#55: “Sidney Magal (1977)”, Sidney Magal + Adonis
Um diário de viagem quase dois anos atrasado pra explicar porque você deve comprar uma garrafa de vermute e outra de jerez para sua adega, com o sangue fervendo
De todas as coisas bacanas de fazer essa newsletter, uma das mais divertidas desde que eu comecei a batucar estas linhas foi me dar a oportunidade de provar novos sabores. Ou melhor: a predisposição. Talvez seja um péssimo hábito transformar um hobby em um projeto com periodicidade fixa, mas a verdade é que ter um lugar para contar histórias me fez querer descobrir mais e mais os gostos das bebidas que estão no mundo. Isso é especialmente verdade quando eu viajo: parece que basta passar uma ou duas noites dormindo longe da minha cama para ativar todos os sensores de “só se vive uma vez” no meu corpo. Outro lugar em que toda a rigidez e disciplina parece ir embora é quando visito a gloriosa Feirinha de Vinil de Santo André – afinal de contas, em que outro lugar do mundo eu compraria um LP do Sidney Magal por menos de R$ 50 e, além de tudo, autografado?
É um lugar mágico, a feirinha de Santo André: numa velha galeria do centro da cidade, em frente à Igreja Matriz, uma série de vendedores dispõe seus caixotes com discos, muitos deles com descontos interessantes. Toda sorte de animais fantásticos aparece ali: do bicho grilo em busca de discos de MPB, o fã de prog, o tiozão metaleiro ou até mesmo aquele jovem que acabou de descobrir como funciona uma agulha passeando nos sulcos do bolachão. É um lugar mágico também por ter a capacidade de esvair significantes reais da minha carteira ou, pior, da minha conta bancária. Pois é: antigamente eu tinha a desculpa de ir embora quando o dinheiro acabasse, mas agora toda e qualquer barraca aceita PIX.
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
⛱Tá de férias e precisa de ajuda pra improvisar uns drinks? Vem aqui.
💸Se quer uma ajuda para comprar seu bar básico, aqui tem minha listinha de indicações na Amazon.
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
Estava pensando nesse tipo de coisa no último final de semana, quando compareci à mais recente edição mensal da feirinha e, mesmo sem querer gastar nada, saí de lá com quase dez LPs. Da mesma forma que também me espanto quando olho para o meu armário embutido aqui em casa e descubro ter algumas dezenas-quase-centena de garrafas fechadas. Muitas delas compradas em viagens, no free shop ou em módicas promoções do e-commerce em que, movido pela curiosidade de testar algo novo pra essa newsletter, acabei sacrificando algum naco do limite do meu cartão de crédito. (Suspiro – e olha que nem estou falando do quanto minhas viagens se tornaram mais caras desde que passei a beber, já se vai uma década).
Mas vale a pena, especialmente quando descubro uma paixão arrebatadora, daquelas que podem me acompanhar por uma vida inteira. É o caso do vermute, que durante muito tempo foi só “aquela garrafa cara” necessária para entrar na receita do Negroni – ou então uma bebida que me parecia digna de boteco ruim. Não parecia haver meio termo, mas aí eu fui pra Espanha em 2022. E enquanto enchia a barriga de tapas e de presunto cru, comecei a reparar que “vermú” sempre aparecia nos menus dos bares mais ou menos arrumadinhos que eu estava frequentando. Até que na última semana de viagem, em meio a um feliz almoço no dia seguinte ao maravilhoso show do Wilco em Zaragoza, eu tomei coragem e perguntei para um garçom mais amigável: “mas o que é esse tal de vermú?”. Era tanta pompa que não parecia ser o mesmo Martini – que, confesso, nunca havia bebido puro até então. “É uma bebida que a gente faz aqui, com vinho, ervas e tal. É muito bom”, respondeu o mozo, me servindo uma pequena dose ao final da refeição.
Lembro de chegar no hotel em Madrid, encontrar a
e, assombrado, contar pra ela da descoberta. “A gente tem que tomar esse tal de vermú aí, é maravilhoso!”. Naquela noite, entramos no primeiro bar do bairro em que estávamos hospedados e tomamos vários tipos de “vermú”. Era o que bastava para ficar apaixonado. Não à toa, alguns meses depois, celebramos nosso primeiro aniversário bebendo vermute no Huevos de Oro, um simpático bar espanhol ali em Pinheiros. E quando cheguei no Uruguai, em 2023, descobrir que lá tinha vermute em tudo que é canto me deixou mais que feliz: foi a certeza de que aquela seria uma viagem acompanhada de um novo-velho amigo. Desde então, algumas garrafas de vermute moram aqui no meu armário, esperando a hora de serem abertas. (Uma delas, inclusive, virou objeto de pesquisa & alquimia para uma newsletter que vem aí).O vermute, porém, não foi minha única descoberta na viagem à Espanha em 2022. No último dia de aventuras pela Europa, faltava ainda provar o jerez – que só recentemente entendi que também é um tipo de vinho fortificado e envelhecido em madeira, como é o meu querido Porto. Ao contrário do vermute, porém, o jerez não era tão fácil assim de achar. Tanto que foi por intervenção popular nas redes sociais (leia-se: uma seguidora) que a Anna encontrou o La Venencia, um bar de jerez no centro de Madrid que nós visitamos num sábado na hora do almoço. A despeito do sol lá fora, lá dentro o lugar era escuro. Nos acomodamos ao balcão, escolhemos três das seis variedades de jerez disponíveis e… mal sabíamos que estávamos entrando numa esquete espanhola digna de Seinfeld.
Até onde me lembro, naquela viagem eu e Anna estávamos criando um “quadro no Instagram” comentando bebidas. Não sei se me lembro corretamente como isso começou, mas imagino que tenha sido na degustação de vinho do Porto na Real Companhia Velha, ainda em Portugal. Mas sei que a piada prosseguiu por toda a viagem – embora os vídeos mesmo estejam ou perdidos no éter dos stories do Instagram ou guardados em versão bruta em algum recôndito do iCloud. Taças em punho, Anna pega o celular para fazer um registro em foto antes de elaborarmos o que íamos dizer (aqui é trabalho, já dizia Muricy) e… o garçom nos interrompe apontando para uma placa. “No fotos!”, com uma câmera atrás de um sinal de proibido. Achamos meio esquisito, mas ok, um bar à moda antiga.
Seguimos bebendo, intercalando duas das três variedades que pedimos, até que restava apenas um gole generoso em cada copo. Nos entreolhamos e decidimos que fazia sentido virar o que restava nas taças em um gole só. A bebida mal tinha descido pela garganta quando o garçom nos interrompeu. “El jerez es una bebida fuerte! No se debe beber así!”, gritou o homem, quase como uma versão castellana do Soup Nazi.
Havia, porém, mais uma taça, que fomos bebendo aos poucos. Na hora de pagar, consultei a marca de giz que ele mesmo havia escrito no balcão de madeira e separei o dinheiro: 4,50 euros. Não tinha tudo em moedas, então saquei uma nota de 5 do bolso e entreguei para o garçom, já como quem ia embora, deixando o troco como forma de gorjeta. E quem disse que ele me deixou ir embora? “No propinas!”, berrou o homem, me fazendo voltar para pegar uma moedinha de 50 cêntimos. Na rua, no sol escaldante das 13h, eu e Anna ríamos, bêbados, tentando entender que raio tinha acontecido ali.
Sei que toda vez que bebo jerez, lembro dessa história. Assim como lembro de grandes momentos no mundo hispanohablante toda vez que bebo vermute. E se por um lado beber em viagens é uma forma de descobrir algo novo, também é uma forma de criar uma cápsula do tempo: ao provar de novo aquela bebida, é fácil se sentir teletransportado para aquele lugar novamente. Especialmente quando aquela garrafa não é exatamente simples de se ter em casa – embora devo dizer que ter vermute e jerez destravou uma série de descobertas na minha adega, do mesmo jeito que acontece nos videogames quando a gente chega até uma certa fase.
E qual não foi minha surpresa ao descobrir que existe até um coquetel que junta justamente o jerez e o vermute em proporções iguais? É um coquetel forte, vibrante, de evidente sabor vínico (“que remete ao vinho”), doce mas sem sair de cima: o Adonis. Mais surpreendente ainda foi saber que é um coquetel que tem mais de 120 anos de idade, inspirado em musical da Broadway… e considerado um clássico, uma espécie de primo do Old Fashioned e do Manhattan.
Passei muito tempo matutando quem seria um bom par para ele. Até que me deparei com aquele disco de estreia do Sidney Magal, meio maltratado pelo tempo mas sem dúvida muito simpático, até por conter a excelente “Meu Sangue Ferve Por Você”. Não é só: produzido por Roberto Livi (também responsável por outro disco que já me debrucei aqui na newsletter, Soy Latino Americano), Sidney Magal (1977) é um disco divertidíssimo se você estiver no clima.
Nascido Sidney Magalhães, primo de Vinicius de Moraes (old fashioned, hehe), o nosso querido Magal queria mesmo cantar bossa nova. O primo diplomata falou que não ia dar pé, o que incentivou o cantor se transformar, naquele final de anos 1970, em uma espécie de amante-latino-cigano, aproveitando seu peito viril e seu porte de dançarino, como um adônis É algo fácil de sacar em um disco que privilegia músicas balançadas ou sofrências, quase todas elas versões de canções italianas (“Bela Sem Alma”, versão de José Augusto pra “Bella Senz’anima”, é indescritível de tão… caótica), espanholas ou francesas – justamente os três países que, de certa forma, dominaram durante séculos a produção de vermute.
Não vou me estender sobre o disco de Magal: ouvi-lo sem muita informação já faz parte da experiência, tentando entendê-lo como mais um fenômeno pop da tão divertida história do pop brasileiro, num capítulo não muito linear mas seguinte àquele de Celly Campello. Nem acho que preciso falar muito mais sobre vermute ou jerez – espero que essas histórias e esse texto sirva como incentivo para você investir em uma garrafa de cada um deles, para começar a entender como cada bebida funciona. São dois tipos de vinhos fortificados, cada um à sua maneira, que podem muito bem ser degustados separadamente, mas também são ótimos juntos.
O que eu queria dizer é que mais do que isso, essa combinação é uma ode a se abrir um pouco pras coisas malucas que pintam por aí. É algo que não ando fazendo muito, pra dizer a verdade – ou, quando faço, são experiências que cobram um preço maior do que eu achava que ia custar inicialmente. Talvez seja só um lembrete pra mim mesmo (o leitor nº zero desta newsletter) de que as coisas podem ser mais simples. Será mesmo? Bem, pelo menos o coquetel dessa semana é razoavelmente fácil de fazer. Bora pra receita?
A Receita
45 ml de vermute rosso/doce
45 ml de jerez
gelo para mexer
Fazer um Adonis é fácil e não requer muita prática, nem tampouco experiência. Separe as doses de cada bebida e coloque num mixing glass, com bastante gelo. Misture bem com uma colher bailarina, de 50 a 75 voltas (como sugerem os especialistas, mas não precisa contar) e coe o resultado da bebida em uma taça Martini ou coupé bem gelada. Se você não tem mixing glass, pode usar a coqueteleira mesmo ou até um copão alto para fazer o mesmo processo.
É simples assim – no máximo, você só tem que tomar cuidado pra não beber muito rápido e perder o equilíbrio ao segurar sua taça. Quanto às bebidas, vamos lá: aqui em casa, usei como vermute um Carpano argentino que trouxe na mala, mas no pior dos cenários, pode usar Cinzano ou Martini Rosso que vai dar bom também.
Já o jerez que eu utilizei foi o palomino fino Tio Pepe, que veio na mala da Espanha e mora há um tempo aqui na geladeira, e dá pra encontrar com alguma sorte nos e-commerces brasileiros. Mas há um tempo tô tomando coragem também pra testar a receita com um jerez manzanilla que recebi há algum tempo do pessoal da Zahil Vinhos e, cara de pau, tô até agora esperando uma ocasião especial pra abrir. Em breve também vem aí.
Reclames da Quinzena
No Programa de Indie, uma dobradinha inglesa na última quinzena. Primeiro, veio a entrevista com o Mark Gardener, guitarrista do histórico Ride, que tá de disco novo e quer vir pro Brasil. Depois, eu e o chapa Igor Muller analisamos o clássico Parklife, do Blur, que tá chegando à década balzaquiana neste 2024. Aliás, cê já segue a gente no Instagram pra não perder nenhuma novidade?
Pra quem prefere ler em vez de ouvir, vale registrar que tem a entrevista do Mark Gardener também lá no Scream & Yell, o site da família indie brasileira.
Enquanto isso, lá no YouTube tem registros da Selton tocando no Sesc Pompeia e também da especialíssima canja que eles deram no show do Diodato, só para convidados, na Sala São Paulo. E se você não sabe quem é a Selton… eu só posso aproveitar pra reafirmar que você deveria ler minha reportagem sobre esses gaúchos maravilhosos que formaram banda em Barcelona e há quase duas décadas vivem em Milão. Tá lá na piauí, viu?
Diz aí: cê conseguiu chegar ao final desse texto sem ficar com aquele backing vocal (“to-da-mi-nha-vi-da-eu-te-pro-cu-reeei!”) maravilhoso na cabeça?
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Sidney Magal, de 1977, o LP, já que o Spotify só tem apenas quatro das 12 faixas do disco. E também foi escrito ao som do silêncio – ando numa fase em que a música já não me ajuda mais tanto a escrever como antigamente. É triste (e para isso busco solução).
PS2: Assim como preciso confessar que puxei essa newsletter do fundo da cartola aos 42 do segundo tempo. O plano inicial era escrever de outro disco, com outro humor, mas é um disco que merece mais graça e mais pensamento – até por ser tão importante para minha formação musical. Quem sabe daqui a duas semanas. Enquanto isso, espero que essa historinha etílica diário de viagem tenha agradado vocês.
Esse é um dos discos do Magal que estão faltando na minha coleção de fã. Vou atrás dele pra testar a combinação :)