#46: “Trem das Onze”, Demônios da Garoa + Rabo de Galo
No aniversário de São Paulo, uma declaração de amor à cidade com dois de seus símbolos incontornáveis: um coquetel histórico e o repertório de um de seus maiores compositores, Adoniran Barbosa
Ao chegar à marca de um ano e meio de newsletter, quem me acompanha por aqui já deve ter percebido que alguns temas são recorrentes dentro destas páginas – minha adolescência, minha formação musical, rotinas de trabalho, a história do rock brasileiro, histórias de lojas de discos e, vá lá, um bocado de política. Mas há um tema que talvez tenha sido mais frequente que todos: São Paulo. Falei da cidade que escolhi pra chamar de casa já na primeira edição da newsletter com “a tua mais perfeita tradução” – e depois emendei textos sobre Itamar Assumpção, Titãs, Ira!, Fellini e, ufa!, Pullovers, quase todos envolvendo a mistura de Campari com vermute. Sendo assim, espero que os convivas do balcão não se importem que eu vá voltar ao tema mais uma vez, ainda mais no aniversário de 470 anos da cidade. Também espero que não seja uma surpresa que mais uma vez eu vá apelar para o vermute, mas desta vez ele surge acompanhado de cachaça e Cynar no mais clássico dos coquetéis paulistanos: o Rabo de Galo.
Criado em meio aos anos 1950, quando a italiana Cinzano abriu uma fábrica por aqui, o Rabo de Galo nasceu como bom golpe de marketing. Ao perceber que os brasileiros tomavam muito mais cachaça que vermute, a fabricante de bebidas resolveu bolar uma mistura das duas substâncias para ver se suas vendas deslanchavam. Para facilitar, a empresa criou até um copo especial, com fundo reforçado (pra aguentar a porrada no balcão) e uma marca que dividia a medida de cachaça e vermute a ser colocada na mistura. Inicialmente, a bebida se chamava mesmo cocktail, mas o bom espírito de aportuguesamento da coisa deixou seu nome muito mais bacana. Mas alto lá: Rabo de Galo mesmo com esse nome é coisa de São Paulo – no Rio e em Minas, tem que pedir um Traçado, segundo consta nas minhas leituras. Convivas de fora de SP, procede? (Já quanto ao Cynar, a gente discute lá embaixo, ok? Ok).
🥸Olá, olá, olá! A Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais é uma tabelinha entre grandes álbuns e bons goles.
🎶Para ver os discos e drinks que já publicamos, use o índice.
🍸Para saber que bebidas usar, também use o índice.
🥃E se você precisa de ajuda pra montar seu bar, tem guia de compras de utensílios e de garrafas básicas aqui. Saúde!
⛱Tá de férias e precisa de ajuda pra improvisar uns drinks? Vem aqui.
💸Se quer uma ajuda para comprar seu bar básico, aqui tem minha listinha de indicações na Amazon.
↪E clicando no botão abaixo, você dá um golinho desse texto pra quem quiser!
Quando comecei esta Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais, eu sabia que seria um desafio enorme escolher um disco para o Rabo de Galo – da mesma forma que foi arranjar um bom par para a Caipirinha. Passei meses pensando, ouvindo e reouvindo discos, até que me deparei com o óbvio: se é um coquetel tão paulistano, tinha de ser com Adoniran Barbosa – o homem que escreveu “Trem das Onze”, o hino ainda não oficial da cidade de São Paulo. Daí, fui pra discoteca: apesar de saber de cor e salteado um par de letras do mestre João Rubinato (o nome de nascença do compositor), faltava um disco dele na minha coleção.
Recorri aos streamings e confesso que não gostei muito de nenhum deles – gravados nos anos 1970, já na velhice do compositor, os álbuns de Adoniran trazem versões de menor vigor de suas criações. Matutei muito, até que cheguei no lugar certo: este Trem das Onze gravado pelos Demônios da Garoa em 1964, com oito composições de Barbosa em doze faixas. É um disco que transpira “paulistanidade” antes mesmo do primeiro sulco: do nome da banda à capa que traz uma locomotiva em pleno destaque, para não falar no selo Chantecler no rótulo, tudo está ali ligado a um ideal clássico de São Paulo. E neste aniversário da cidade, enquanto dou mais um gole herbal no meu Rabo de Galo, aproveito a deixa pra refletir o quanto desse ideal clássico nos serve – e o quanto dele nos atrapalha ou envergonha. Enquanto limpo os bigodes de mais um gole, também aproveito pra pensar um pouco sobre o status de Adoniran Barbosa.
Pra quem nasce em São Paulo (ou na região metropolitana, ao menos), é difícil se desvencilhar da imagem mais clássica de Adoniran: o matuto italianado que fala errado (e vira tema para ótimas aulas de português, como provou tantas vezes Dona Silvina, aniversariante da semana – dêem parabéns pra minha mãe nos comentários, que ela lê tudo aqui). Parece exagero, mas é realmente difícil escapar do clichê de ouvir constantemente “Trem das Onze” e “Samba do Arnesto”, especialmente se você assiste muito a jornais como o SPTV.
Ao mesmo tempo, é engraçado lidar com a projeção de Adoniran fora de São Paulo: em livros de história de samba, seu nome é tratado como uma nota de rodapé – muitas vezes, Adoniran parece ser a exceção que confirmaria a máxima regra de Vinicius de Moraes, que certa vez teve a empáfia de chamar “São Paulo de túmulo do samba”. É mentira que se comprova ao ouvir este Trem das Onze, pra não falar de Paulo Vanzolini ou Germano Mathias, mas o que dizer do poder de uma mentira dita mil vezes?
Superestimado e subestimado ao mesmo tempo, a imagem folclórica de Adoniran parece ter se cristalizado na história da música popular brasileira – da mesma forma que, se não fosse pela luta de Mestre Derivan, talvez o Rabo de Galo ficasse confinado eternamente à gaveta das “bebidas de boteco”. O nosso cóquetêil ainda não entrou na International Bartenders Association, mas já virou até nome de bar chique em hotel seis estrelas que muita gente mal tem chance de entrar. (E por falar em Derivan, vale assistir a essa pequena aula aqui embaixo caso você queira saber mais da história do Rabo de Galo).
Ao escutar esse disco enquanto ando para cima e para baixo numa São Paulo que vive uma de suas piores épocas recentes, achei que valia uma defesa parecida – especialmente ao me deparar com a atualidade de suas canções. Afinal, o que é “Trem das Onze” senão uma canção sobre um amor interrompido pelas limitações da mobilidade urbana? (Ok, eu sei que tem uma tira excelente de Wagner & Beethoven propondo uma teoria bem diferente, mas…). E o que dizer de “Iracema”, talvez minha música favorita de Adoniran, uma tragédia gerada no trânsito infernal da capital paulista? Há mais: ao entrar no capítulo “habitação e especulação imobiliária”, as letras de Adoniran calam fundo hoje em dia – especialmente às vésperas de um pleito que vai opor um militante pela habitação digna a um prefeito conchavado no lobby das grandes construtoras.
Ao escutar “Abrigo de Vagabundo”, é difícil disfarçar a ideia de que o terreno modesto que o eu-lírico compra na Mooca (“dez de frente, dez de fundo”) pareça hoje um latifúndio. E não consigo me afastar da estranha ironia por trás da história de “Saudosa Maloca”, composta depois que Adoniran viu amigos malandros serem despejados dos escombros do hotel Albion, na rua Aurora, para a construção de um edifício alto – nessa mesma rua Aurora que hoje, vira e mexe, faz parte da nova configuração do mapa da Cracolândia. Dá um travo amargo na garganta, talvez o mesmo travo amargo do incauto que bebe um Rabo de Galo pela primeira vez, sem saber exatamente o que pediu. (E olha que nem falei dos incêndios (não) acidentais de “Barracão Pegou Fogo”, de Ary Carvalho e Ary Borges, ou de canções de Adoniran que não estão no disco, como “Aguenta a Mão, João” e o drama das enchentes).
Travo amargo também surge na boca ao ouvir algumas das canções não escritas por Adoniran e registradas neste Trem das Onze dos Demônios da Garoa – a saber, na época, um quinteto vocal formado por Arnaldo Rosa, Antoninho (Antônio Gomes Neto), Claudio Rosa, Narciso Trevilatto e Roberto Barbosa, o Canhotinho. Duas delas hoje saltam aos olhos pelo retrato extremamente preconceituoso: “Chum-Chim-Chum” menospreza a colônia chinesa, enquanto “A Promessa da Jacó” esbanja antissemitismo ao contar a história de um vendedor judeu muquirana. Por outro lado, talvez seja difícil negar que esse preconceito com o outro também faça parte da história da cidade – e reconhecer o erro, olha lá velho clichê, é primeiro passo para corrigi-lo e superá-lo.
Depois de tantos parágrafos, talvez o leitor esteja aí pensando: “pô, mas o cara não ia homenagear São Paulo?”. Pois é: a boa e velha história de que só a gente pode falar mal do que é nosso. Viver em São Paulo é difícil e tem sido particularmente desafiador, entre violência, mudanças bizarras de temperatura e um descaso geral do poder público em diferentes áreas. Mas não consigo me ver morando em outro lugar – e olha que pensei muito isso nas últimas semanas, seja quando estive no Rio ou na Baixada Santista para tentar renovar o bronzeado, já que se você bobear, São Paulo te deixa com o visual de urso polar (gordo, branquelo e peludo).
Mesmo com tanto defeito, com tanta falta de possibilidade, São Paulo ainda reúne uma miríade de possibilidade de coisas incríveis – e não falo só do que as pessoas veem aqui e buscam conquistar, mas também na pequena poesia que acontece entre faróis, túneis e trens de metrô. Juro que não vou me estender nesse capítulo pra não transformar esse texto numa thread ruim de Twitter, mas acho que preciso de uma pequena história. No fim do ano, um querido amigo mineiro veio pra cá passar uns dias, ali na época do Primavera Sound. Num almoço longo, ele confidenciou, cansado: “velho, essa cidade te engole”. Concordamos (eu e outro amigo paulistano) com um sorriso: o segredo é aprender a engolir ela primeiro, tentando sorver tudo que é possível.
Da mesma forma que o segredo com o Rabo de Galo é superar o amargor inicial e o punch alcóolico da cachaça branca, chegando até a doçura do vermute. Embora aqui, preciso dizer que há uma singela diferença: enquanto São Paulo necessite ser degustada por inteiro, o Rabo de Galo talvez seja mais gostoso quando sorvido aos poucos, de um jeito meio malandro, pascalingudum. É uma malandragem diferente da carioca, alto lá: afinal, onde vagabundo guarda o coração na sola do pé, guerreiro tira chinfra. A minha, eu tiro com as palavras: do lado de cá desta tela, sopro mais uma velinha e aproveito as letras “m” e “i” do meu teclado para fazer cá eu minha “prova de carinho” pra essa cidade.
Que a gente saiba fazer de você um lugar melhor, São Paulo. Você merece. Mas chega de falar, “que nós viemo aqui foi pra bebê ou pra conversá?”
A Receita
50 ml de cachaça branca
15 ml de vermute rosso
15 ml de Cynar
1 jato de bitter de laranja (opcional)
Inicialmente, a fórmula original do Rabo de Galo era simples: 2 partes de cachaça para 1 de vermute rosso, servidos num copo de shot. No entanto, com o tempo, a receita foi se transformando: há quem substitua o vermute por Cynar, enquanto outros adeptos mesclam o vermute ao amaro de alcachofra. Das receitas que provei aqui em casa enquanto elaborava a newsletter, essa última me pareceu a mais equilibrada de todas, com um equilíbrio entre o caráter alcóolico da cachaça branca, a doçura do vermute e o herbal do Cynar.
Dito isso, fazer um Rabo de Galo é tarefa bem simples: pegue um copo Rocks (aquele baixinho, de tomar uísque) e coloque todos os ingredientes na sequência, junto com uma pedra de gelo generosa. Ao final, se você achar que vale a pena, vale colocar um jatinho de bitter de laranja, e misturar suavemente com uma colher ou bailarina. Aqui em casa, a cachaça foi a 51 velha de guerra; o vermute foi um Carpano Classico que eu trouxe na mala da Argentina, mas você pode usar Cinzano ou Martini Rosso numa boa; e o Cynar… bem, foi o Cynar nosso de cada boteco. Já o bitter de laranja foi o da Angostura – que, inclusive, é um ótimo aliado para dar um toque cítrico no seu drink quando você não tiver casca de laranja à mão.
Reclames da Semana
No Programa de Indie da semana passada, eu e Igor Muller abrimos a quinta temporada do programa com as primeiras novidades de 2024 – um ano que promete muita música boa pra gente, viu?
Em Cajuína, tem uma conversa minha com a Priscila Mônaco, diretora sênior de RH da Visa, falando sobre a importância de diversidade e inclusão dentro dos ambientes corporativos.
Lá no canal do YouTube, tem uns vídeos bem bacanas do show da Maglore no Sesc Bom Retiro, no último final de semana, incluindo a primeira vez que eu consegui gravar “Vira Lata”, uma das canções de amor mais bonitas dos últimos anos.
Pra terminar: se o aniversário é de São Paulo, mas quem ganha o presente é você, só posso dar um conselho. Escolhe um dos balcões que eu sugeri no Guia de Bares de SP e vai curtir esse restinho de feriado (se você mora na capital paulista; pra quem não mora aqui, fica o incentivo pra vir pra cá).
Assinado em cruz, porque eu não sei escrever.
Um abraço,
Bruno Capelas
PS: Este texto foi escrito ao som de Trem das Onze, dos Demônios da Garoa – disco que namorei por muito tempo em feirinhas de vinil, mas comprei mesmo às vésperas de escrever essa newsletter lá na Galeria Nova Barão. O texto também foi embalado pela versão especial de “Saudosa Maloca” feita por João Gilberto, e pela leitura de Adoniran: Dá Licença de Contar, de Ayrton Mugnaini Jr.
PS2: O livro do Ayrton tava na estante há um tempão, mas eu não tinha lido ainda também. Tava até no plástico do qual tinha vindo do sebo. Gostei da leitura, mas achei o resultado mais enciclopédico que narrativo – ainda que seja uma das melhores formas de conhecer o homem João Rubinato. No mínimo, o livro vale pela reprodução integral de Um Senhor Piquenique, texto que Adoniran escreveu pra revista Realidade em 1969, contando a história de um bate-volta da turma da Mooca até a Praia Grande. Aqui tem inteiro, é coisa linda demais. E juro que não estou sendo influenciado por ter lido o texto enquanto passava uns dias no Guarujá.
PS3: Esqueci de dizer no meio do texto, porque não cabia, uma das minhas trívias favoritas sobre Adoniran: quando ele fez “Trem das Onze”, ele não morava em Jaçanã, mas sim em Santo André. Por que a mudança? Jaçanã rimava melhor, explicou certa vez Adoniran (olha aí a rima). E acredita que ele mal pisou no Jaçanã na vida? No livro o Ayrton explica melhor…
PS4: Tô quase nos finalmentes de acabar um media kit da Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Marcas, quem sabe 2024 não é o ano em que a gente faz uma parceria bacana?
PS5: Para os maníacos por calendário, fica o aviso: a próxima edição desta newsletter vem só daqui a duas quintas-feiras, em plena véspera de Carnaval. Prometo que vai ser com um disco arrasa-quarteirão. Ô ô ô Ô…
Mal conheço essa newsletter e já amo.
Parabéns Dona Silvina!!
Felicidades, Dona Silvina!