#25: “Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro”, Nando Reis + Gold Rush
"É bom olhar para trás e admirar a vida que soubemos fazer"
Cada compositor tem seu método para escrever uma canção: há quem faça a letra primeiro e depois a música. Há quem faça o contrário. Há quem seja capaz de fazer os dois ao mesmo tempo – e quem só saiba fazer música desse jeito específico. Há quem não consiga compor sozinho (e são inúmeros os casos), e há quem funcione de todo jeito. Essa newsletter também é um pouco assim, eu acho: há textos que nascem da vontade de falar de um disco. Outros surgem da necessidade de escrever sobre um coquetel. Alguns surgem pelo espírito do tempo – e aí que se vire o escritor para achar um par de elepê e bebidinha que funcione. O texto de hoje, porém, é produto de uma sequência de coincidências. É também uma homenagem a vendedores de discos e bartenders – duas categorias de criaturas que parecem conhecer bem os recônditos da alma humana.
A história desse texto começa no último sábado útil de dezembro de 2022, quando encontrei um velho amigo para um café da manhã e depois me encaminhei para a Vila Madalena. O plano era comprar discos de vinil no saldão da Três Selos, que tem relançado reedições caprichadas de discos importantíssimos da música brasileira. Minha lista de compras era modesta: o Amor Louco, do Fellini, banda sobre a qual eu havia acabado de escrever aqui. Mas a conversa boa com o Rafael Cortes, da Assustado Discos (um dos três selos, hehe), acabou me fazendo empolgar: botei na pilha de compras também o primeiro disco do Walter Franco, um do Novos Baianos e um inédito do IRA!.
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A conta já estava grande o suficiente para fazer estrago nas minhas finanças, mas o Rafa ainda me convenceu a pegar mais um: o Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro, segundo disco solo do Nando Reis. Confesso que eu nunca tinha dado muita bola pro disco, apesar de ter uma ótima memória de infância com “Dessa Vez”, a faixa de abertura. Além disso, a despeito da longa ficha corrida, também devo dizer que os últimos discos e projetos do ruivo serviram mais para me afastar dele do que o contrário.
Mas com uma boa conversa, Rafa argumentou (“pô, é um disco lindo, Capelas”) e me convenceu mostrando o acabamento de luxo do disco: além da prensagem em 180 gramas e capa dupla gatefold, o disco ainda tinha um pôster e dois (!) livretos com letras, fac-símiles das letras e um faixa-a-faixa especial, além de uma espertíssima foto de Nando com o finado Tom Capone, responsável por discos do coração como Baladas Sangrentas, Cosmotron e O Silêncio Q Precede O Esporro. Levei pra casa – e horas depois, entre planos de viagem e promessas de ano novo, me emocionei ao ver as letras originais de clássicos como “All Star” e “Relicário” no meio do encarte. Foi o suficiente para me fazer viciar no disco, que tenho escutado religiosamente quase todos os dias desde então.
Gravado e lançado em 2000, Para Quando… é um disco de transição na carreira de José Fernando Gomes dos Reis, o ex-aluno de Matemática da UFSCar que, desde o começo dos anos 1980, tocava baixo nos Titãs. O multifacetado grupo deu a Nando a vida de um rockstar, mas não era suficiente para sua criatividade: ao longo dos anos 1990, ele obteve inúmeros sucessos na voz de outros artistas, em uma lista que inclui Skank (“Resposta”), Cidade Negra (“Onde Você Mora”), Cássia Eller (“E.C.T.”) e a ex-namorada Marisa Monte (“Diariamente”).
A sequência de hits abriu espaço para que ele gravasse um primeiro disco solo, 12 de Janeiro, cheio de canções com potencial, mas que passou em brancas nuvens na época. Entre 12 de Janeiro e o segundo trabalho, muita coisa aconteceu – incluindo o comeback dos Titãs com o Acústico MTV, o tétrico As Dez Mais e uma parceria importantíssima com Cássia Eller em Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo, produzido por Nando e cheio de canções dele. Eram sinais de que ele podia mais, muito mais.
Para entregar o disco que queria fazer, Nando foi para Seattle reencontrar um velho amigo: Jack Endino – responsável pelos discos dos Titãs nos anos 1990, além de Bleach, a estreia de uma certa banda chamada… Nirvana. Endino liderou as gravações lá fora, que depois seriam complementadas por Tom Capone no Rio de Janeiro. Na banda, uma formação mista entre brasileiros (destaque para o guitarrista Walter Villaça, pilar importante do disco de Cássia Eller) e americanos, com o auxílio luxuoso do baterista Barrett Martin, do Screaming Trees.
Tá pouco? Então segura: Rogério Flausino e Cássia Eller participam com backing vocals em “Hey Babe”, enquanto Peter Buck, guitarrista do R.E.M., aparece em “Dessa Vez” e “Frases Mais Azuis” – e quem me conhece sabe que com Peter Buck não se brinca. Mas a ficha técnica não seria nada se Nando não tivesse na mão um punhado de grandes canções que bebiam tanto de anos e anos de escuta de MPB e do melhor do rock anglófono (de Neil Young a Led Zepelin), quanto da poesia das coisas simples da vida brasileira.
Por falar em Neil Young, é nele que começa a segunda sequência de coincidências desse texto. Quem acompanha a Meus Discos há um tempo sabe que uma das inspirações para essa newsletter é o livro Booze and Vinyl, que eu comprei em Boston em 2018, mas só comecei a devorar mesmo em 2021, nos domingos bêbados da pandemia. Uma das primeiras garrafas que me dispus a entender como funcionava foi um bourbon que estava solto em casa. Se eu me lembro bem, o primeiro drink dessa leva foi justamente o Gold Rush.
A culpa é do bardo canadense: afinal de contas, o Gold Rush – uma mistura básica de uísque, mel e limão – era harmonizado com um dos meus discos favoritos da vida, After the Goldrush. Não estou só nessa: foi justamente ouvindo a voz peculiar do “tio Neil” que Nando Reis se sentiu mais à vontade para cantar suas próprias canções de violão em punho. Uma ligação rastreável na versão demo de “Relicário”, disponível nas plataformas digitais: despida em voz-e-violão, é fácil identificar o parentesco da canção com algumas das melhores músicas de Goldrush, como “Tell Me Why” e “Don’t Let It Bring You Down”. (Além disso, a “índia com colar” é uma homenagem explícita de Nando a “Pocahontas”, presente em outro clássico, Rust Never Sleeps).
Beber o Gold Rush foi como um hit instantâneo: ao mesmo tempo em que me apresentava ao sabor do bourbon, o coquetel também despertava memórias afetivas de Busca Vida e do glorioso “PML” – pinga, mel e limão. Ao longo do tempo, o Gold Rush sempre se tornou um segredo do meu bar caseiro, a ponto de eu não deixar a namorada pedi-lo nos bares porque “era uma receita fácil de fazer em casa”. (Quando em bares, uso o princípio da substituição de importações: bebo aquilo que não sei beber ou não tenho em casa). O problema é que de tanto prometer, nunca fiz o Gold Rush para a dona da
– e enquanto tomava um puxão de orelha dela sobre isso esses dias, atentei para essa conexão curiosa entre drink, newsletter, disco e tudo mais. Eureca, como diria o velho Arquimedes.A combinação ganha pontos ao se saber que disco e drink são praticamente contemporâneos. Apesar de sua receita parecer ancestral, digna de um velho saloon, o Gold Rush nasceu no balcão do Milk & Honey, bar novaiorquino de Sasha Petraske que ajudou a dar nova vida para a coquetelaria às vésperas da virada do século XXI. Era um bar à moda antiga: escondido, silencioso, com regras de educação – e ao menos no começo, sem cardápio. Os pedidos surgiam a partir de uma conversa entre conviva e bartender, e, em um dia de 2001, o restaurateur T.J. Siegel pediu uma versão modificada do Bourbon Sour, com mel no lugar do xarope de açúcar, feita por Petraske. Lentamente, o drink se tornou um hit do local, até virar uma espécie de clássico dos bares – como o próprio TJ Siegel conta nessa matéria incrível.
É outra característica que o Gold Rush e Para Quando compartilham: a sensação de que estiveram sempre no ar e só foram colhidas por alguém que soube captar o espírito da época – e é difícil discordar ao ouvir letras como “All Star”, “No Recreio” e “Relicário”, apenas para citar três. Afinal de contas, são canções cheias de pequenas coisas do cotidiano e grandes sentimentos, como se apaixonar por alguém pela primeira vez, ver uma amizade surgindo ou um amor se distanciando conforme finda a madrugada. Mais que isso: depois de anos bebendo Busca Vida, dar o primeiro gole em um Gold Rush foi quase como reencontrar um velho amigo, da mesma forma que pode ser ouvir pela primeira vez músicas como “Frases Mais Azuis”, “Quem Vai Dizer Tchau” ou “Eles Sabem” – frases e melodias seminovas de um cantor que, por décadas, cantou uma boa parte da vida afetiva do brasileiro de classe média.
Quem lê o último parágrafo pode até pensar: poxa, mas então Para Quando deveria ser uma dose de Busca Vida, não é? Não: parte do que faz o Gold Rush ser um coquetel especial é o encontro do adocicado bourbon com o mel, rebatendo com o cítrico do limão. Assim como parte do que faz Para Quando ser especial é o fato de ter sido gravado em Seattle, com uma banda mezzo brasileira-mezzo americana, bebendo de diversas influências – o bandolim de Peter Buck em “Dessa Vez” é ao mesmo tempo folk-rock e rock rural, enquanto “O Vento Noturno do Verão” soa como um encontro divertido entre Caetano Veloso e momentos mais suingados dos Stones (que por sua vez, bebem em toda a tradição musical do sul dos EUA).
Há ainda mais: tal qual o Gold Rush, Para Quando… é um disco agridoce. Quem for nele escutar “All Star” e “No Recreio”, que foram gravadas primeiro aqui mas acabaram eternizadas na voz de Cássia Eller, vai tomar um belo chacoalhão ao longo do álbum. Vale prestar atenção: apesar da aura para cima, é uma coleção de canções sobre amores que não se cumprem (o verso “eu te amo/até quando eu e você pudermos esperar”, da ótima “Hey Babe”, bem exemplifica isso), momentos em que as rachaduras já começam a se tornar incontornáveis (“Quem Vai Dizer Tchau”) ou enormes expectativas (a faixa-título).
E talvez é esse caráter agridoce que faça Para Quando… funcionar bem como a trilha sonora desta virada de ano. É um período em que o tempo não decide se chove ou se faz um calor insuportável. É uma época em que um país sedento por mudanças precisa da maturidade de entender que algumas transformações são mais lentos do que se gostaria. É a trilha para uma fase de vida fechada para balanço, buscando ajustes e novos horizontes para 2023. Mas eu prometi que neste ano, ia falar menos besteira e curtir mais a onda boa de um refrão. Então, vamos à receita.
A Receita
60 ml de bourbon
22,5 ml de suco de limão
22,5 ml de água de mel
Água de mel? Que porra é essa, Bruno Capelas? Calma, calma, eu explico. É nada mais nada menos do que um xarope para ajudar a diluir o mel dentro do seu coquetel – rima não intencional. Assim como o açúcar, o mel não é exatamente a bebida mais fácil de se diluir instantaneamente – e por isso, ao ser inserido num drink, diluí-lo em água é uma forma fácil de deixá-lo mais misturado. (Afinal de contas, estamos falando de mixologia, não é mesmo?). Cada bartender trabalha com sua proporção favorita, mas fazer a água de mel é simples: separe um copo ou cumbuca e coloque lá dentro 3 partes de mel para uma de água. Misture bem, até que o líquido fique homogêneo e ligeiramente viscoso, mantendo a característica do mel.
Se você for fazer uma porção individual de Gold Rush, o mais indicado é usar uma colher de chá de água e três de mel – o que vai dar aproximadamente 20 ml na mistura. Agora, se você planeja fazer do Gold Rush o seu drink do mês, pode fazer o xarope de mel em grandes quantidades e, assim como o xarope de açúcar, guardar num recipiente grande e guardar na geladeira. No calor do verão brasileiro, dá para fazer a mistura em temperatura ambiente, mas se estiver frio aí na sua casa, pode ser legal misturar o mel com água morna, se possível abaixo dos 40°C – se estiver mais quente, o mel pode perder suas características mais importantes de sabor e vitaminas.
Agora que você sabe como fazer água de mel, a coisa é simples: bata bourbon, limão e água de mel numa coqueteleira com gelo. Depois de bater vigorosamente, sirva num copo rocks (aquele de uísque, manja?) com gelo e seja feliz. Aqui em casa, eu usei Jim Bean, que tem sido um bom custo-benefício de bourbon. Se você não tiver bourbon em casa, tudo bem: pode usar scotch ou o Jameson velho de guerra, mas saiba que seu Gold Rush vai ficar menos harmônico, mais dissonante.
Nos reclames da semana, jogo rápido:
No Programa de Indie, eu e Igor Muller seguimos nossa saga de revisitar os melhores discos de 2023, dessa vez avançando pela seara internacional, com direito a muito power pop, mulheres com guitarras e um bocadinho de pós-punk. Chega mais!
Na Cajuína, discuti um dos meus temas favoritos dos últimos tempos no mundo do trabalho: em tempos de pós-pandemia, qual é o papel dos escritórios? Entrevistei arquitetos e gente do RH de empresas como Cobli, Alice e Roche (que abriram novas sedes recentemente) para colocar mais alguns pontos nessa discussão.
E na dica de newsletter da semana, deixo vocês com a ótima
, da . Sabe conversa boa, diário livre, texto gostoso? É o que a Helô (minha “veterana” de Link Estadão, ainda que a gente nunca tenha trabalhado junto) faz – e o texto mais recente dela, “It’s complicated”, é uma amostra maravilhosa disso.
E você, sua cartilha tem o A de que cor? Saúde, e até semana que vem!
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro, de Nando Reis, bem como de seu irmão mais velho, 12 de Janeiro. Além disso, também escutei muito Neil Young durante a feitura dessa edição, com destaque especial para o maravilhoso e luminoso Zuma, um disco que já me salvou de poucas e boas.
PS2: Por falar em Neil Young e After the Goldrush, eu e o comparsa Igor Muller já cometemos um programa especial sobre esse álbum incrível na carreira do tio Neil, e ele está disponível no Spotify.
PS3: Além de ser um dos maiores produtores da história do rock brasileiro, Tom Capone também é o nome de um belo prato. Mais que isso: de um corte de carne! Fã de churrasco, ele e o comparsa Carlos Eduardo Mirando eram frequentadores da excelente churrascaria Leôncio, na Vila Madalena – a ponto de darem nome a dois cortes específicos de bife ancho. O Miranda tem 600g e é “muito mal passado”, enquanto o Tom Capone tem 350g e é “mal passado”. Vale a curiosidade, mas particularmente, ainda fico com o bom e velho vacio quando vou lá com os amigos.
PS4: Fiz uma pequena reorganização na newsletter essa semana… e isso inclui uma nova área com receitinhas de coisas básicas pro seu bar, como xarope de açúcar e infusões. A água de mel também já está lá, viu?
PS5: Após lançar essa ótima edição de Para Quando…, a Três Selos acabou de anunciar uma reedição nos mesmos moldes de 12 de Janeiro, o primeiro disco solo de Nando Reis. Tô ali namorando essa reprensagem, mas não sei se ela me namora.
PS6 e último: Sabia que a primeira gravação de “Luz dos Olhos”, outra canção eternizada por Cássia Eller, foi do Cidade Negra? Mais: que a composição foi um pedido do produtor Jorge Davidson a Nando Reis? Não, nem eu, descobri enquanto escrevia esse texto. Mas ouvindo, dá pra saber bem porque ninguém lembra dessa gravação.
Cara, que emoção ler essa edição da newsletter! “Para quando” marcou demais minha adolescência dps que comprei um box com os 3 cds do Nando Reis por acaso em uma promoção da (agora falida) Lojas Americanas. Bom demais, vou tomar um porre de gold rush para ouvir o disco dps de tanto tempo!