqui na mesma Santa Cecília de onde escrevo. Durante muito tempo, acreditou-se que ele havia cometido suicídio, mas múltiplas fontes, dos amigos às pesquisas biográficas, afirmam que o caso foi mesmo um acidente trágico. E se precisei falar de morte, é porque as canções de Júlio Barroso são especialmente cheias de vida: enquanto me preparava para escrever esse texto, preparando um drink e deixando o disco rolar na vitrola, quase considerei a ideia de começar um bailinho new wave com a namorada na sala de casa.
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Atuante no underground brasileiro desde meados dos anos 1970, com textos em publicações como Som Três, Veja, O Globo, além da sua própria revista Música do Planeta Terra, sem falar na liderança das picapes em casas como Noites Cariocas e Pauliceia Desvairada, Barroso passou pelo menos uma década fervilhando ideias. O resultado desse caldeirão cerebral é uma mixagem da efervescente Nova York do punk e da new wave com a tropicalidade brasileira, do melhor da arte moderna europeia com poesia concreta, pondo lado a lado o popular e o sofisticado. É algo que fica claro na letra-colagem de “Românticos a Gô-Gô” – na qual Zé Keti, Roberto e Pagu ganham o mesmo espaço que Rodchenko, Oiticica e Isadora Duncan –, em “Eu Sei, Mas Eu Não Sei” (uma versão de “I Know, But I Don’t Know”, da Blondie), ou ainda na viagem surrealista de “Jack Kerouac”, três dos momentos mais doidinhos e maravilhosos de Essa Tal….
Ambos, vale dizer, foram escritos por ele ao lado da holandesa Alice Pink Pank, uma bailarina loira que, depois de fazer backing vocals no primeiro disco do U2, decidiu largar tudo pro alto e se mudar para o Brasil. Aqui, Alice (ainda ostentando o sobrenome Vermeulen) conheceu Júlio, dele se tornou namorada e os dois formaram a Gang 90 em 1981, numa época em que o país ainda parecia meio filmado em preto-e-branco. Trafegando entre Rio e São Paulo constantemente, Júlio e Alice ajudaram a jogar um balde de tinta nos anos 1980 dessa terra, acompanhados por um sem número de músicos e artistas incríveis.
Prepara o fôlego: na época da gravação de Essa Tal, a Gang 90 tinha em sua formação Júlio e Alice nos vocais, além de Lonita Renaux (Denise Barroso, irmã do poeta) e May East (Maria Elisa Capparelli Pinheiro) aos microfones. Além dos quatro, a banda contava ainda com Herman Torres nas guitarras,Gigante Brazil na percussão e bateria, o ex-Módulo 1000 e Vímana Luiz Paulo Simas nos teclados, e Otávio Fialho no baixo. Duas curiosidades rápidas: Simas é o compositor responsável pelo som do “plim-plim” da TV Globo, enquanto Otávio é também o pai de Chicão, filho de Cássia Eller. (E por falar em plim-plim, vale a pena conferir o lado-Z da Gang 90 feita pro especial infantil Plunct Plact Zumm, “Será Que o King Kong é Macaca?”).
Mas tinha mais gente nessa gangue: formações anteriores da banda contaram com o baixista Lee Marcucci (do Tutti Frutti e do Rádio Táxi) e o guitarrista Wander Taffo (também do Rádio Táxi). Também orbitam ao redor da Gang 90 nomes como Guilherme Arantes, co-autor não creditado do hit “Perdidos na Selva” e diretor musical no início da banda, e Lobão, parceiro de Barroso em baladas como a inesquecível “Noite e Dia”, feita pelos dois enquanto ambos estavam ao mesmo tempo apaixonados por Alice Pink Pank e por Marina Lima. Ah, pra fechar: depois de namorar Júlio, Alice também namorou Lobão – sendo a musa de, entre outras canções, a indefectível “Me Chama”. Ufa.
Era muita gente boa junta para fazer um álbum que até hoje soa como um disco voador. De um lado, é verdade, as guitarras soltinhas à la Blondie e os sintetizadores marcados soam datados, resquício de uma época de qualidades bem ruins de gravação nos estúdios brasileiros. Mas por outro, é preciso dizer que há ideias demais em Essa Tal de Gang 90: canções pop irresistíveis, uma urbanidade extrema, romantismo e sedução, além de uma visão da globalização avant la lettre – algo que dá para perceber bem em “Dadá Globe Orixás (Spaced Out in Paradise)”, letra meio dadaísta que só mesmo ouvindo pra entender.
E falo de “Dadá Globe Orixás” apenas pra te deixar com água na boca para cair de boca (ou na pista) nos vários hits do disco: a já citada “Perdidos na Selva”, sensual e cheia de gemidos em época de censura, a deliciosa “Telefone”, a incrível “Nosso Louco Amor” (e seu ensinamento genial de que “sem perdão não há/como aprender e errar”) e a charmosíssima “Telefone”, com frases modernérrimas como “com seu papo poesia me transcende” ou “nossa onda de amor não há quem corte”. Quer outra frase boa? “Prefiro morrer de vodka do que morrer de tédio”, da ótima “Convite ao Prazer”.
Essa Tal… é um registro doce e azedo ao mesmo tempo, cheio de frescor – como é o Rome With a View, uma criação novaiorquina com toda cara de drink italiano. Ele vem direto da carta do Attaboy, bar que é uma espécie de herdeiro espiritual do Milk & Honey, casa do bartender Sasha Petraske e berço de drinks como o Penicilin e o Gold Rush. (Petraske, vale dizer, é outro que partiu cedo demais, e seu livro Regarding Cocktails é uma das minhas próximas metas de aquisição literária). Mas falando mesmo do Attaboy, ele é de propriedade de dois discípulos de Petraske: o australiano Sam Ross e o irlandês Michael McIlRoy – e o segundo é o autor do Rome With a View, um coquetel que é cheio de surpresas.
Primeiro, pela cor: à distância, quem vê um drink em tom róseo servido num copo alto vai imaginar uma bebida à base de frutas vermelhas. Depois, pela descrição dos ingredientes: o tom vermelho é uma cortesia do bom e velho Campari, mas que vem aqui acompanhado não do vermute rosso, como já falamos tanto aqui na newsletter, mas sim de um vermute seco, branco. A substituição é divertida: transforma a parte alcóolica do coquetel em um jogo de recusa-e-aceitação, com aspecto seco do vermute e o amargor do Campari travando a boca.
Mas aí, porém ai porém, entra o resto da fórmula: limão, água com gás e xarope de açúcar deixam a bebida refrescante como um passeio na Fontana di Trevi – uma imagem que, aposto, ia agradar a Júlio Barroso. O travo seco, porém, faz você querer outro gole, da mesma forma que eu acho difícil ouvir “Telefone” ou “Nosso Louco Amor” só uma vez. Além disso, o tom róseo do Rome With a View combina bem com as roupas de Júlio Barros e Herman Torres na capa do disco. Mais que isso: é a promessa de um dia bonito, como um por do sol que antecipa uma noite gostosa de verão, ou um flash no meio de uma festa muito doida, onde pode rolar de tudo num covil de piratas pirados.
Outra coisa gostosa do Rome With a View é que ele cabe em diferentes tamanhos. Pode ser tanto um coquetel sofisticado pra você se imaginar bebendo numa viela do Velho Continente à la White Lotus. Cabe também naquela boa ideia de “bebidas para fazer de jarra”, deixando cada um se servir da maneira que preferir enquanto se esbalda na pista de dança. (Aliás, fico devendo aqui pra vocês uma lista dos meus coquetéis de jarra favoritos, aqueles que é pra fazer no churrasco e conquistar sogro, sogra e até aquele marido chato da sua prima).
Mais que isso tudo, o Rome With a View tem um gosto do agora – que é um ótimo jeito de descrever a média entre passado e futuro que Essa Tal de Gang 90… demonstra ao longo de suas dez faixas e 36 minutos de duração. Pelo sim, pelo não, são duas exibições claras de uma outra frase clássica do rock brasileiro dos anos 1980: “vamos viver tudo que há pra viver, vamos nos permitir”. É doido pensar que talvez a gente não tenha visto o que poderia ser o auge de Julio Barroso – uma ideia que muitos de seus amigos confessam partilhar quando se lembram dele, como fica claro nessa ótima reportagem sobre o artista feita por Guilherme Bryan pra Rolling Stone há alguns anos. Mas a gente nunca sabe quando a vida vai fazer uma curva inesperada. E para quem falou de morte e luto nas últimas semanas, celebrar a vida é algo justo e necessário, como acordar mandando brasa nas estradas do mundo.
A Receita
30 ml de Campari
30 ml de vermute seco/branco
30 ml de suco de limão (aprox. meio limão)
22,5 ml de xarope de açúcar
água com gás para completar
gelo
Fazer um bom Rome With a View não requer prática nem tampouco habilidade, apenas a capacidade de seguir a ordem correta. Pegue uma coqueteleira, coloque bastante gelo e ponha lá dentro o Campari, o vermute seco (aqui fui de Martini Bianco), o suco de limão e o xarope de açúcar. Bata bastante até sentir a coqueteleira ficar geladinha. Daí, despeje o conteúdo num copo alto (highball) com gelo, adicionando água com gás até o final para completar. Pronto: tá aí sua bebida prontinha.
E se você está chegando agora, saiba que fazer xarope de açúcar é fácil e a receita está aqui. Já para o vermute branco, usei mesmo Martini Bianco, embora você possa usar o seu favorito. Se quiser tentar uma versão diferente, pode cometer um Paris With a View trocando vermute seco por Lillet, mas não testei pra saber se deu certo. Se você testar, me conta?
Reclames da Semana
Essa semana tem reclame duplo no Programa de Indie: na semana passada, eu e Igor Muller aproveitamos para desovar as últimas novidades & lançamentos da música alternativa em um programa maluco.
Além disso, como a gente vai falar de rock anos 2000 em breve no programa, decidimos revisitar um dos nossos episódios favoritos: o programa comemorativo de 20 anos de Is This It, a estreia do Strokes. Vai lá pra conferir, que ele finalmente tá no Spotify depois de dois anos de espera.
Seu coração, quem arrebenta? É essa tal de Gang 90… até semana que vem!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito não só ao som de Essa Tal…, mas também de várias outras grandes canções que Julio Barroso escreveu, como “Corações Psicodélicos”, “Quente” e “Holiday”. Que grande cara.
PS2: O asterisco lá no começo do texto é só pra demarcar que este texto havia sido escrito antes do atleta Neymar Jr. fazer mais uma cagada abissal nessa última semana. Como dissemos, um atleta em franca inatividade é só o mínimo – é ainda um ser humano bastante desprezível. Não tá fácil ser santista no século XXI.
PS3: Para quem quiser saber mais sobre a Gang 90, recomendo demais o livro sobre esse disco publicado pela editora Cobogó. É bom demais (especialmente por partir do ponto de vista da Alice Pink Pank pra contar uma história que, como vocês viram, é por si só bastante improvável). Vai lá.
PS4: Acreditem se quiser, essa newsletter tá quase completando um ano. E prometo fortes emoções nas próximas edições, viu?
Esse drink é a minha cara, vou arriscar.